segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O Mar e o Marão. Conferência-Manifesto. António Cândido Franco. «A grandeza do Passado, Antero não o diz explicitamente mas é fácil depreendê-lo, teria sido justamente a de ter contribuído como mais nenhum outro momento para a criação do mundo moderno»

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O Mar e o Marão
«(…) Esta ideia dum mar fechado, vem já dos primórdios da expansão marítima, talvez do tempo das bulas de Nicolau V e Calisto III ao Infante Henrique, respectivamente de 1454 a 1456, e é outro dos sinais da imperfeição do nosso passado, um sinal que diminui decerto a grandeza dessa unidade física da Terra, a que os portugueses tão esforçadamente se entregaram. Essa unidade da Terra constitui, aliás muito justamente, um dos factos da glória portuguesa, mas, não constitui no entanto, o facto maior da sua grandeza passada ou futura.
O hábito de olhar exclusivamente para o passado quando procura, por os feitos da nossa glória, pode-nos colher indevidamente, escondendo-nos as mais altas sínteses da nossa história.
A ideia exposta por Antero de Quental nas Conferências do Casino sobre a decadência dos povos peninsulares tem uma frase paradigmática que, pelas implicações, vale a pena transcrever:

Nos dois últimos séculos não produziu a Península um único homem superior que se posso pôr ao lado dos grandes criadores da ciência moderna: não surgiu da Península nem uma só das grandes descobertas intelectuais, que são a maior obra e a maior honra do espírito moderno.

Antero dizia isto, visando então como século de viragem do Passado para o Futuro. Sem sabermos muito bem a partir de que valores uma tal transição aconteceria, tanto mais que Antero fica nesse aspecto muito aquém de qualquer definição em profundidade e não apenas em extensão, podemos no entanto inferir que aquilo que designámos de Futuro teria tido então aí o seu início.
Dissemos que na história dos homens o Passado estabelece uma relação contrapolar ou antitética com o Futuro como na história das coisas elementares a Luz estabelece uma relação binária com a Sombra. Antero, e antes dele Herculano, parece ter resolvido esta relação binária estabelecendo uma contradicção estritamente linear entre Passado e Futuro, relação esta que me parece ter tido apenas em conta a extensão e não a profundidade do problema. Quero eu dizer, em termos de valorização de que o Passado foi para Antero de grandeza, ideia esta que se encontra já bem explícita nas palavras iniciais d’O Bobo de Herculano, enquanto que o Futuro, antítese do seu antecedente, de decadência. A Revolução, esse cristianismo do mundo moderno como Antero lhe chamava seria para ele, como idade de progresso e de desenvolvimento racional, a possibilidade de superar essa decadência.
O juízo de Oliveira Martins, formulado na História da Civilização Ibérica (1879) como resposta a Antero, não parece porém afastar-se no essencial, se descontarmos talvez a hipótese revolucionária de Antero, da ideia de que a história portuguesa estaria sujeita a um ciclo do Passado, que teria terminado nos meados do século XVII, e onde residiria toda a nossa grandeza, e a um ciclo do Futuro, onde se teria progressivamente afirmado, em relação a esse mesmo passado, a nossa decadência. A Sombra, face baça e lunar da existência, seguir-se-ia, na sucessão das coisas, à luz mais alta e mais real.
A grandeza do Passado, Antero não o diz explicitamente mas é fácil depreendê-lo, teria sido justamente a de ter contribuído como mais nenhum outro momento para a criação do mundo moderno. E o mundo moderno tem como definição aquele fundamento existencial e moral, bem português, que preside à unidade física da Terra e à unidade cultural e social da humanidade. É a unidade cultural do homem que funda e determina a existência mesma do mundo contemporâneo. Torna-se óbvia, deste ponto de vista, mesmo deixando passar em aberto, como Antero e Oliveira Martins fizeram, as nódoas escuras do Passado, a grandeza que ambos atribuem aos antigos portugueses. Uma tal grandeza, mesmo que tenha raízes diversas, é um dos consensos mais evidentes entre todos aqueles que desde há cem anos têm vindo a estudar a história portuguesa». In António Cândido Franco, O Mar e o Marão. Conferência-Manifesto, Junho de 1989, IADE, Lisboa.

Cortesia de IADE/JDACT