sábado, 29 de dezembro de 2018

A Rosa dos Ventos. Materiais para uma Opereta sem Música. Gonzalo Torrente. «Cruzam a cidade canais e braços de mar, o mar penetra-a, as casas têm janelas viradas para o mar e varandas erguidas sobre as ondas e, por todos os lugares navegáveis»

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«(…) Ter-se-á rodeado meu tio Aleixo de monges inquisidores, de belas bruxas e de aparelhos de tortura? Desses pormenores nada se sabe. Isso de medieval referente às orgias, será um indício? No rés-do-chão e nas caves conservam-se, ainda, tanto a atmosfera sinistra como a quantidade de corvos e morcegos que os romancistas ingleses costumam considerar suficiente para este tipo de castelos, apesar de os descreverem maiores e mais complicados. Não sei se um aspecto tenebroso tão literário não deverá alguns dos seus pormenores ao arquitecto francês, que também percebia de aperfeiçoar as sombras e que, com bastante segurança, interveio, com os seus remendos, na atmosfera tenebrosa do castelo. Em qualquer caso, aqueles aposentos são tão escuros, tão amplos e lúgubres os patamares, que me metem medo, ainda que na medida estritamente indispensável para não sermos atrevidos. A porta de comunicação entre o meu mundo quotidiano e esse, excepcional, está fechada e firmemente trancada. Não recordo ter descido a esse inferno mais do que uma vez, apesar da sua indubitável fascinação: faz lá muito frio.
Adoptei, pelo contrário, o terraço. Fica por cima do mar, por cima da espuma e dos rochedos; quando sopra o vendaval, o estrondo sobe e ouvem-se as vozes que o vento traz, ora gemidos de moribundos, ou alaridos de triunfo e alvoroços de soldados sem freio. Às vezes, as gaivotas colaboram e, então, o estrépito adquire uma ordem, quase uma forma, que o torna semelhante a um concerto, ainda que bastante inusitado. Mas a brisa traz, com os seus sussurros, mensagens que quase ninguém entende; quando o tempo está calmo, o castelo fica como um fantasma no alto da névoa. Não disse ainda que, precisamente em frente daquela que foi a minha cidade, fica um estreito famoso por causa das batalhas navais que nele se travaram, talvez pela visibilidade do cenário; e como está elevado, refiro-me ao castelo, ao declinar da tarde instalo-me no terraço com os meus binóculos para ver se, com um pouco de sorte, vejo pôr-se o Sol: há poucos dias em que isso aconteça porque o engolem o nevoeiro ou a chuva, mas o que acontece é que o Sol cai sem pressas, lá longe, entre franjas negras de nuvens e franjas vermelhas de céu; sei que, então, o meu coração se comove e salta do mesmo modo que os corações dos que foram meus súbditos. Ainda não disse, mas digo-o agora, que no nosso escudo há um Sol poente e a palavra além: os nossos antepassados foram os primeiros a navegar mais além. O que, contudo, posso contemplar, com maior ou menor nitidez, são os mastros dos veleiros atracados nos molhes exteriores, de perfis imprecisos porque chove. No meu país chove muito; certa vez andou por lá um poeta inglês que disse, da minha cidade, que era de mastros e de chuva. Tinha razão. Cruzam a cidade canais e braços de mar, o mar penetra-a, as casas têm janelas viradas para o mar e varandas erguidas sobre as ondas e, por todos os lugares navegáveis, se metem barcos de todos os calados e de todas as bandeiras, de modo que, ao abrir as vidraças, de manhãzinha, há sempre uma fragata ou um bergantim cujos penóis se aproximam familiarmente, ou passam de largo como gente conhecida: é muito frequente que, da cozinha de um veleiro, um cozinheiro peça um pouco de sal a uma senhora que está varrendo o passeio em frente da porta. Já não vejo tudo isto, mas posso pressenti-lo como se estivesse por detrás de uma cortina, graças à generosidade e à cortesia do meu primo Christian, como já disse. Com uns binóculos mais potentes talvez chegasse a vê-lo, mas estão caros, com tantos avanços que agora têm. Uma vez veio por aqui de visita um capitão da marinha mercante cuja família se manteve sempre fiel à dinastia: pelo menos mil anos de fidelidade, desde os tempos em que um tetravô meu, de cornos no capacete, dava ordens a um timoneiro sobre questões de rumo. Prometeu trazer-me uns binóculos muito mais potentes mas, como me contou que andava apaixonado por uma morenita de Nova Orleães, não deixa de ser possível, ou que tenha ficado por lá de vez, ou que o não tenham deixado voltar por meio de bruxarias: tentadores como são os louros para melhorar a raça! Se não lhe tivesse acontecido nada deste género eu teria os binóculos e veria melhor a chuva e os veleiros. Às vezes, Christian vem, incógnito, almoçamos juntos, tomamos café e ele, depois, regressa. Numa dessas tardes disse-me: vês como, a longo prazo, a guerra de 1783 acabou por te favorecer? Se os teus antepassados tivessem vencido os meus, agora os nossos países seriam ambos de Carlos Frederico Guilherme e não poderias consolar-te do desterro contemplando a tua casa de tão perto. Já não contemplo o meu palácio de móveis inventariados desde que, numa tarde das claras, descobri que a bandeira que ondeava na torre não era a minha!» In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.

Cortesia de Difel/JDACT