quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

História dos Judeus Portugueses. Carsten L. Wilke. «Tu, que nas grandes alturas te aposentas, Senhor, ouve a este pecador que te chama das baixuras…»

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«(…) E, agora, vejamos outra vez a bela tradução do Jorge Campos Costa. É por sugestão sua que o editor escolheu a portada do livro, um quadro, hoje em Nova Iorque, e que devemos a um pintor romântico, o judeu inglês Solomon Alexander Hart. Mostra uma festa religiosa na sinagoga (esnoga) portuguesa de Liorna (Livorno), em 1850. Alguns fragmentos arquitectónicos permitem reconhecer com exactidão o célebre monumento, que foi destruído por aviões ingleses num bombardeamento da Segunda Guerra Mundial. Em contrapartida, é muito manifesta a falta de fidelidade histórica no vestuário dos assistentes. Naturalmente, não oravam assim, os judeus aburguesados após a emancipação de 48. Hart tirou-lhes os seus chapéus e gravatas e vestiu-os com um estranho disfarce de roupa oriental, como sacerdotes da época bíblica. Hart pinta judeus ideais, imaginários, judeus potenciais, como o descreveu com a sua admirável fórmula o saudoso professor Révah. Um judeu que já não existe, ou que ainda não nasceu. Hart apresenta o judaísmo com disfarce, e o próprio judaísmo como um disfarce. Hart pinta a duplicidade religiosa que antecipa, na história dos judeus e cristãos-novos portugueses, o judaísmo moderno.
A duplicidade não significa que haja uma touca bíblica debaixo do chapéu. A tradição não é um último estrato arqueológico por debaixo da modernidade. Como um contacto imaginário com um fio de tradição perdido, criou uma nova tradição e uma nova fidelidade. Isso, precisamente, é o que ensina a história judaica portuguesa. É este trabalho da memória, que existe também nos que traziam a gravata no peito, ou a cruz. Para os cristãos-novos portugueses, que foram, depois da conversão de 1497, os últimos sobreviventes do judaísmo na Europa Atlântica, a tarefa não foi a de conservar tradições ancestrais, mas a de inventar, criar um judaísmo inspirado em outras fontes do saber e sentir: rumores do estrangeiro, leituras bíblicas, modelos cristãos ou profanos, e a própria criatividade poética.
Citarei um exemplo só: de uma oração clandestina, a mais popular dos criptojudeus portugueses, uma trova em vinte versos que chegava a ser uma espécie de hino do criptojudaísmo português. Foi dita já no século XVI e ainda no século XX, foi dita por almocreves com tricórnios, ou por automobilistas com casquetes, foi dita em Trás-os-Montes ou nas Colónias. Os primeiros exemplos surgem nos anos 1580, segundo os estudos eruditos da professora Elvira Azevedo Mea: são de confissões de nove prisioneiras da Inquisição (maldita), todas mulheres de Trás-os-Montes ou, mais precisamente, originárias do concelho de Torre de Moncorvo. Do século XVII, há testemunhos de prisioneiras originárias da vila de Carção, em Trás-os-Montes, de Lisboa, de Cuenca, em Espanha, de Sevilha e até da Cidade de México. No século XVIII, confessa-a um homem, até que enfim, um homem!, em Bragança. Ainda no século XX, recitam-na de memória testemunhas de Bragança, de Felgueiras e de Belmonte.
Leio-vos aqui as duas famosas oitavas:

«Alto Dio de Abraão,
Rei forte de Israel!
Tu, que ouviste a Daniel,
Ouve minha oração!

Tu, que nas grandes alturas
Te aposentas, Senhor,
Ouve a este pecador
Que te chama das baixuras,
Pois, Tu, a todas criaturas
Abres caminhos e fontes.
Alço meus olhos aos montes,
de onde virá minha ajuda?
(…)
In Carsten L. Wilke, História dos Judeus Portugueses, 2007, Edições 70, 2009, ISBN 978-972-441-578-9.

Cortesia de E70/JDACT