jdact
O
Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Um dos dois dominicanos
levantou-se de repente e atravessou o claustro com passadas largas, direito ao
magíster. Os alunos abriram alas para lhe darem passagem, observando-o
estarrecidos. Raramente alguém pedia licença para interromper uma lição. Nervoso
com semelhante afronta, Suger preparou-se para investir contra aquele frade
impertinente. Tinha já preparado uns insultos que lhe fariam eriçar os cabelos
como os pelos de um gato, mas assim que o reconheceu mordeu os lábios. Não se
tratava de um religioso qualquer. Era Rolando de Cremona, o teólogo italiano! Frei
Rolando parou a poucos passos dele. Traços afilados e olhos de uma cor metálica
atravessados por uma raiva calculada. Com o ímpeto de um cavaleiro que lança um
olhar de desafio, pronunciou uma palavra única: Aristóteles! Foi o bastante
para mergulhar os assistentes no mutismo.
No meio daquele temível silêncio,
uma voz se ergueu das primeiras filas: irmão, como vos permitis? Todos se
viraram para Bernard, de rosto arroxeado, e olhos fixos no dominicano. Ide-vos
embora!, continuou o rapaz. A ciência médica não compete aos homens da Igreja. Suger
ordenou-lhe que se calasse, mas frei Rolando ameaçou-o com a voz e com o
carisma. É verdade, confirmou o dominicano, sem se dirigir a ninguém em particular.
Nós, homens da Igreja, abstemo-nos de praticar a ciência médica. É-nos proibido
verter sangue humano, mesmo que o objectivo seja curativo. A sua voz tinha um
não sei quê de lenhoso, como o sopro do vento numa árvore oca. Mas é nosso dever
apagar das mentes a sombra da dúvida. Desobedecendo pela segunda vez ao seu
magíster, Bernard continuou a polemizar: que sombra? Que dúvida? Até os
teólogos estudam Aristóteles. Frei Rolando parecia esperar aquela pergunta. Aristóteles
escreveu coisas admiráveis e, no entanto, a sua mente pagã levou-o a cometer
erros. Dirigiu o olhar para Suger. Erros que o vosso magíster difunde como
verdades absolutas. Erros que saem da sua boca como blasfémias.
Suger fechou os punhos como que à
procura de algum argumento de defesa. A acusação que lhe fora feita era
demasiado grave, ensinar o aristotelismo era proibido pela Igreja. E sob o
chicote dialéctico daquele hábil dominicano, cada tentativa para se desculpar
iria virar-se seguramente contra ele. Então, magíster, não dizeis nada?,
desafiou-o frei Rolando. Preferis continuar a ser defendido pelos vossos
discípulos? Suger abriu os braços, fingindo render-se. Reverendo padre, se
tivéssemos de nos medir em matéria teológica, vós levaríeis de certeza a
melhor. Eu, no entanto, não sou teólogo, sou médico. Se entendeis mover uma acusação
contra a minha docência, isso deverá ser feito na presença de uma autoridade competente:
a corporação dos professores de Paris. Corporação? Frei Rolando abanou a cabeça.
Eu não reconheço a autoridade de nenhuma corporação, só a do padre Philippus de
Noyon, o chanceler do Capítulo. Ele é o único e verdadeiro tutor do Studium.
Chegado aqui, Suger não podia
recuar. Muito bem, exclamou num tom altivo. Então apressemo-nos, zombou o
dominicano, fixando o seu confrade. Compareceremos imediatamente diante de
Philippus Cancellarius. Estamos ainda a tempo de ser recebidos em audiência». In
Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor,
Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
Cortesia do CdoAutor/JDACT