terça-feira, 11 de dezembro de 2018

O Evangelho Segundo Lázaro. Richard Zimler. «Depois de ter bebido, reparo que tenho um colar de âmbar à volta do pescoço. As contas são de um amarelo-leitoso»

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«(…) Qualquer coisa penugenta enrosca-se na concha da minha mão direita. Um rato? Será que esta caverna em que me aprisionaram é um antro infestado de bichos? Não consigo virar a cabeça para dar uma espreitadela. Abaixo do meu pulso palpita a esperança de que o animalzinho não me morda. Yaphiel, talvez aches isto cómico, mas mais tarde vim a descobrir que, em circunstâncias estranhas, a mão de um velho amigo pode parecer um rato trémulo. Sinto que me seguram por trás dos ombros e me colocam em posição vertical. O jovem de cabelo comprido e a mulher da cicatriz em forma de crescente desdobram um pano de linho grosseiro que se encontrava enrolado à volta do meu peito e pernas. Terei adormecido enquanto eles trabalham? A seguir só me lembro do velho choroso a colocar o seu xaile de orações sobre o meu sexo nu.
Um homem esguio, de capa e capuz de chamalote, leva-me aos lábios uma concha de madeira. É paciente comigo, este estranho de mãos generosas e fortes, e eu bebo sofregamente quando volta a dar-me de beber e outra vez e... Ao fim de algum tempo, divido-me em duas pessoas: um ser exausto, desesperado por matar a sede, e um observador distante e curioso que pergunta a si próprio por que razão um acto tão simples se tornou uma tarefa tão difícil, e o que é que toda aquela gente da Judeia quer de mim. Depois de ter bebido, reparo que tenho um colar de âmbar à volta do pescoço. As contas são de um amarelo-leitoso. Quando tento tocar-lhe, sinto a mão de novo atacada por tremores. Ajudem-me.
Não me sai a voz, mas o jovem de cabelo comprido lê-me o desespero na cara e ergue o colar para eu poder vê-lo. Será aquele que a minha mãe usava sempre? Mostra-lhe o talismã! Uma voz enfática de mulher diz-lhe que me mostre uma rodela de pergaminho que também me puseram ao pescoço. Nela estão grosseiramente desenhadas quatro figuras, todas com olhos ovais, ao estilo egípcio. Por cima das cabeças, os respectivos nomes angelicais: Mikhael, Gavriel, Uriel e Raphael. Por baixo das figuras, uma citação dos Salmos, escrita numa letra de criança: o Senhor é o teu único refúgio, o Altíssimo o teu auxílio. Por isso, nenhum mal te acontecerá, nenhuma epidemia chegará à tua tenda. É que Ele deu ordem aos Seus anjos para que te guardem em todos os teus caminhos.
A melodia de uma flauta, uma música frígia, simultaneamente triste e queixosa, alicia-me para o sono, que invade o meu corpo, quente e abundante como um mar que ondula suavemente. Algum tempo depois, tomo gradualmente consciência de um peso no peito. Dá-me a sensação de estar ali há muito tempo. O homem que me ajudou a beber beija-me nos lábios. Tirou o capuz. Tem os olhos vermelhos e inchados. Tem estado a chorar alguém, penso, e apetece-me perguntar-lhe se lhe morreu algum amigo, mas continuo incapaz de encontrar a minha voz». In Richard Zimler, O Evangelho Segundo Lázaro, Porto Editora, 2016, ISBN 978-972-004-854-7.

Cortesia de PEditora/JDACT