segunda-feira, 31 de outubro de 2022

No 31. Viagem a Portugal. José Saramago. «… que profundo é este silêncio do Vale da Vilariça, que consoladora a amizade, o viajante está prestes a adormecer, quem sabe se nesta cama de dossel dormiu…»

jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

«(…) É em Azinhoso, aldeiazinha perto, que começa a nascer a paixão do viajante por este românico rural do Norte. O risco das minúsculas igrejas não tem ousadias, é receita trazida de longe e ligeiramente variada para ressalvar o prestígio do construtor, mas muito se engana quem cuide que, tendo visto uma, viu todas. Há que dar-lhes a volta com todo o vagar, esperar calado que as pedras respondam, e, se houver paciência, de cada vez sairá dali repeso o viajante, este ou qualquer outro. Repeso de não ficar mais tempo, pois não está bem demorar um quarto de hora ao pé duma construção que tem setecentos anos, como neste caso de Azinhoso. Sobretudo quando começam a aproximar-se pessoas que querem conversar com o viajante, pessoas que justamente conviria ouvir porque são as herdeiras desses sete séculos. O pequeno adro está coberto de erva, o viajante assenta nela as suas pesadas botas e sente-se, não sabe porquê, reabilitado. Por mais que pense, é esta a palavra, não há outra, e não a sabe explicar. Daqui a pouco será noite, que no Outono vem cedo, e o céu cobre-se de nuvens escuras, talvez amanhã chova. Em Castelo Branco, quinze quilómetros ao sul, o ar parece ter passado por uma peneira de cinza, só na cor, que de pureza até os pulmões estranham. À beira da estrada há uma comprida fachada de solar, com grandes pináculos nos extremos. Se houvesse fantasmas em Portugal, este sítio seria bom para assustar os viajantes: luzes por trás das vidraças partidas, talvez um estridor de dentes e correntes. Porém, quem sabe, talvez que às horas do dia esta decadência seja menos deprimente.

Quando o viajante entra em Torre de Moncorvo, já há muito tempo que é noite fechada. O viajante considera que é desconsideração entrar nas povoações a tais horas. As povoações são como as pessoas, aproximamo-nos delas devagar, paulatinamente, não esta invasão súbita, a coberto da escuridão, como se fôssemos salteadores mascarados. Mas é bem feito, que elas pagam-se. As povoações, é conveniente lembrar, sabem defender-se à noite. Põem os números das portas e os nomes das ruas, quando os há, em alturas inverosímeis, tomam esta praça igual a este largo, e, se lhes dá no apetite, colocam-nos na frente, a empatar o trânsito, um político com o seu cortejo de aderentes e o seu sorriso de político que anda a segurar os votos. Foi o que fez Torre de Moncorvo. O pior é que o viajante vai destinado a uma quinta que fica para além, no Vale da Vilariça, e a noite está tão negra que dos lados da estrada não se sabe se a encosta, a pique, é para cima ou para baixo. O viajante transporta-se dentro de um borrão de tinta, nem as estrelas ajudam, que o céu é todo uma pegada nuvem. Enfim, depois de muito desatinar, chega ao seu destino, antes lhe ladraram cães desaforados, e entra na casa onde o esperam com um sorriso e a mão aberta. Grandes, portentosos eucaliptos tornam ainda mais escura a noite lá fora, mas não tarda que o jantar esteja na mesa, e depois do jantar um copo de vinho do Porto enquanto não vem a hora de dormir, e, quando ela chega, este é o quarto, uma cama de dossel, daquelas altas, que só por ser alto o viajante dispensa o degrauzinho para lá chegar, que profundo é este silêncio do Vale da Vilariça, que consoladora a amizade, o viajante está prestes a adormecer, quem sabe se nesta cama de dossel dormiu sua majestade o rei ou talvez, preferível, sua alteza a princesa». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

 JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,

No 31. Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Andalus. António Borges Coelho. «Os grupos berberes que entraram em Espanha na época da conquista eram originários do norte de Marrocos e da Argélia ocidental e central…»

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A Civilização Islâmica e o Gharb al-Ândalus

A Formação da Sociedade de al-Andaluz

«(…) Tenho tribo mais numerosa que a tua. Esta é a tua glória e a glória da tua tribo, exclamava Abu al-Katar al-Sumail, chefe dos cáicidas, enquanto degolava cálbidas na igreja onde se iria edificar a mesquita maior. Artobás e os seus filhos mantiveram-se como cristãos mas tiveram que repartir largamente as suas terras. Ao contrário, sua sobrinha Sara a Goda constitui o exemplo da introdução das mulheres peninsulares na família agnatícia e poligâmica dos conquistadores. Os grupos tribais ou clânicos árabe-berberes, agnatícios e endogâmicos, mantiveram-se pelo menos até aos começos da época califal enquanto as grandes famílias peninsulares se esbatiam entre os séculos VIII e IX. A assimilação dos hispanos à cultura árabe-berbere não ocorre apenas no campo religioso e linguístico mas também no campo social e político.

Os grupos berberes que entraram em Espanha na época da conquista eram originários do norte de Marrocos e da Argélia ocidental e central mas alguns contingentes provinham das grandes tribos nómadas de origem tripolitana como os Nafza e os Hawwara. Os escritores muçulmanos do século IX consideravam estas tribos tunisinas, na sua estrutura social, antiga e profundamente arabizadas. Mas nesta sociedade islâmica, aberta ao comércio mas dominada pelo poder tribal, grassava a contradição cidade/tribo ou usando as palavras do poeta santareno Ibn Sara lavrava a antipatia entre os beduínos e os habitantes das cidades. Nesta contradição, as cidades levavam a melhor destribalizando a tal ponto a sociedade que, numa carta ao califa Yusuf ibn Tasfin, Almutamide escreveu: as nossas genealogias alteraram-se…, forma-mos povos e não tribos. As invasões almorávidas e almóadas trouxeram novo alento aos clãs em território peninsular. Mas enquanto no Magrebe, viviam no deserto ou nas montanhas mesmo à porta de casa, para chegarem ao Andaluz, as tribos tinham de atravessar o mar.

A partir do século X, quando Abederramão III estendeu o seu domínio ao norte de Marrocos, incrementou-se a ligação entre o Andaluz e o Magrebe. Nos séculos XI e XII, as dinastias africanas dos almorávidas e dos almóadas firmaram as ligações entre as duas margens. Médicos, literatos, filósofos andaluzes caminham para a corte dos califas em Marraquexe. Nos arredores, em Agmat, morreu cativo o rei poeta Almutamide e mais tarde a tríade dos grandes filósofos do Andaluz, Avempace, Ibn Tufayl e Averróis. Mas este último, na sua Exposição da República de Platão lembra que nos diferentes povos há indivíduos mais aptos para o saber do que outros. E os povos com mais provas dadas eram os gregos e, nos países islâmicos, primeiramente o Andaluz, e também a Síria, o Iraque e o Egipto, esquecendo-se de sugerir o Magrebe. As ligações entre as duas margens levavam também a situações que se expressam no poema do eborense Isa ibn al-Wakil:

Um exilado na terra do Magrebe

Tem o coração dividido

Entre duas afeições:

Salé tomou uma parte

Évora a outra.

Vejamos um pouco mais de perto o ritmo de islamização no Andaluz. O episódio já citado da luta entre cáicidas e cálbidas, o surto dos muladis que desde a primeira hora se integraram como clientes nos poderes tribais e a revolta do arrabalde de Córdova sugerem que a religião dos vencedores ganhara adeptos, desde os primeiros anos, não só em Córdova como nos habitantes das outras cidades. Ibn Mozain afirma que, no ocidente, com excepção de Santarém e Coimbra, as terras foram conquistadas à viva força e distribuídas entre os soldados, depois de deduzido o quinto para o tesouro pio. No sul de Portugal, logo no primeiro meio século, começa a processar-se a arabização e islamização do território, levada a cabo pelos árabes iemenitas Yahsubi que, sob a direcção do chefe de clã Abu l-Sabbah al-Yahsubi, se estabeleceram em Beja e no Algarve». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Andalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.

Cortesia de ICamões/JDACT

JDACT, Algarve, António Borges Coelho, Conhecimentos, História,

domingo, 30 de outubro de 2022

Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Andalus. António Borges Coelho. «Nos primeiros anos, durante as guerras tribais, o chefe dos sírios Abu al-Katar al-Sumail pediu auxílio à gente do mercado de Córdova…»

 

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A Civilização Islâmica e o Gharb al-Ândalus

A Formação da Sociedade de al-Andaluz

«(…)  Os bárbaros que invadiram a Península no século V não seriam mais numerosos. Por outro lado, os afluxos berberes e também árabes continuaram ao longo dos quinhentos anos. A vinda de gente do Oriente é sensível no tempo dos emires, em particular de Abderramão I e II. As emigrações e colonizações berberes forneceram mercenários a Abderramão I e às tropas de Almançor Abu Amir e incorporaram com milhares de membros as invasões e colonizações berberes no tempo das dinastias almorávida e almóada.

Segundo o Código Visigótico, quase todos os caminhos levavam à servidão: o nascimento, o casamento com serva, o cativeiro, o consentimento voluntário, o abuso da força, as sanções penais por rapto, adultério, estupro, insolubilidade, abandono da mulher casando com outra, consultas de adivinhos, falsificação de moeda, etc. Por outro lado, a feroz perseguição movida pelo poder eclesial-militar visigótico aos judeus, há muito instalados como mercadores em todo o Mediterrâneo, forneceria, logo na primeira hora, aliados preciosos aos conquistadores que lhes entregaram a guarda de algumas cidades.

As decadentes cidades hispano-romano-godas opuseram fraca resistência. E após a conquista e durante as guerras tribais e as guerras entre baladis e os sírios de Baly, não se sublevaram devido não só à fraqueza dos poderes derrotados como à conversão de comerciantes, alguns senhores e principalmente servos citadinos à nova religião que lhes proporcionava a liberdade pessoal. E assim os muladis ou cristãos muçulmanizados e clientes dos notáveis das tribos invasoras são visíveis desde os primeiros momentos. Nos primeiros anos, durante as guerras tribais, o chefe dos sírios Abu al-Katar al-Sumail pediu auxílio à gente do mercado de Córdova, facto que parece sugerir não só a liberdade pessoal destes como a muçulmanização de boa parte da população cordovesa. Aliás, os muladis ou cristãos muçulmanizados são visíveis desde as primeiras horas. E no levantamento do arrabalde de Córdova contra al-Hakam I em 817, a gente do arrabalde é então mais ortodoxa que o próprio emir a quem doestam com os gritos: Vem, rezar borracho.

Em contrapartida, os novos senhores não se mostraram muito interessados na libertação dos camponeses que, como quinteiros, ficaram adscritos ao quinto, isto é, ao quinto das terras conquistadas à viva força e destinado ao Tesouro dos muçulmanos. Os invasores combatiam ligados pelos laços da tribo e do clã, ciosos do seu sistema familiar endogâmico e patrilinear. Como mostrou Pierre Guichard, este sistema social de tipo tribal e clânico, característico dos povos árabes e berberes, condicionou a evolução posterior da sociedade andaluza e do poder político e militar aí instalado. Em primeiro lugar, não permitiu a absorpção do novo aparelho religioso-político-militar pelo corpo dos poderes vencidos. Pelo contrário, os peninsulares só acedem ao novo poder integrando-se nele como clientes das tribos e dos clãs». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Andalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.

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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Elvira Peres de Trava levou as mãos à boca, chocada. Nunca pensara que a filha já se dera a homens, e ainda menos a um infanção de estatuto inferior ao dela!»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) Só a minha prima Raimunda rejubilou em segredo com o desgosto de Chamoa, e só ela acreditou que o príncipe voltaria para os seus braços, pois julgava que no coração dos outros nada era tão intenso como no dela. Enganou-se. O encantamento entre Chamoa e o príncipe, apesar daquela tremenda contrariedade, manteve-se vivo muitos anos. Por vezes, é isso que acontece, o amor resiste e dura. Contudo e naquela noite, a única que percebeu a profundidade da dor de Chamoa foi a sua irmã, a minha Maria Gomes. Julgando-a uma frívola, a mãe e o pai consideraram que aqueles uivos enlouquecidos eram teatrais em demasia. Não era verdade: Chamoa estava apaixonada por Afonso Henriques, e fascinada com a possibilidade de concretizar o seu sonho de infância. Durante a noite de sábado para domingo, confirmara à irmã o seu desejo de se casar depois das promessas trocadas junto ao rio da Loba. A minha querida Maria Gomes, apesar de habituada aos exageros da mana, notou que a forma como ela falava diferenciava Afonso Henriques de outras brincadeiras, e surpreendeu-se por descobrir, pela primeira vez, que Chamoa estava genuinamente enamorada.

Sonha ser princesa. Ou rainha, disse-me depois Maria. Por isso, ao ouvir aquela notícia na tenda, Chamoa sofreu um choque violento, que a desequilibrou. A mãe, o pai e a minha Maria levaram-na para casa ainda inanimada. Quando acordou, Chamoa abriu a alma e berrou: Mãe, pai, não me obrigueis a casar com aquele homem! Como qualquer mulher cujo amado é ainda desconhecido de terceiros, Chamoa apresentou argumentos que escondiam a verdade, e baseou a sua relutância nas desagradáveis características do futuro esposo. Paio Soares era velho, vaidoso, dado a amuos imprevisíveis, e muitos suspeitavam de que já não era homem suficiente para gerar filhos numa mulher!

Ao ouvi-la, Gomes Nunes de Pombeiro afirmou, um pouco irritado: É mais novo do que eu, ainda tem muita vitalidade! O pensamento arrepiou Chamoa, que decidiu apresentar uma nova razão, ainda mais poderosa do que as anteriores. Mas eu fui amiga do filho dele, do Ramiro!

Elvira Peres de Trava levou as mãos à boca, chocada. Nunca pensara que a filha já se dera a homens, e ainda menos a um infanção de estatuto inferior ao dela! O pai bateu as pestanas, confundido, quando Chamoa pormenorizou o sucedido: Beijei-o em Ponte de Lima, na feira do ano passado. Agora terei de beijar o pai dele? É pavoroso! Gomes Nunes, sem deduzir das palavras da filha o tipo de beijo a que ela se referia, encolheu os ombros, dizendo: Deus perdoa essas brincadeiras de crianças! Depois, colocou a mão no braço de Chamoa e afirmou: Filha, sabes o quanto vos amo, mas... Não podemos recusar a decisão da rainha. Paio Soares é um homem poderoso e nós...» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Nesse momento, ouvi a siderada Chamoa produzir um pequeno uivo, tombando depois, desmaiada, nos braços de Afonso Henriques»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) De repente, ouviu-se a voz de Gonçalo, que se levantara: Casam os meus amigos e eu não? A rainha sorriu-lhe. Sempre gostara daquele amigo do filho, que considerava um brincalhão sem maldade, e respondeu-lhe: Tendes a vosso lado duas mouras em idade casadoira. Se desejais desposar uma delas, tendes de o dizer! Os olhares dos presentes caíram sobre as raparigas muçulmanas, Fátima e Zaida, que estavam sentadas alguns lugares depois de Gonçalo e dividiam a mesma escudela. Zulmira ficou aterrada ao escutar a sugestão da rainha, e ainda mais quando a sua filha mais velha, sem hesitar, declarou: Antes me cortem o pescoço, jamais casarei com um cristão! O olhar brilhante e feroz de Fátima percorreu a sala, orgulhoso, sabendo que muitos pensavam como ela. A união entre o imperador Afonso VI e a moura Zaida sempre fora considerada maldita, e havia quem acreditasse que a morte do infante Sancho, em Uclés, não era mais do que um inexorável destino de tais misturas de sangue e fé.

E vós?, perguntou a rainha, dirigindo-se a Zaida. Não desejais desposar este belo moço? Zulmira suspendeu a respiração. A sua filha mais nova lia a Bíblia, visitava as bibliotecas e conhecia a cultura dos cristãos, assimilando-a mais depressa do que ela gostaria. Sentia-a disponível para uma metamorfose religiosa, o que a enchia de uma angústia fria. Porém, a resposta de Zaida surpreendeu-a profundamente, bem como à irmã e a todos os presentes naquela magna reunião: Só se ele me levar para Córdova, a terra de meu pai! Olhou para o putativo pretendente, sorriu e acrescentou: Não me parece que o consiga. Gonçalo, ao ouvir tal insinuação, explodiu de irritação: O que dizeis vós, moura atrevida? Acaso me julgais pouco homem? Um silêncio divertido percorreu a tenda. Os convivas esperavam uma resposta de Zaida à altura, ou mesmo uma tirada cruel da irmã, que todos sabiam ser uma provocadora. No seu canto, Raimunda alegrou-se: queria ver se agora Fátima chamava os presentes de porcos, como fizera na Sexta-Feira Santa. Todavia, Zaida apenas respondeu: Ser bom macho não é suficiente para chegar a Córdova vivo.

Aquela referência às forças militares muçulmanas, com que alguém teria de se confrontar para atingir a antiga capital do califado, gerou na tenda uma súbita consciência da fragilidade das forças cristãs na Península. Mesmo sem incursões mouras nos últimos anos, não se conquistara um palmo abaixo de Coimbra. Nem todos ficaram preocupados. Na verdade, o meu melhor amigo era diferente de todos nós. Enquanto os outros sentiam receio dos mouros, Afonso Henriques confessou-me que, quando ouviu aquela frase de Zaida, o seu espírito vagueou por ideais ambiciosos e terras distantes, e imaginou-se, uns anos depois, a caminho de Lisboa, como o seu bisavô Fernando Magno fizera mais de cinquenta anos antes, conquistando terras aos sarracenos.

Certamente por isso, distraiu-se, não ligando às frases seguintes de Gonçalo, que insistia na sua assombrosa masculinidade, o que gerou uma ronda de piadas na mesa, que muito divertiram Chamoa, a julgar pelos risos que libertou. E também não reparou que sua mãe se voltou a levantar... Foi só quando ela proclamou que faltava anunciar um último casamento que ele a mirou, espantado. Paio Soares, meu bom mordomo, não me esqueci de vós. Depois de vários anos viúvo, está na hora de procriardes varões legítimos! Ireis desposar a bela Chamoa Gomes! Nesse momento, ouvi a siderada Chamoa produzir um pequeno uivo, tombando depois, desmaiada, nos braços de Afonso Henriques». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Os olhos repousam, o viajante estaria totalmente regalado se não fosse o remorso de ter feito fugir do recato das muralhas um casal de namorados que estava tratando dos seus amores»

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De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

O Semão aos Peixes

«(…) Em Sendim, são horas de almoço. Que será, onde será. Alguém diz ao viajante: Siga por essa rua fora. Aí adiante há um largo, e no largo é o Restaurante Gabriela. Pergunte pela senhora Alice. O viajante gosta desta familiaridade. A mocinha das mesas diz que a senhora Alice está na cozinha. O viajante espreita à porta, há grandes odores de comida no ar que se respira, um caldeirão de verduras ferve a um lado, e, da outra banda da grande mesa do meio, a senhora Alice pergunta ao viajante que quer ele comer. O viajante está habituado a que lhe levem a ementa, habituado a escolher com desconfiança, e agora tem de perguntar, e então a senhora Alice propõe a Posta de Vitela à Mirandesa. Diz o viajante que sim, vai sentar-se à sua mesa, e para fazer boca trazem-lhe uma suculenta sopa de legumes, o vinho e o pão, que será a posta de vitela? Porquê posta? Então, posta não foi sempre de peixe? Em que país estou, pergunta o viajante ao copo do vinho, que não responde e, benévolo, se deixa beber. Não há muito tempo para perguntas. A posta de vitela, gigantesca, vem numa travessa, nadando em molho de vinagre, e para caber no prato tem de ser cortada, ou ficaria a pingar para a toalha. O viajante julga estar sonhando. Carne branda, que a faca corta sem esforço, tratada no exacto ponto, e este molho de vinagre que faz transpirar as maçãs do rosto e é cabal demonstração de que há uma felicidade do corpo. O viajante está comendo em Portugal, tem os olhos cheios de paisagens passadas e futuras, enquanto ouve a senhora Alice a chamar da cozinha e a mocinha das mesas ri e sacode as tranças.

Dossel, e Maus Caminhos

O viajante é natural de terras baixas, muito lá para o sul, e, sabendo pouco destes montes, esperava-os maiores. Já o disse, e torna a dizer. Não faltam os acidentes, mas são tudo colinas de boa vizinhança, altas em relação ao nível do mar, mas cada qual ombro com ombro da que está próxima e todas perfiladas. Em todo o caso, se alguma se atreve um pouco mais ou espigou de repente, então sim, tem o viajante uma diferente noção destas grandezas, não tanto pelo que está perto, mais por aquela vultosa serra ao longe. Chegando-se-lhe, percebe-se que a diferença não era assim tão grande, mas bastou para promessa de um momento. Esta linha férrea que vai ao lado da estrada parece de brincadeira, ou restos de solene antiguidade. O viajante, cujo sonho de infância foi ser maquinista de caminhos-de-ferro, desconfia que a locomotiva e as carruagens são desse tempo, objectos de museu a que o vento que vem dos montes não consegue sacudir as teias de aranha. Esta linha é a do Sabor, do nome do rio que se torce e retorce para alcançar o Douro, mas onde esteja o gosto da traquitana, isso não descobre o viajante. Sem dar por que passou a serra, o viajante chega a Mogadouro. A tarde vai descaindo, ainda luminosa, e do alto do castelo se podem deitar contas ao trabalho dos homens e das mulheres deste lugar. Todas as encostas em redor estão cultivadas, é um jogo de canteiros e talhões, uns enormes, outros mais pequenos, como se servissem apenas para preencher as sobras dos grandes. Os olhos repousam, o viajante estaria totalmente regalado se não fosse o remorso de ter feito fugir do recato das muralhas um casal de namorados que estava tratando dos seus amores. Aqui em Mogadouro ficou ilustrado, uma vez mais, o antigo conflito entre acção e intenção». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

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JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita, 

Viagem a Portugal. José Saramago. «Torna o viajante sobre os seus passos, distraído do caminho que já conhece, em Malhadas vem-lhe a tentação de parar e pedir o almoço prometido, porém tem seus acanhamentos, mesmo sabendo que deles virá a arrepender-se»

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De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

O Semão aos Peixes

«(…) Os castanheiros estão cobertos de ouriços, tantos que fazem lembrar bandos de pardais verdes que nestes ramos tivessem pousado a ganhar forças para as grandes migrações. O viajante é um sentimental. Pára o carro, arranca um ouriço, é uma recordação simples para muitos meses, já o ouriço ressequiu, e pegar nele é tornar a ver o grande castanheiro da beira da estrada, sentir o ar vivíssimo da manhã, tanta coisa cabe afinal numa campestre promessa de castanha. Vai a estrada em curvas descendo para Vimioso, e o viajante contente murmura: Que lindo dia. Há nuvens no céu, daquelas soltas e brancas que passeiam pelo campo sombras esparsas, um correr de pouco vento, parece o mundo que acabou agora de nascer. Vimioso está construído numa encosta suave, é vila sossegada, isto é o que parece ao viajante de passagem que não se vai demorar, apenas o tempo de pedir informações a esta mulher. E aqui registará a primeira desilusão. Tão prestável estava sendo a informadora, por pouco não daria a volta aos bairros a mostrar as raridades locais, e afinal o que queria era vender as toalhas do seu fabrico.

Não se pode levar a mal, mas o viajante está nos seus princípios, julga que o mundo não tem mais que fazer senão dar-lhe informações. Por uma rua abaixo foi descendo e lá ao fundo teve o prémio. É certo que, aos seus olhos desabituados de arquitecturas sacras rurais, tudo ganha facilmente foros de maravilha, porém não é pequeno prazer dar por estes contrastes entre frontarias seiscentistas, robustas, mas com primeiros sinais de certa frieza barroca, e o interior da nave, baixa e ampla, com uma atmosfera romântica que nenhum elemento arquitectónico confirma. Contudo, não é este o verdadeiro prémio. À sombra das árvores, cá fora, sentado nos degraus que dão acesso ao adro, o viajante ouve contar uma história da história da construção do templo. Com a condição de ter capela privativa, certa família ofereceu uma junta de bois para acarretar a pedra destinada ao levantamento da igreja. Levaram nisto os boizinhos dois anos, tão contados os passos entre a pedreira e o telheiro dos alvenéis, que por fim era só carregar o carro, dizer ala, e os animais se encarregavam de ir e vir sem boieiro nem guardador, atroando aqueles ermos com o gemer dos cubos mal ensebados, em grandes conversas sobre a presunção dos homens e das famílias. Quis o viajante saber que capela é essa e se há ainda descendentes habilitáveis ao usufruto. Não lho souberam dizer. Lá dentro não viu sinais particulares de distinção, mas pode ser que ainda existam. Fica o conto exemplar duma família que de si própria nada deu, salvo os bois, encarregados de abrir, com grande canseira, a estrada que haveria de levar os donos ao paraíso.

Torna o viajante sobre os seus passos, distraído do caminho que já conhece, em Malhadas vem-lhe a tentação de parar e pedir o almoço prometido, porém tem seus acanhamentos, mesmo sabendo que deles virá a arrepender-se. Na povoação de Duas Igrejas é que vivem os pauliteiros. Destes nada ficará a saber o viajante, nem são horas de andarem os dançarinos a paulitar pelas ruas. Já ficou mostrado que tem o viajante direito às suas imaginações, e nisto de pauliteiros não é de hoje nem é de ontem que presume que mais bela e fragorosa dança seria se, em vez de paulitos, batessem e cruzassem os homens sabres ou adagas. Então, sim, teria o Menino Jesus da Cartolinha boas e militares razões para passar revista a este exército de bordados, coletinhos e lenços ao pescoço. É o defeito do viajante: quer ter mais do que o bom que tem. Que lho perdoem os pauliteiros». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

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terça-feira, 25 de outubro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Mais fácil é contar dinheiro, tantas notas por este boi, leve lá o animal, que vai muito bem servido»

 

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De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

O Semão aos Peixes

«(…) Viajar deveria ser outro concerto, estar mais e andar menos, talvez até se devesse instituir a profissão de viajante, só para gente de muita vocação, muito se engana quem julgar que seria trabalho de pequena responsabilidade, cada quilómetro não vale menos que um ano de vida. Lutando com estas filosofias, acaba o viajante por adormecer, e quando de manhã acorda lá esta a pedra amarela, é o destino das pedras, sempre no mesmo sítio, salvo se vem o pintor e a leva no coração. À saída de Miranda do Douro, vai o viajante aguçando a observação para que nada se perca ou alguma coisa se aproveite, e por isso é que reparou num pequeno rio que por aqui passa. Ora, os rios têm nomes, e este, tão perto de se juntar ao encorpado Douro, como lhe terão chamado? Quem não sabe, pergunta, e quem pergunta, tem às vezes resposta: Ó senhor, como se chama este rio? Este rio chama-se Fresno. Fresno? Sim senhor, Fresno. Mas fresno é palavra espanhola, quer dizer freixo.

Por que é que não dizem rio Freixo? Ah, isso não sei. Sempre assim lhe ouvi chamar. No fim das contas, tanta luta contra os Espanhóis, tantas más-criações nas fronteiras das casas, até ajudas do Menino Jesus, e aqui está este Fresno, dissimulado entre margens gostosas, a rir-se do patriotismo do viajante. Lembra-se ele dos peixes, do sermão que lhes fez, distrai-se um pouco nessa recordação, e já está perto da aldeia de Malhadas quando se lhe acende o espírito: Quem sabe se fresno não será também uma palavra do dialecto mirandês? Leva ideia de fazer a pergunta, mas depois esquece-se, e quando muito mais tarde torna à sua dúvida, decide que o caso não tem importância. Ao menos para o seu uso, passou fresno a ser português.

Malhadas fica a deslado da estrada principal, desta que se segue para Bragança. Aqui perto há restos de uma via romana que o viajante não vai procurar. Mas quando dela fala a um lavrador e a uma lavradeira que encontra à entrada da aldeia, respondem-lhe: Ah, isso é a estrada mourisca. Pois seja a estrada mourisca. Agora, aquilo que o viajante quer saber é o porquê e o como deste tractor donde o lavrador desce com o à vontade de quem usa coisa sua. Tenho pouca terra, só para mim não daria. Mas alugo-o de vez em quando aos vizinhos, e assim vamos vivendo. Ficam os três ali de conversa, falando das dificuldades de quem tem filhos a sustentar, e é patente que está outro para breve. Quando o viajante diz que vai até Vimioso e depois tornará a passar por ali, a lavradeira, sem ter de pedir licença ao marido, convida: Nós moramos nesta casa, almoça com a gente, e bem se vê que é de vontade, que o pouco ou o muito que estiver na panela seria dividido em partes desiguais, porque é mais do que certo que o viajante teria no seu prato a parte melhor e maior. O viajante agradece muito e diz que ficará para outro dia. Afasta-se o tractor, recolhe a mulher a casa: São uns palheiros, tinha ela dito, e o viajante dá uma volta pela aldeia, mal chega a dá-la, porque de súbito surge-lhe pela frente uma gigantesca tartaruga negra, é a igreja do lugar, de grossíssimas paredes, uns enormes botaréus de reforço que são as patas do animal. No século XIII, e nestas bandas de Trás-os-Montes, não se saberia muito de resistência de materiais, ou então o construtor era homem desconfiado das seguranças do mundo e resolveu edificar para a eternidade. O viajante entrou e viu, foi ao campanário e ao telhado e dali passeou os olhos em redor, um pouco intrigado com uma terra transmontana que não se descai nos vales e precipícios abruptos que a imaginação lhe preparara. Enfim, cada coisa a seu tempo, isto é um planalto, não deve o viajante ralhar com a sua fantasia tanto mais que ela o serviu quando fez da igreja tartaruga, só lá indo se saberá como é justa e rigorosa a comparação. Duas léguas adiante está Caçarelhos. Aqui diz Camilo que nasceu o seu Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado de Agra de Freimas, herói patego e patusco da Queda Dum Anjo, novela de muito riso e alguma melancolia.

Considera o viajante que o dito Camilo não escapa à censura que acidamente desferiu contra Francisco Manuel do Nascimento, acusado este de galhofar com a Samardã, como antes outros tinham chalaceado com Maçãs de D. Maria, Ranhados ou Cucujães. Juntando Elói a Caçarelhos tornou Caçarelhos risível, ou será isto defeito do nosso espírito, como se tivéssemos de acreditar ser a culpa das terras e não de quem nelas nasce. A maçã é bichosa por doença da macieira, e não por maldade do torrão. Fique então dito que esta aldeia não sofre de pior maleita que a distância, aqui nestes cabos do mundo, nem provavelmente tem o seu nome que ver com o que no Minho se diz: caçarelho é fulano tagarela, incapaz de guardar um segredo. Há-de ter Caçarelhos os seus: ao viajante ninguém lhos contou, quando atravessava o campo da feira, que hoje é dia de vender e comprar gado, estes belos bois cor de mel, olhos que são como salvadoras bóias de ternura, e os beiços brancos de neve, ruminando em paz e serenidade, enquanto um fio de baba devagar escorre, tudo isto debaixo duma floresta de liras, que são as córneas armações, caixas-de-ressonância naturais do mugido que, uma vez por outra, se ergue do ajuntamento. Certamente há nisto segredos, mas não daqueles que as palavras podem contar. Mais fácil é contar dinheiro, tantas notas por este boi, leve lá o animal, que vai muito bem servido». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

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segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Havia cerco, a fome já era muita, os sitiados desanimavam, enfim, estava Miranda perdida. Eis senão quando, isto é o que se diz, avança ali um garoto…»

 

jdact e cortesia de wikipedia

 De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

O Semão aos Peixes

«(…) Em quinhentos anos ninguém se lembrou de mandar picar ou desmontar a insolência, prova inesperada de que o português não é alheio ao humor, salvo se só o entende quando lhe serve os patriotismos. Não se aprendeu aqui com a fraternidade dos peixes do Douro, mas talvez haja boas razões para isso. Afinal, se as potências celestiais favoreceram um dia os Portugueses contra os Espanhóis, mal parecia que os humanos deste lado passassem por cima das intervenções do alto e as desautorizassem. O caso conta-se brevemente.

Andavam acesas as lutas da Restauração, meados portanto do século XVII, e Miranda do Douro, aqui à beirinha do Douro, estava, por assim dizer, a um salto duma pulga de acometidas do inimigo. Havia cerco, a fome já era muita, os sitiados desanimavam, enfim, estava Miranda perdida. Eis senão quando, isto é o que se diz, avança ali um garoto a gritar às armas, a incutir ânimo e coragem onde coragem e ânimo estavam desfalecendo, e de tal maneira que em dois tempos se levantaram todas aquelas debilidades, tomam armas verdadeiras e inventadas, e atrás do infante vão-se aos Espanhóis como se malhassem em centeio verde. São desbaratados os sitiantes, triunfa Miranda do Douro, escreveu-se outra página nos anais da guerra. Porém, onde está o chefe deste exército? Onde está o gentil combatente que trocou o pião pelo bastão de marechal de campo? Não está, não se encontra, ninguém o viu mais. Logo, foi milagre, dizem os mirandeses. Logo, foi o Menino Jesus. O viajante confirma. Se foi capaz de falar aos peixes e eles capazes de o ouvirem, não tem agora nenhum motivo para desconfiar das antigas estratégias. Tanto mais que aqui está ele, o Menino Jesus da Cartolinha, com a sua altura de dois palmos, à cinta a espada de prata, a faixa vermelha atravessando do ombro para o lado, laço branco ao pescoço, e a cartola no alto da sua redonda cabeça de criança. Este não é o fato da vitória, apenas um do seu confortável guarda-roupa, completo e constantemente posto em dia, como ao viajante está mostrando o sacristão da Sé. É sabedor do seu mister de guia este sacristão, e, porque dá tento da minuciosa atenção do viajante, leva-o a uma dependência lateral onde tem recolhidas diversas peças de estatuária, defendendo-as assim das tentações dos gatunos de ofício e ocasião. Aí se confirmam as coisas. Uma pequena tábua, esculpida em alto-relevo, acaba de convencer o viajante da sua própria incipiência em matéria de milagres. Eis Santo António recebendo genuflexão duma ovelha, que assim está dando exemplar lição de fé ao pastor descrente que se tinha rido do santo e ali, na escultura, evidentemente, se mostra corrido de vergonha e por isso talvez ainda merecedor de salvação. Diz o sacristão que muita gente fala desta tábua, mas que poucos a conhecem. Escusado será dizer que o viajante não cabe em si de vaidade. Veio de tão longe, sem empenhos, e só por ter cara de boa pessoa o admitiram ao conhecimento destes segredos. Esta viagem vai no princípio, e sendo o viajante escrupuloso como é, aqui lhe morde o primeiro sobressalto. Afinal, que viajar é este? Dar uma volta por esta cidade de Miranda do Douro, por esta Sé, por este sacristão, por esta cartolinha e esta ovelha, e, isto feito, marcar uma cruz no mapa, meter rodas à estrada, e dizer, como o barbeiro enquanto sacode a toalha: O senhor que se segue». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

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domingo, 23 de outubro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Caiu em meditação, felizmente por pouco tempo: ali perto, fora das muralhas, estrondeou o motor de um bulldozer, havia obras de terraplenagem para uma nova estrada, é o progresso às portas da Idade Média»

 

jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

O Semão aos Peixes

«De memória de guarda da fronteira, nunca tal se viu. Este é o primeiro viajante que no meio do caminho pára o automóvel, tem o motor já em Portugal, mas não o depósito da gasolina, que ainda está em Espanha, e ele próprio assoma ao parapeito naquele exacto centímetro por onde passa a invisível linha da fronteira. Então, sobre as águas escuras e profundas, entre as altas escarpas que vão dobrando os ecos, ouve-se a voz do viajante, pregando aos peixes do rio: Vinde cá, peixes, vós da margem direita que estais no rio Douro, e vós da margem esquerda que estais no rio Duero, vinde cá todos e dizei-me que língua é a que falais quando aí em baixo cruzais as aquáticas alfândegas, e se também lá tendes passaportes e carimbos para entrar e sair. Aqui estou eu, olhando para vós do alto desta barragem, e vós para mim, peixes que viveis nessas confundidas águas, que tão depressa estais duma banda como da outra, em grande irmandade de peixes que uns aos outros só se comem por necessidades de fome e não por enfados de pátria. Dais-me vós, peixes, uma clara lição, oxalá não a vá eu esquecer ao segundo passo desta minha viagem a Portugal, convém a saber: que de terra em terra deverei dar muita atenção ao que for igual e ao que for diferente, embora ressalvando, como humano é, e entre vós igualmente se pratica, as preferências e as simpatias deste viajante, que não está ligado a obrigações de amor universal, nem isso se lhe pediu. De vós, enfim, me despeço, peixes, até um dia, ide à vossa vida enquanto por aí não vêm os pescadores, nadai felizes, e desejai-me boa viagem, adeus, adeus.

Bom milagre foi este para começar. Uma aragem súbita encrespou as águas, ou terá sido o rebuliço dos peixes mergulhando, e mal o viajante se calou não havia mais que ver do que o rio e escarpas dele nem mais que ouvir do que o murmúrio adormecido do motor. É esse o defeito dos milagres: não duram muito. Mas o viajante não é taumaturgo de profissão, milagrosa por acidente, por isso já está resignado quando regressa ao automóvel. Sabe que vai entrar num país abundoso em fastos de sobrenatural, de que logo é assinalado exemplo esta primeira cidade de Portugal por onde vai entrando, com seu vagar de viajante minucioso, cuja se chama Miranda do Douro. Há-de pois recolher com modéstia as suas próprias veleidades, e decidir-se a aprender tudo. Os milagres e o resto. Esta tarde é de Outubro. O viajante abre a janela do quarto onde passará a noite e, no imediato relance de olhos, descobre ou reconhece que é pessoa de muita sorte. Podia ter na sua frente um muro, um canteiro enfezado, um quintal com roupa pendurada, e havia de contentar-se com essa utilidade, essa decadência, esse estendal. Porém, o que vê é a pedregosa margem espanhola do Douro, de tão dura substância que o mato mal lhe pôde meter o dente, e porque uma sorte nunca vem só, está o Sol de maneira que a escarpada parede é uma enorme pintura abstracta em diversos tons de amarelo, e nem apetece daqui sair enquanto houver luz. Neste momento ainda o viajante não sabe que alguns dias mais tarde há-de estar em Bragança, no Museu do Abade de Baçal, olhando a mesma pedra e talvez os mesmos amarelos, agora num quadro de Dórdio Gomes. Sem dúvida pode abanar a cabeça e murmurar: Como o mundo é pequeno...

Em Miranda do Douro, por exemplo, ninguém seria capaz de se perder. Desce-se a Rua da Costanilha, com as suas casas do século XV, e quando mal nos precatamos passámos uma porta da muralha, estamos fora da cidade olhando os grandes vales que para poente se estendem, cobre-nos um grande silêncio medieval, que tempo é este e que gente. A um dos lados da porta está um grupo de mulheres, todas vestidas de preto, conversam em voz baixa, nenhuma delas é nova, quase todas, provavelmente, já não se lembram de o terem sido. O viajante leva ao ombro, como lhe compete, a máquina fotográfica, mas envergonha-se, ainda não está habituado aos atrevimentos que os viajantes costumam ter, e por isso não ficou memória de retrato daquelas sombrias mulheres que estão falando ali desde o princípio do mundo. O viajante fica melancólico e augura mal de viagem que assim começa. Caiu em meditação, felizmente por pouco tempo: ali perto, fora das muralhas, estrondeou o motor de um bulldozer, havia obras de terraplenagem para uma nova estrada, é o progresso às portas da Idade Média. Torna a subir a Costanilha, diverge para outras caladas e varridíssimas ruas, ninguém às janelas, e por falar em janelas, descobre sinais de velhos rancores voltados para Espanha, mísulas obscenas talhadas na boa pedra quatrocentista. Dá vontade de sorrir esta saudável escatologia que não teme ofender os olhos das crianças nem os aborrecidos defensores da moral». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

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Lynn Sholes e Joe Moore. O Projecto Hades. «.A conspiração ficou conhecida na comunicação social como a conspiração do Graal. Vou ligar para ele assim que encontrar um momento de paz e conseguir raciocinar direito»

Cortesia de wikipedia e jdact

 «A descida ao Hades é a mesma a partir de todos os lugares». In Anaxágoras, filósofo grego, 500-428 a.C»

O Dia Seguinte

«(…) Ted deu uma risada forçada. Depois completou: John ligou. Sei, ele ligou para o meu telemóvel, mas eu estava ao vivo no ar com a BBC. Ela visualizou a imagem de John Tyler: seu sorriso, seus olhos..., os mais azuis que já vira. Provavelmente o único homem que ela amara na vida. Você sempre quer o que jamais poderá ter, Cotten Stone. O cardeal John Tyler era o director dos Venatori, a agência de inteligência ultrassecreta do Vaticano, e a pessoa mais importante na vida dela. Eles haviam se conhecido anos antes, quando ela ainda era uma repórter novata, uma foca, e ele era um padre licenciado das suas obrigações mas não dos seus votos. Juntos, eles descobriram e impediram uma tentativa de clonagem de Cristo. A conspiração ficou conhecida na comunicação social como a conspiração do Graal. Vou ligar para ele assim que encontrar um momento de paz e conseguir raciocinar direito.

Eu garanti para ele que você estava bem, apesar de um pouco machucada. Ele disse que estava acompanhando todas as reportagens. De qualquer maneira, estou certo de que os russos já prestaram todas as informações ao Vaticano. Ele está preocupado com você, Cotten. Eu se, desabafou ela com um suspiro e fechou os olhos. Ted, estou completamente exausta. Vou precisar dormir um pouco antes do meu voo de amanhã. Não se prenda por mim nem mais um minuto, garota. Simplesmente descanse e volte sã e salva. Feito. Ah, a propósito. Antes que eu esqueça, alguém mais ligou procurando você..., quero dizer, além da montanha de solicitações de entrevista na imprensa. Quem? Disse que era uma velha amiga da sua cidade natal. Viu você no noticiário e procurou entrar em contato na hora. Tinha alguma coisa a ver com a filha dela. Você anotou o nome? Cotten ouviu o ruído de papel folheado através do telefone. Aqui está. Jordan, Lindsay Jordan. Eu disse a ela onde você estava hospedada. Espero que não se importe. Pareceu sincera.

Não, tudo bem. Não tenho notícias de Lindsay há uma eternidade. Então é isso aí, garota. Descanse. Não vemos a hora de você estar de volta. Eu digo o mesmo. Obrigada, Ted. Cotten apertou o botão para finalizar a ligação. Iria esperar um pouco para ligar para John quando fosse capaz de pensar com clareza. No momento, tudo o que queria era uma boa noite de descanso. Observou os últimos raios de sol desaparecerem e o manto das luzes da cidade ganhar vida por toda a capital da Rússia. Lindsay Jordan? A sua melhor amiga desde a infância até ao colégio. Porque estaria ligando depois de tantos anos?

Tera

O som dos grilos lembrou a Lindsay Jordan que esquecera a janela aberta. Era descuido. Descuido demais. Ela fechou a janela e verificou a fechadura de latão. Mais cedo, pouco antes do anoitecer, Tera, a sua filha de 8 anos de idade, estivera olhando pela janela. Lindsay a abrira para a menina. Em que você está pensando tanto, Tera? A resposta da filha abalara Lindsay a tal ponto que ela se esquecera da janela aberta até aquele momento. Lindsay verificou o ferrolho da tranca da porta da frente antes de se encaminhar para o quarto. Olhou para o telefone, tentando se decidir se faria ou não a ligação. Como se explicaria sem parecer que estava louca?

Dane-se, murmurou, erguendo uma fotografia do marido da mesinha de canto ao lado do sofá. Depois a embalou junto ao peito. Às vezes não só lamentava a perda dele, mas o culpava indignada por morrer e deixá-la só, com a filha para criar. Lindsay devolveu a fotografia emoldurada à mesinha antes de se dirigir lentamente para o corredor, seguindo o brilho suave da luz nocturna. Em silêncio, abriu a porta do quarto da filha e observou. Tera dormia profundamente, curvada sob a colcha cor-de-rosa com gravuras de bailarinas em poses estudadas. Os cachos do cabelo louro da menina espalhavam-se sobre a fronha cor-de-rosa. Seu bicho de pelúcia favorito descansava em baixo do queixo delicado. Tera é tão querida, pensou Lindsay.

Ficou olhando para a filha única durante vários minutos até que o medo em seu íntimo evoluísse para um pânico incontrolável e ela teve receio de gritar e acordar Tera. Fechou a porta e voltou para a sala. De novo, olhou para o telefone». In Lynn Sholes e Joe Moore, O Projecto Hades, 2007, Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-105-888-0.

Cortesia de EPEAmérica/JDACT

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sábado, 22 de outubro de 2022

O Projecto Hades. Lynn Sholes e Joe Moore. «Foi tudo muito bem planeado, Ted. Ironicamente, o presidente me contou que nada acontece por acaso numa igreja russa. Rapaz, ele estava certo. Quais foram os danos na catedral?...»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A descida ao Hades é a mesma a partir de todos os lugares». In Anaxágoras, filósofo grego, 500-428 a.C»

O Dia Seguinte

«(…) Os russos estão considerando-a como uma heroína nacional, comentou o director de reportagem da SNN, Ted Casselman. Ouvi dizer, replicou Cotten ao telefone móvel. Ela olhava para o rio Moscou do apartamento no décimo andar do Hotel Rossiya, vinte horas depois do ataque dos rebeldes chechenos. Observando um barco de turismo deslizar pelo rio, ela visualizou Ted Casselman, seu chefe, amigo e mentor. O homem negro de 48 anos de idade tinha sido como um pai para ela desde que começara a trabalhar para a Satellite News Network, mais de sete anos antes. Graves problemas de saúde obrigaram Ted a ir mais devagar, mas ele ainda dirigia o departamento de reportagem com a força de um general e o coração de um ursinho de estimação. Ted sempre saíra em seu socorro todas as vezes que sofrera algum revés e a empurrara para posições de maior importância quando ela hesitara. Sem a orientação e o apoio de Ted, a carreira dela como correspondente de notícias nunca teria evoluído.

A sua fotografia ao lado do presidente russo no hospital saiu na primeira página de praticamente todos os jornais do mundo. Cotten observou o barco de turismo desaparecer atrás de uma curva. Estou profundamente chocada com o que aconteceu com a minha equipa, especialmente os que foram mortos. Eu mal tinha acabado de conhecer os rapazes antes da gravação. Mal consigo me lembrar do nome deles. O nosso escritório em Moscovo informou que o cameraman vai sobreviver. Ele ficou gravemente ferido, mas graças a Deus, deve sair dessa. O sonoplasta era de Minsk. Vão trasladar o corpo amanhã de manhã. Estamos cuidando de toda a papelada. Cotten abanou a cabeça. Não consigo esquecer a cena..., os gritos, os corpos caindo ao chão, as balas atingindo as pessoas e ricocheteando nas pedras. Parece que aqueles sons vão continuar ecoando para sempre.

Houve um longo intervalo silencioso. Então Ted disse: Vi todas as reportagens e entrevistas, incluindo as suas. O governo está evitando comentar o assunto. Eles realmente sabem como os rebeldes chegaram até lá? Ouvi dizer que já prenderam seis oficiais superiores das forças armadas russas..., simpatizantes que ajudaram os assassinos a conseguir identidades falsas, e todo o resto. É uma bagunça. Todos no Kremlin está com o pé atrás. Se isso tivesse acontecido nos velhos tempos, esses traidores teriam sido arrastados para a rua e eliminados. Essa ainda é uma boa possibilidade. Os rebeldes escolheram um momento perfeito para uma tentativa de assassinato, comentou Ted. A situação ideal..., um grupo pequeno, pouca segurança, uma igreja vazia.

Foi tudo muito bem planeado, Ted. Ironicamente, o presidente me contou que nada acontece por acaso numa igreja russa. Rapaz, ele estava certo. Quais foram os danos na catedral?, quis saber Ted. Um desastre. O curador calcula que vai levar alguns anos antes que a igreja possa voltar a ser aberta ao público. No entanto, mesmo que possam reabrir, nada na catedral é substituível. Os tesouros guardados ao longo de séculos estão destruídos. E quanto aos seus ferimentos? Cotten correu o olhar pelos curativos nas pernas e no braço. O que consta como compensação por ferimentos em combate no meu contrato? Você não tem um contrato. Então acho que vou sobreviver. Os conspiradores não devem estar muito felizes a seu respeito. Você acha que está segura? O governo esvaziou este andar do hotel e colocou dois russos do tamanho de um armário cada um de um lado da minha porta. Estou impressionado. Ei, quando salvou a vida do presidente, você precisou sair por aí acompanhado de guardas portando metralhadoras». In Lynn Sholes e Joe Moore, O Projecto Hades, 2007, Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-105-888-0.

Cortesia de EPEAmérica/JDACT

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sexta-feira, 21 de outubro de 2022

O Projecto Hades. Lynn Sholes e Joe Moore. «Irrompendo precipitadamente no frio da noite de Moscovo, Cotten observou uma cena surreal, um mar de veículos militares e policiais correndo pela praça Vermelha»

 

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«A descida ao Hades é a mesma a partir de todos os lugares». In Anaxágoras, filósofo grego, 500-428 a.C»

A Tumba

«(…) Eles cambalearam para dentro do que parecia um depósito. Um aperto no interruptor acendeu uma lâmpada no tecto. Pela aparência do lugar, Cotten concluiu que o aposento não vinha sendo usado havia muito tempo, talvez décadas. No entanto, alguém cuidara de manter a iluminação em perfeitas condições. Seria uma rota de fuga para uma ocasião como aquela? Rápido, tranque a porta, apressou o presidente. Cotten avistou uma grossa barra de metal. Ela a enfiou na posição certa para trancar a porta. E agora?, quis saber do presidente. Ele gesticulou para outra porta na parede oposta. Por ali. Cotten segurou a maçaneta e empurrou. Quando a porta recuou, ela viu um corredor, dessa vez feito do que parecia ser mármore preto, piso, tecto, paredes, tudo escuro e reluzente. A iluminação era indirecta, suave e moderna. Quando ela fechou a porta atrás deles, ouviu batidas na porta da entrada do túnel. Os rebeldes não conseguiam passar. Mas por quanto tempo?

Vamos! O presidente apontou para os fundos de um saguão estreito. Alguns passos depois, eles entraram num aposento espaçoso. Esse também era todo preto e com iluminação suave. As paredes exibiam grandes desenhos de raios, e uma carpete vermelha e bem grossa cobria o piso. No centro, situava-se um grande expositor embutido em vidro. Menor no fundo e iluminado de cima, o expositor tinha paredes de vidro espessas sustentadas por uma estrutura metálica. De maneira sombria, ele parecia reluzir. Cotten levou apenas alguns segundos para perceber o que estava vendo. Um sarcófago.

Ali diante dela, deitado em repouso e protegido por trás do vidro, estava o corpo de um homem. O rosto cerúleo, a cabeça descansando sobre uma almofada branca. Ele envergava um traje preto, camisa branca de colarinho e gravata. A mão direita estava fechada. Esse é...?, indagou Cotten. Sim, confirmou o presidente com um esforço desmedido. Ele acenou para tomarem o caminho ao redor do expositor do caixão. No lado oposto, um corredor largo dava numa entrada formal. Estamos presos aqui?, quis saber ela. As portas foram projectadas para se abrir pelo lado de dentro em caso de emergência. O presidente se curvou de encontro à parede e pressionou um grande botão vermelho instalado ao lado das portas. Com uma rajada de ar e um rangido, elas se abriram totalmente. De imediato, os alarmes e sirenes soaram enquanto luzes vermelhas intermitentes acenderam-se no tecto.

Irrompendo precipitadamente no frio da noite de Moscovo, Cotten observou uma cena surreal, um mar de veículos militares e policiais correndo pela praça Vermelha. Eles seguiam na direcção da entrada pela Torre do Salvador para o Kremlin, em resposta ao ataque rebelde, mas atraídos pelas sirenes e luzes provenientes do mausoléu, muitos retardaram a marcha e mudaram de direcção. Aqui!, bradou Cotten, acenando. Ajudem aqui! De repente, o presidente pareceu aumentar de peso, as suas pernas se dobraram e ele caiu. Cotten inclinou-se ao lado dele sobre as frias pedras arredondadas do calçamento ao redor da tumba de Lenine». In Lynn Sholes e Joe Moore, O Projecto Hades, 2007, Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-105-888-0.

Cortesia de EPEAmérica/JDACT

Lynn Sholes, Joe Moore, JDACT, Mistério, Conhecimento, 

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Arrancados da Terra. Lira Neto. «O cemitério judaico de St. James Place é um dos poucos vestígios dessa aventura ainda envolta em brumas. Uma saga que, caso seja considerada, permite estabelecer uma ligação directa entre as fogueiras da Inquisição (maldita) na Península Ibérica…»

 

jdact

«(…) Na Peter Minuit Plaza, que recebeu esse nome, aliás, em homenagem a um dos directores da comunidade holandesa em Manhattan, encontra-se outro portal do tempo para a história de que trata este livro. Logo à entrada da praça, na base do mastro onde luzem as estrelas e listas da bandeira dos Estados Unidos, uma placa inaugurada em 1954, no tricentenário de um episódio quase mítico ocorrido em Nova Amesterdão, apresenta a imagem de dois leões ladeando a estrela de David, símbolos do judaísmo. Logo abaixo deles, lê-se a inscrição:

EDIFICADO PELO

ESTADO DE NOVA IORQUE

PARA HONRAR A MEMORIA

DOS VINTE E TRÊS HOMENS, MULHERES E CRIANÇAS

QUE DESEMBARCARAM EM SETEMBRO DE 1654

E FUNDARAM A PRIMEIRA COMUNIDADE JUDAICA

NA AMÉRICA DO NORTE

Quem eram, afinal de contas, as tais 23 pessoas que aportaram em Manhattan no longínquo ano de 1654? Em que navio chegaram? De onde vinham? Seriam procedentes do Brasil, como muitos querem crer? Deixaram esses homens, mulheres e crianças evidências concretas, marcas incontestáveis da sua existência? É possível estabelecer, com solidez de fontes, as suas identidades e reconstituir as suas respectivas trajectórias? Ou não passará tudo de uma epopeia tão heróica quanto falsa, contrafacção histórica, mito de origem, como afirmam os investigadores mais cépticos?

É preciso procurar meticulosamente os fragmentos de um intrincado quebra-cabeça, para recompor as possíveis circunstâncias do episódio celebrado em bronze. Há peças desse enigma que não parecem encaixar, outras talvez permaneçam perdidas para sempre. Os documentos são esparsos, fugidios, exigindo múltiplos esforços de interpretação para produzir uma narrativa consistente, um relato que faça o mínimo sentido.

O cemitério judaico de St. James Place é um dos poucos vestígios dessa aventura ainda envolta em brumas. Uma saga que, caso seja considerada, permite estabelecer uma ligação directa entre as fogueiras da Inquisição (maldita) na Península Ibérica, a opulência da época de ouro dos Países Baixos, as guerras sangrentas do chamado Brasil holandês, e os primórdios da cosmopolita Nova Iorque. Como pano de fundo de toda essa trama, sobressai a vida eternamente à deriva dos que, para fugir à morte, se lançavam para os confins de outras terras e o desconhecido de novos mundos». In lira Neto, Arrancados da Terra, 2021, Penguin Random-House Grupo Editorial, 2021, chancela Objectiva, ISBN 978-989-784-257-3.

Cortesia de PRHGEditorial/JDACT

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quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Arrancados da Terra. Lira Neto. «… os nativos chamavam Manna-hata ouMan-a-ha-tonh (lugar onde se colhe madeira para fazer arcos [de flechas], segundo alguns; ilha de muitas colinas, para outros)…»

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«(…) Wall Street, a Rua da Muralha, recebeu esse nome devido à paliçada de madeira que existia na rectaguarda da povoação, para servir de protecção contra o ataque de índios, corsários, piratas e demais invasores. Constituído por estacas sólidas de pontas afiadas, com três metros de altura e cravado a mais de um metro de profundidade, o paredão tinha cerca de 700 metros de extensão. Atravessava a ilha de ponta a ponta no sentido longitudinal, do limite do East River às imediações da actual Trinity Church, a tradicional igreja anglicana na esquina de Wall Street com a Broadway, faixa de território então banhada pelas águas do rio Hudson (tudo a oeste dessa parte da ilha também é fruto de aterros posteriores).

No local em que havia a tosca amurada, os oito quarteirões da moderna Wall Street tornaram-se o símbolo máximo do poder financeiro. A exemplo do que ocorre nos demais cruzamentos da rua, a intersecção com Water Street é assinalada pela presença de executivos e trabalhadores de fatos sóbrios que se misturam com turistas de máquina fotográfica a tiracolo. A cada instante, do alto dos autocarros de dois andares apinhados de turistas, câmaras de telemóveis apontam em todas as direcções. Cinco cruzamentos adiante, deixando para trás os engravatados de ar impaciente e os forasteiros que caminham, abismados, de pescoço erguido, alcança-se a Peter Minuit Plaza, no ponto mais meridional da ilha.

Basta olhar em redor para constatar que quase ninguém se detém, por um minuto sequer, diante de um pequeno bloco de granito bruto a um dos cantos da praça. Nele está afixada a maquete em bronze de uma velha cidade colonial chamada Nova Amesterdão,- o nome com o qual os holandeses, primeiros colonizadores de uma região a que os nativos chamavam Manna-hata ouMan-a-ha-tonh (lugar onde se colhe madeira para fazer arcos [de flechas], segundo alguns; ilha de muitas colinas, para outros), baptizaram o que viria a ser Nova Iorque.

Embora seja detalhado, retratando casas de padrão holandês com telhados inclinados, sistemas de canais navegáveis, uma fortaleza à beira da água e até um típico moinho de vento, o mapa tridimensional em bronze não parece despertar a atenção dos passantes. Estes mostram-se mais interessados em seguir céleres para a esquerda, para apanhar o próximo ferry com destino a Staten Island, passeio com direito à visão das skyline de Manhattan sobre as águas; ou sobretudo à direita, a fim de enfrentar a fila quilométrica da bilheteira dos barcos que levam à Estátua da Liberdade. Mesmo entre os nova-iorquinos, a história de Nova Amesterdão ainda está rodeada por uma aura de mistério e desconhecimento. É provável que muitos dos cidadãos da ilha não associem as cores branca, azul e laranja da actual bandeira de Nova Iorque ao pavilhão tricolor da Holanda no século XVII, as mesmas que estão estampadas no escudo de uma das principais equipas de basebol da cidade, os New York Mets, assim como no emblema dos New York Knicks, a marca mais valiosa da NBA (National Basketball Association), segundo a revista Forbes». In lira Neto, Arrancados da Terra, 2021, Penguin Random-House Grupo Editorial, 2021, chancela Objectiva, ISBN 978-989-784-257-3.

Cortesia de PRHGEditorial/JDACT

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