«(…) Ter-se-á rodeado meu tio Aleixo de monges inquisidores, de belas
bruxas e de aparelhos de tortura? Desses pormenores nada se sabe. Isso de medieval
referente às orgias, será um indício? No rés-do-chão e nas caves conservam-se,
ainda, tanto a atmosfera sinistra como a quantidade de corvos e morcegos que os
romancistas ingleses costumam considerar suficiente para este tipo de castelos,
apesar de os descreverem maiores e mais complicados. Não sei se um aspecto tenebroso
tão literário não deverá alguns dos seus pormenores ao arquitecto francês, que
também percebia de aperfeiçoar as sombras e que, com bastante segurança,
interveio, com os seus remendos, na atmosfera tenebrosa do castelo. Em qualquer
caso, aqueles aposentos são tão escuros, tão amplos e lúgubres os patamares,
que me metem medo, ainda que na medida estritamente indispensável para não sermos
atrevidos. A porta de comunicação entre o meu mundo quotidiano e esse,
excepcional, está fechada e firmemente trancada. Não recordo ter descido a esse
inferno mais do que uma vez, apesar da sua indubitável fascinação: faz lá muito
frio.
Adoptei, pelo contrário, o terraço. Fica por cima do mar, por cima da
espuma e dos rochedos; quando sopra o vendaval, o estrondo sobe e ouvem-se as
vozes que o vento traz, ora gemidos de moribundos, ou alaridos de triunfo e
alvoroços de soldados sem freio. Às vezes, as gaivotas colaboram e, então, o
estrépito adquire uma ordem, quase uma forma, que o torna semelhante a um
concerto, ainda que bastante inusitado. Mas a brisa traz, com os seus
sussurros, mensagens que quase ninguém entende; quando o tempo está calmo, o
castelo fica como um fantasma no alto da névoa. Não disse ainda que,
precisamente em frente daquela que foi a minha cidade, fica um estreito famoso por
causa das batalhas navais que nele se travaram, talvez pela visibilidade do
cenário; e como está elevado, refiro-me ao castelo, ao declinar da tarde
instalo-me no terraço com os meus binóculos para ver se, com um pouco de sorte,
vejo pôr-se o Sol: há poucos dias em que isso aconteça porque o engolem o
nevoeiro ou a chuva, mas o que acontece é que o Sol cai sem pressas, lá longe, entre
franjas negras de nuvens e franjas vermelhas de céu; sei que, então, o meu
coração se comove e salta do mesmo modo que os corações dos que foram meus
súbditos. Ainda não disse, mas digo-o agora, que no nosso escudo há um Sol
poente e a palavra além: os nossos antepassados foram os primeiros a navegar mais
além. O que, contudo, posso contemplar, com maior ou menor nitidez, são os
mastros dos veleiros atracados nos molhes exteriores, de perfis imprecisos
porque chove. No meu país chove muito; certa vez andou por lá um poeta inglês
que disse, da minha cidade, que era de mastros e de chuva. Tinha razão. Cruzam a
cidade canais e braços de mar, o mar penetra-a, as casas têm janelas viradas
para o mar e varandas erguidas sobre as ondas e, por todos os lugares navegáveis,
se metem barcos de todos os calados e de todas as bandeiras, de modo que, ao
abrir as vidraças, de manhãzinha, há sempre uma fragata ou um bergantim cujos
penóis se aproximam familiarmente, ou passam de largo como gente conhecida: é
muito frequente que, da cozinha de um veleiro, um cozinheiro peça um pouco de
sal a uma senhora que está varrendo o passeio em frente da porta. Já não vejo
tudo isto, mas posso pressenti-lo como se estivesse por detrás de uma cortina,
graças à generosidade e à cortesia do meu primo Christian, como já disse. Com
uns binóculos mais potentes talvez chegasse a vê-lo, mas estão caros, com
tantos avanços que agora têm. Uma vez veio por aqui de visita um capitão da
marinha mercante cuja família se manteve sempre fiel à dinastia: pelo menos mil
anos de fidelidade, desde os tempos em que um tetravô meu, de cornos no capacete,
dava ordens a um timoneiro sobre questões de rumo. Prometeu trazer-me uns binóculos
muito mais potentes mas, como me contou que andava apaixonado por uma morenita
de Nova Orleães, não deixa de ser possível, ou que tenha ficado por lá de vez,
ou que o não tenham deixado voltar por meio de bruxarias: tentadores como são
os louros para melhorar a raça! Se não lhe tivesse acontecido nada deste género
eu teria os binóculos e veria melhor a chuva e os veleiros. Às vezes, Christian
vem, incógnito, almoçamos juntos, tomamos café e ele, depois, regressa. Numa
dessas tardes disse-me: vês como, a longo prazo, a guerra de 1783 acabou por te
favorecer? Se os teus antepassados tivessem vencido os meus, agora os nossos
países seriam ambos de Carlos Frederico Guilherme e não poderias consolar-te do
desterro contemplando a tua casa de tão perto. Já não contemplo o meu palácio
de móveis inventariados desde que, numa tarde das claras, descobri que a
bandeira que ondeava na torre não era a minha!» In Gonzalo Torrent, La Rosa de
los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel,
Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.
Cortesia de Difel/JDACT