sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «Em resposta a este aviso terrível, todos aqueles adultos desatavam a desafinar em uníssono como no naufrágio do Titanic, de beiços arrepiados…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de Salazar, acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico de Peniche, onde os agentes da PIDE superavam em eficácia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo. Sempre imaginei que os pelos dos seus púbis fossem de estola de raposa, e que das vaginas lhes escorressem, quando excitadas, gotas de Ma Griffe e baba de caniche, que abandonavam rastros luzidios de caracol na murchidão das coxas. Sentadas à mesa do brigadeiro, comiam a sopa com a ponta dos beiços tal como os doentes das hemorroidas se acomodam no vértice dos sofás, deixando nos guardanapos de papel pegadas de copas de bâton de que se evolavam ainda desgostos com as criadas e restos de tiradas patrióticas, e reencontrei-as no portaló do barco na manhã da partida, encorajando-nos com maços de cigarros Três Vintes e apertos de mão viris em que as falanges, falanginhas e falangetas se articulavam entre si por intermédio dos anéis de brasão: sigam descansados que nós na rectaguarda permanecemos vigilantes.
E com efeito, observando bem, pouca coisa havia a recear de nádegas tão tristes, em relação às quais as cintas se conformavam com o papel secundário de fundas herniárias. E depois, sabe como é, Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada vez mais atenuados de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostos trágicos e imóveis de despedida, que a lembrança paralisa nas atitudes de espanto. O espelho do camarote devolvia-me feições deslocadas pela angústia, como um puzzle desarrumado, em que a careta aflita do sorriso adquiria a sinuosidade repulsiva de uma cicatriz. Um dos médicos, dobrado no colchão do beliche, soluçava aos arrancos em palpitações irregulares de motor de táxi que se engasga, o outro contemplava os dedos com a atenção vazia dos recém-nascidos ou dos idiotas que lambem longamente as unhas com os olhos extasiados, e eu perguntava a mim próprio o que fazíamos ali, agonizantes em suspenso no chão de máquina de costura do navio, com Lisboa a afogar-se na distância num suspiro derradeiro de hino. Subitamente sem passado, com o porta-chaves e a medalha de Salazar no bolso, de pé entre a banheira e o lavatório de quarto de bonecas atarraxados à parede, sentia-me como a casa dos meus pais no Verão, sem cortinas, de tapetes enrolados em jornais, móveis encostados aos cantos cobertos de grandes sudários poeirentos, as pratas emigradas para a copa da avó, e o gigantesco eco dos passos de ninguém nas salas desertas. Como quando se tosse nas garagens à noite, pensei, e se sente o peso insuportável da própria solidão, nas orelhas, sob a forma de estampidos reboantes, idênticos ao pulsar das têmporas no tambor do travesseiro.
Ao segundo dia alcançamos a Madeira, bolo-rei enfeitado de vivendas cristalizadas a flutuar na bandeja de louça azul do mar, Alenquer à deriva no silêncio da tarde. A orquestra do navio resfolegava boleros para os oficiais melancólicos como corujas na aurora, e do porão onde os soldados se comprimiam subia um bafo espesso de vomitado, odor para mim esquecido desde os meios-dias remotos da infância, quando na cozinha, à hora das refeições, se agitavam à volta da minha sopa relutante as caretas alternadamente persuasivas e ameaçadoras da família, sublinhando cada colher com uma salva de palmas festiva, até que alguém mais atento gritava: cantem o Papagaio Loiro que o miúdo está a puxar o vómito.
Em resposta a este aviso terrível, todos aqueles adultos desatavam a desafinar em uníssono como no naufrágio do Titanic, de beiços arrepiados sobre os dentes de ouro, uma criada batia tampas de tacho a compasso, o jardineiro fingia marchar de vassoura ao ombro, e eu devolvia ao prato um roldão de massa e arroz que me obrigavam a reengolir, desta vez sem coro, sibilando em voz baixa insultos furibundos. Agora, percebe, estendido no convés numa cadeira de repouso, a sentir no progressivo suor do colarinho a implacável metamorfose do Inverno de Lisboa no Verão gelatinoso do Equador, mole e quente como as mãos do senhor Melo, barbeiro do avô, no meu pescoço, na loja da Rua 1º de Dezembro, onde a humidade multiplicava o cromado das tesouras nos espelhos canhotos, o que com mais veemência me apetecia era que, tal como nesses tempos recuados, a Gija me viesse coçar as costas estreitas de menino num vagar feito da paciência da ternura, até eu adormecer de sonhos lavrados pelo ancinho dos seus dedos apaziguadores, capazes de me expulsarem do corpo os fantasmas desesperados ou aflitos que o habitam». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

Cortesia DomQuixote/JDACT