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O
Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Não chegarás a bacharel só
por fazeres prova dos conhecimentos, exortou-o. Tens de corrigir as tuas
atitudes. Bernard fixou-o contrariado. Pensei que isso era uma prerrogativa dos
padres. Deixa lá os padres. Se quiseres ser respeitado, tens de te comportar
dignamente. E a dignidade baseia-se em três regras fundamentais: a seriedade, a
pudicícia e a maturidade. Ao elencá-las, Suger não pôde deixar de se lembrar
das vezes que ele próprio as infringira. Mas não se tratava de si. Ele sabia
bem como esconder as suas fraquezas por trás daquele seu ar respeitável.
Bernard, pelo contrário, era sincero e leal, mas tinha um temperamento impulsivo.
O jovem concordou, dando um
pontapé à enésima pedra da rua. Não me dás ouvidos! Suger irritou-se. Queres
prestar um pouco de atenção à conversa? Como resposta, Bernard devolveu-lhe um
olhar tão profundo que o fintou. Devo fazer-vos uma confissão, magíster.
O médico observou-o, curioso.
Sobre o quê? Lembrais-vos daqueles rapazes com quem falava quando me encontrastes?
Sim, eram muitos. E então? Vieram saber o que me aconteceu esta noite.
Tencionam vingar-se do taberneiro de Saint-Marcel, dirigem-se para a taberna.
Mas isso não te diz respeito. Mas, magíster!, insistiu Bernard. Tenho medo de
que façam mal àquele tacanho. Sentir-me-ia responsável. Com um gesto exasperado,
Suger colocou-se à sua frente. De uma vez por todas, Bernard. Deves aprender a
não te imiscuir em casos semelhantes. Bateu-lhe com o indicador na testa. És um
rapaz inteligente, tens mais em que pensar. Depois da Quaresma, se Deus quiser,
serás bacharel. Se trabalhares afincadamente, dentro de poucos anos chegarás a
magíster. Compreendeste? Chega de brigas! Chega de cabeçadas!
Mas eu... Nem mas nem meio mas!
Não te interessa o título de bacharel? Os olhos de Bernard cintilaram de
ambição. Claro que sim, magíster. Interessa-me e de que maneira! Então deves
fazer o que te digo.
Duas horas depois, Suger dava a
sua aula no claustro de Sainte-Geneviève. Uma imensidão de estudantes ouvia-o
com a respiração suspensa, tomando apontamentos nos seus dípticos de cera.
Eram, na sua maioria, rapazes desprovidos de livros próprios, por isso
constrangidos a confiar na memória e na esperança de que o magíster lhes dispensasse
algumas notas escritas no fim da aula. Bernard assistia na primeira fila. Podia
tratar-se de uma manhã como outra qualquer, se não fosse o facto de dois frades
dominicanos se terem infiltrado no meio dos alunos. Tinham permanecido debaixo
das arcadas do claustro como dois corvos e ouviam a lição com ar de reprovação,
como se as palavras do magíster escondessem referências sacrílegas.
Suger ignorou-os durante todo o
tempo e, como era seu hábito, no final da lição reuniu os alunos e envolveu-os
num debate de modo a ajudá-los a familiarizar-se com os temas recém-tratados. O
debate centrava-se na afirmação de que a doença era consequência de uma causa
que a desencadeava, sem a qual o mal físico não poderia manifestar-se. Depois
de uma troca de opiniões iniciai, um estudante objectou que se fosse essa a
vontade de Deus, a doença manifestar-se-ia sempre mesmo que não houvesse uma
causa. Suger negou, explicando que nem Deus podia subverter as leis da
natureza, uma vez que Ele as havia criado. Um princípio divino, especificou,
não podia contradizer-se a si próprio. Aquelas palavras bastaram para
desencadear a gritaria». In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins
do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
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