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«Trabalhar com nobreza, esperar
com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia».
In
Fernando Pessoa
«(…) É uma cantilena infantil, vinda da memória subterrânea, movem-se
umas crianças de névoa ao fundo de um jardim invernoso, e cantam com as suas vozes
agudas, porém tristes, avançam e recuam em passos solenes, assim ensaiando a
pavana para os infantes defuntos que não tardarão a ser, crescendo. Ricardo
Reis afasta o cobertor, repreende-se por se ter deixado dormir vestido, não é
seu hábito condescender com tais negligências, sempre seguiu as suas regras de
comportamento, a sua disciplina, nem o trópico de Capricórnio, tão emoliente,
lhe embotou, em dezasseis anos, o gume rigoroso dos modos e das odes, ao ponto
de se poder afirmar que sempre procura estar como se sempre o estivessem
observando os deuses. Levanta-se da poltrona, vai acender a luz, e, como se
manhã fosse e de um sono nocturno tivesse acordado, olha-se no espelho, apalpa
a cara, talvez devesse barbear-se para o jantar, ao menos mude de roupa, não
vai apresentar-se assim na sala, amarrotado como está. É descabido o escrúpulo,
parece que não reparou ainda como vestem os vulgares habitantes, paletós como sacos,
calças em que as joelheiras avultam como papos, gravatas de nó permanente que
Se enfiam e desenfiam pela cabeça, camisas mal cortadas, rugas, pregas, são os
efeitos da idade. E aos sapatos fazem-nos largos de tromba para que livremente
possa exercitar-se o jogo dos dedos, ainda que o resultado final desta
previdência acabe por anular a intenção, porque esta deve ser a cidade do mundo
onde com maior abundância florescem os calos e as calosidades, os joanetes e os
olhos-de-perdiz, sem falar nas unhas encravadas, enigma pedioso complexo que
requereria uma investigação particular e aí fica proposto à curiosidade. Decide
que não fará a barba, mas veste uma camisa lavada, escolhe a gravata para a cor
do fato, acerta o cabelo ao espelho, apurando a risca. Embora a hora do jantar
ainda esteja longe, vai descer. Mas antes de sair releu o que escrevera, Sem
tocar no papel, diríamos que impaciente, como Se estivesse a tomar conhecimento
de um recado deixado por alguém de quem não gostasse, ou o irritasse mais do
que é normal e desculpável. Este Ricardo Reis não é o poeta, é apenas um
hóspede de hotel que, ao sair do quarto, encontra uma folha de papel com verso
e meio escritos, quem me terá deixado isto aqui, não foi, de certeza, a criada,
não foi Lídia, esta ou a outra, que maçada, agora que está começado vai ser
preciso acabá-lo, é como uma fatalidade, E as pessoas nem sonham que quem acaba
uma coisa nunca é aquele que a começou, mesmo que ambos tenham um nome igual, que
isso só é que se mantém constante, nada mais.
O gerente Salvador estava no seu posto, fixo, arvorando, perene, o
sorriso. Ricardo Reis cumprimentou, seguiu adiante. Salvador foi atrás dele,
quis saber se o senhor doutor tomaria alguma bebida antes do jantar, um
aperitivo, Não, obrigado, também este hábito não ganhou Ricardo Reis, pode ser que
com o passar do tempo lhe venha, primeiro o gosto, depois a necessidade, não
agora. Salvador demorou-se um minuto entre portas, a ver se o hóspede mudava de
opinião ou exprimia outro desejo, mas Ricardo Reis já tinha aberto um dos
jornais, passara todo aquele dia em ignorância do que acontecera no mundo, não
que por inclinação fosse leitor assíduo, pelo contrário, fatigavam-no as
páginas grandes e as prosas derramadas, mas aqui, não havendo mais que fazer, e
para escapar às solicitudes de Salvador, o jornal, por falar do mundo geral,
servia de barreira contra este outro mundo próximo e sitiante, podiam as
notícias daquele de além ser lidas como remotas e inconsequentes mensagens, em
cuja eficácia não há muitos motivos para acreditar porque nem sequer temos a
certeza de que cheguem ao seu destino, Demissão do governo espanhol, aprovada a
dissolução das cortes, uma, O Negus num telegrama à Sociedade das Nações diz
que os italianos empregam gases asfixiantes, outra, são assim os periódicos, só
sabem falar do que aconteceu, quase sempre quando já, é tarde de mais para
emendar os erros, os perigos e as faltas, bom jornal seria aquele que no dia um
de Janeiro de mil novecentos e catorze tivesse anunciado o rebentar da guerra para
o dia vinte e quatro de Julho, disporíamos então de quase sete meses para
conjurar a ameaça, quem sabe se não iríamos a tempo, e melhor seria ainda se
aparecesse publicada a lista dos que iriam morrer, milhões de homens e mulheres
a ler no jornal da manhã, ao café com leite, a notícia da sua própria morte,
destino marcado e a cumprir, dia, hora e lugar, o nome por inteiro, que fariam
eles sabendo que os iam matar, que faria Fernando Pessoa se pudesse ler, dois
meses antes, O autor da Mensagem morrerá no dia trinta de Novembro próximo, de
cólica hepática, talvez fosse ao médico e deixasse de beber, talvez desmarcasse
a consulta e passasse a beber o dobro, para poder morrer antes. Ricardo Reis
baixa o jornal, olha-se no espelho, superfície duas vezes enganadora porque
reproduz um espaço profundo e o nega mostrando-o como mera projecção, onde
verdadeiramente nada acontece, só o fantasma exterior e mudo das pessoas e das
coisas, árvore que para o lago se inclina, rosto que nele se procura, sem que
as imagens de árvore e rosto o perturbem, o alterem, lhe toquem sequer». In
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995,
ISBN 972-21-0286-9
Cortesia de Caminho/JDACT