sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

A Rainha Adúltera. Joana de Portugal. O Enigma da Excelente Senhora. Marsilio Cassotti. «A 2 de Junho de 1453, na Plaza Mayor de Valladolid, Álvaro pediu alguma fruta ligeira para se refrescar um pouco. Trouxeram-lhe um vinho suave e umas ginjas; quase não provou a fruta e a seguir bebeu um pouco de vinho»

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Lições de matrimónio imperial
«(…) A jovem donzela fora resgatada da sua prisão graças à intervenção de um dos seus parentes castelhanos, o conde de Cifuentes, irmão de María Silva, protectora toledana da rainha Leonor. Como não podia, ou talvez não quisesse, voltar a fazer parte da casa da rainha, Beatriz encontrou refúgio no convento de Santo Domingo el Real de Toledo, o mesmo onde permanecera Joana depois da morte da mãe. Com o tempo, essa monja converter-se-ia em inspiradora da fundação da Ordem das Concepcionistas, e, muito depois, em santa da Igreja Católica. Embora as fontes misturem história, lenda e hagiografia, todas coincidem em realçar a sua beleza, que teria atraído muitos cortesãos e até o próprio Juan II, com os consequentes ciúmes da esposa, segundo defende um historiador. No entanto, é possível que, por trás desses ciúmes, aos quais se costumavam atribuir as acções aparentemente irracionais das mulheres nas esferas de poder quando iam contra os critérios do grupo dominante masculino, no ataque de Isabel de Portugal à futura santa Beatriz da Silva estivesse uma causa nada desprovida de racionalidade. Ocorria de novo o que acontecera em Portugal com a rainha Leonor de Portugal na época das suas rivalidades com o regente pela tutoria do seu primogénito e pelo exercício da regência.
As informações de que dispunha a rainha sobre as negociações matrimoniais de Enrique eram um tema que estava directamente relacionado com a rivalidade luso-castelhana pela posse das ilhas Canárias. Velha reivindicação portuguesa à qual se opunha o marido da rainha castelhana, era apoiada e defendida estrategicamente a partir de Ceuta, havia duas gerações, pelo avô e pelo tio de Beatriz da Silva, sucessivos capitães desse enclave português em terra africana. No entanto, as crónicas castelhanas, naturalmente escritas por autores que faziam eco do ponto de vista do poder masculino, preferiam explicar os ciúmes patológicos, da rainha como o resultado da perda definitiva da sua racionalidade, por causa de um facto cuja responsabilidade também atribuiriam, em parte, à rainha: a injusta morte do condestável de Castela.
A 2 de Junho de 1453, na Plaza Mayor de Valladolid, Álvaro pediu alguma fruta ligeira para se refrescar um pouco. Trouxeram-lhe um vinho suave e umas ginjas; quase não provou a fruta e a seguir bebeu um pouco de vinho. Depois disso, o verdugo cortou-lhe a cabeça, levantou-a e colocou-a numa lança à vista de todos, onde permaneceu nove dias. A tradição que adjudica a Isabel de Portugal parte da responsabilidade por esta morte afirma que o fez por vingança pelas intromissões do valido na sua vida marital. A morte violenta do valido que por mais de trinta anos exercera um poder delegado em Castela suscitou neste reino quase o mesmo misto de escândalo, medo e complacência que o desapiedado final do regente infante Pedro em Alfarrobeira provocara quatro anos antes em Portugal.
Tanto foi assim que, nos meses seguintes, a atenção dedicada à execução fez passar despercebida inclusivamente a queda de Constantinopla nas mãos dos turcos, a 29 de Maio de 1453. Um acontecimento que, certamente, aceleraria o regresso a Castela de um jovem clérigo que quatro anos antes se deslocara a Roma para estudar: Alonso de Palencia, o culto humanista que anos mais tarde acabaria por escrever uma crónica sobre o reinado de Enrique IV, a chamada Gesta Hispaniensia, base narrativa da lenda difamatória sobre Joana de Portugal na qual se baseariam posteriores cronistas e historiadores até aos dias de hoje (nascido em 1421, na cidade que lhe daria o apelido, possivelmente pertencente a uma família de judeus convertidos. Graças à sua precoce inteligência atraíra a atenção do filho do antigo rabino de Burgos, o bispo dessa cidade, Alfonso de Cartagena, embaixador em Portugal naquele ano e mestre do então príncipe Duarte, além de possível inspirador da candidatura de Leonor ao casamento com Duarte. Como jovem familiaris do bispo […] Graças a esse prelado de grande carisma pessoal e rara generosidade, pudera viajar até Roma antes de cumprir os vinte e cinco anos. O cronista que mais dano causaria à reputação de dona Joana, é muito provável que o tivesse conseguido graças às suas excelentes aptidões históricas, e sobretudo retóricas, pois tivera o privilégio de estudar no colégio romano com o humanista cretense Georgios Trapezuntios, ou Jorge de Trebizonda, então secretário do papa Nicolau V, e Johannes Lascaris, de um ramo colateral dos imperadores de Bizâncio, da que saíra a célebre e culta dona Vetaxa Lascara, aia da rainha Isabel de Portugal, mulher do rei Dinis I, a rainha santa)». In Marsilio Cassotti, A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.

Cortesia da EdosLivros/JDACT