Lições
de matrimónio imperial
«(…) Palencia menciona na sua crónica
a intervenção desta personagem e estabelece uma relação directa entre o rabino e
o contador-mor de Enrique, contando que vivia em Segóvia e tinha trabalhado diligentemente
com Diego Arias na administração das rendas do então príncipe Enrique; e por estas
artes pôde conseguir tanta confiança que se atreveu a repreender a temeridade do
mestre de Calatrava [Pedro Girón] (...). Com estas denúncias conseguiu
despertar a indignação de Enrique contra os dois irmãos (...). Desde aquela época,
vivia desterrado o judeu e fugitivo em Portugal. A Crónica anónima de Enrique
IV afirma, a respeito deste casamento, que o príncipe o tinha muito procurado
mediante um judeu, físico seu, de quem muito se fiava, que era de seu conselho,
homem muito agudo e astuto, o qual de algum modo sobre este caso tinha encontrado
maneira de os reis de Castela e de Portugal se verem num lugar que se chama Monsaraz,
dilatando o negócio bastante tempo, o que ele fazia pelo grande interesse que recebia
de ambas as partes durante o tempo de negociar, e como algumas coisas tratasse além
disto, que não apraziam ao mestre dom Pedro Girón, morreu a ferro, alguns dizem
por seu mandato.
Enquanto ocorriam estes insólitos
casos para dar curso ao matrimónio de Joana com o seu primo, a 4 de Abril de
1453, em Burgos, ocorreu a detenção de Álvaro Luna. Dias mais tarde deu-se início
ao julgamento por usurpação do poder real. Enquanto a incipiente opinião pública
de Castela estava ocupada em seguir o processo, os eficientes e discretos criados
do príncipe levavam a cabo, paralelamente, outro julgamento muito menos público,
para estabelecer um final canónico ao matrimónio do seu senhor com Blanca de Navarra.
A 11 de Maio de 1453, em audiência pública mas dentro de uma pequena igreja de uma
perdida aldeia segoviana, Luis Acuña, futuro bispo de Segóvia, ditava a sentença
de divórcio de Enrique e Blanca, perante um notário que era escrivão do rei e na
presença de diversas testemunhas, todos seguros partidários do príncipe.
Como em trâmites anteriores e posteriores
relacionados com a sua boda com dona Joana, Enrique contaria nesta ocasião com a
estreita colaboração de homens de origens portuguesas. O primeiro, o bispo encarregado
de pronunciar a decisiva sentença de divórcio, era primo afastado da infanta,
pois era neto de outro membro da linhagem dos Cunha, pertencente a um ramo aparentado
com a casa real de Portugal, que em Castela originara os condes de Valencia de D.
Juan. Apesar de todas aquelas argúcias, o documento final que os juízes eclesiásticos
entregaram ao procurador de Blanca, para que o assinasse ou rejeitasse,
estabelecia critérios então aceites pela Igreja Católica para sentenciar a nulidade
e separação de um casal por causa da impotência do cônjuge masculino. A sentença
explicava que essa impotência não tinha uma causa física mas que era produto de
uma ligadura, ou seja, um malefício. Algo que, segundo os juízes, só tinha
acontecido com Blanca, uma vez que na sentença se afirmava que Enrique pudera ter
relações com outras mulheres. Por estranho que possa parecer hoje, naquela altura
a Igreja Católica não só acreditava nesse tipo de influências, como os canonistas
consideravam a impotência por malefício, uma das causas mais claras para
anular um matrimónio. Como estabeleceria o Malleus maleficarum, uma obra
escrita por dois dominicanos e publicada trinta anos depois do divórcio de Enrique,
a possibilidade da intervenção do demónio estabelecia-se como causa indiscutível
de impotência. Um ponto sobre o qual também estavam de acordo tanto a Lei de
Partidas como a ciência médica da época.
Onze dias depois de proferida a sentença
de divórcio, o condestável Álvaro Luna tomava conhecimento da sua condenação à morte,
pronunciada por uma junta de dez doutores convocada pelo rei, e que devia ser aplicada
por mandato e não por sentença. Isto é, por vontade real e não por decisão judicial.
Três dias mais tarde, a princesa Blanca aceitava a sentença de divórcio, emitida
por Luis Acuña. Fá-lo-ia na cidade de Olmedo, onde residia, a 25 de Maio de 1453.
Enrique escolhera como procurador para realizar este trâmite Diego Saldaña, o antigo
escrivão de ração da rainha Leonor de Portugal e futuro secretário e conselheiro
de Joana em Castela. A notícia da condenação à morte do valido concentrou tanta
atenção que, inicialmente, o divórcio de Enrique, ainda que transcendental para
o futuro do reino, passou quase despercebido. Parece não ter acontecido o mesmo
com o estado de saúde mental da rainha consorte castelhana.
Terá
sido por essa mesma altura que a mãe da rainha Isabel, Isabel de Barcelos, se estabeleceu
definitivamente em Castela. É significativo que, na primeira vez que é mencionada
nas crónicas, ocupe, a pedido do rei Juan II, um posto no seu conselho privado.
Os cronistas contemporâneos, entre eles Diego Valera, reconhecem nela uma muito
notável mulher e de grande conselho. O seu estabelecimento definitivo em
Castela esteve possivelmente relacionado com a necessidade de ajudar a filha
durante a sua segunda gravidez, depois de esta ter dado a primeira mostra de loucura,
ao que se conta, encerrando num baú durante três dias a sua donzela Beatriz Silva,
irmã do futuro frei Amadeu. Algo que, ao que parece, teria ocorrido depois de a
rainha ter ouvido dizer que o rei exprimira admiração pela beleza dessa jovem. Só
falta que lhe deem o meu ceptro, diz-se que comentou então Isabel». In Marsilio Cassotti, A Rainha
Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma
difamação anunciada, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.
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