jdact
«(…) Cheirava a calor e a
desperdícios e de tempos a tempos farrapos de jornal erguiam uma brisa de
notícias da calçada. Urinei à sombra de uma camioneta de fruta e enquanto
desabotoava a breguilha e o ar se tingia de fragrâncias de pêssego lembrei-me
de Loanda às seis da tarde, à hora a que os barcos largavam para a pesca
diminuindo a fumegar entre troncos de palmeiras. Urinei a pensar no relojoeiro
surdo-mudo, de pupilas de Charlot, cercado por centenas de cucos furiosos, que
consertava molas microscópicas a dez metros do meu emprego, a pensar em Miguel Cervantes
Saavedra que nos gritava por vezes episódios esquisitos de dulcineias e moinhos
e acrescentava excitadíssimo, a palpar o lápis no casaco, Vou enfiar isto no
meu livro, vou enfiar isto no meu livro, a pensar no reformado da sueca que
vedava com rolhões de pano e estearina de vela as frestas do caixão e se
instalava ao meu lado no beliche a exibir fotografias antigas coladas num
caderno de escola, Aqui sou eu no cavalo de pasta aos quatro anos, O terceiro a
partir da esquerda sou eu na tropa em Tancos, Esta tirou-me o meu irmão Paulo
quando descobri o caminho marítimo para a Índia, Agora, que engraçado, repare,
estou com os colegas da secção de rótulos da fábrica de cerveja, por sinal que
me ofereceram uma caneta com aparo de oiro e um diploma encaixilhado, com uma
placa em baixo e as assinaturas de todos, Que pena, ó Gama, já não trabalhares
cá, o reformado que se alongava em episódios sem fim da sua juventude de
sapateiro em Vila Franca, terra que a vermelhinha do Tejo ora mostrava ora escondia
consoante as cheias, abandonando, ao retirar-se, ventres inchados de bois e os
saxofones entupidos da banda do coreto.
O primo que dirigia o negócio das
solas escrevera-lhe para África a oferecer um quarto e sociedade na loja, e eu,
que não conhecia ninguém em Portugal, decorei o endereço para o visitar pela
Páscoa com um saquinho de broas e um baralho americano com mulheres nuas do
outro lado dos valetes. Acabei de urinar no momento em que uma locomotiva arrancou
confundindo o seu apelo com o apelo dos barcos, e tornei para o cais sem saber
o que fazer com o trambolho da urna a que o maneta das cautelas, num impulso
absurdo de artista, prometera um poema, Apeio-me do cavalo em Madrid, tranco-me
em casa e escrevo-o num segundo, não custa nada, ora que espiga, copio tudo em
papel de carta de avião e dentro de um mês o máximo está cá. Cocei as crostas
do herpes da orelha, cuspi para a água invisível na esperança de uma ideia, mas
onde catano sepultar o pai se não há dinheiro sequer para o serviço dos mortos?
Se não fosses completamente
parvo, explicava-me o reformado manipulando damas, num dos seus raros instantes
de compaixão e áspera amizade, esquecias-te do defunto na mesa onde o deixaram,
de mão de unhas compridas quase a agarrar o galheteiro porque os gajos se pelam
por azeite como os mochos, chupam-no agitando as asas nos armazéns das
mercearias, mas a mim afligia-me a ideia de que pudesse apodrecer sozinho em África,
com malmequeres nas cerdas do nariz, rodeado de salamandras e lacraus. Ao
sétimo escarro amanheceu: uma claridade de alguidar revelava os guindastes, o perfil
das naus de Ceilão, a labareda da Siderurgia ao longe, e o esqueleto do
supliciado no altar do seu patíbulo. Os milhafres e os corvos voltaram, o cabo
da guarda-fiscal desapareceu. Uns pescadores de camisa estampada instalaram-se
a dez ou vinte metros do caixão, cada qual com o seu cabaz e a sua cana, mas
decorridas algumas horas de não apanharem nada jogaram a tralha para uma furgoneta
da companhia do gás e escaparam-se mais ou menos pelo mesmo trajecto do senhor
Gama e do espanhol, sacudindo as chapas soltas do capot nos carris do comboio,
e ao irem-se embora regressou a noite: as luzes acenderam-se, os pavios das
canoas baloiçavam, o volume incompleto dos Jerónimos, vigiado por infanções de
alabarda, adquiriu uma grandeza imprevista. O cabo da véspera espiou da
repartição de tijolo, e sempre que se aproximava as fivelas das polainas
tilintavam e as feições reduziam-se a nódulos inexpressivos de pau». In
António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN
978-972-205-995-4.
Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT