segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Havia cerco, a fome já era muita, os sitiados desanimavam, enfim, estava Miranda perdida. Eis senão quando, isto é o que se diz, avança ali um garoto…»

 

jdact e cortesia de wikipedia

 De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

O Semão aos Peixes

«(…) Em quinhentos anos ninguém se lembrou de mandar picar ou desmontar a insolência, prova inesperada de que o português não é alheio ao humor, salvo se só o entende quando lhe serve os patriotismos. Não se aprendeu aqui com a fraternidade dos peixes do Douro, mas talvez haja boas razões para isso. Afinal, se as potências celestiais favoreceram um dia os Portugueses contra os Espanhóis, mal parecia que os humanos deste lado passassem por cima das intervenções do alto e as desautorizassem. O caso conta-se brevemente.

Andavam acesas as lutas da Restauração, meados portanto do século XVII, e Miranda do Douro, aqui à beirinha do Douro, estava, por assim dizer, a um salto duma pulga de acometidas do inimigo. Havia cerco, a fome já era muita, os sitiados desanimavam, enfim, estava Miranda perdida. Eis senão quando, isto é o que se diz, avança ali um garoto a gritar às armas, a incutir ânimo e coragem onde coragem e ânimo estavam desfalecendo, e de tal maneira que em dois tempos se levantaram todas aquelas debilidades, tomam armas verdadeiras e inventadas, e atrás do infante vão-se aos Espanhóis como se malhassem em centeio verde. São desbaratados os sitiantes, triunfa Miranda do Douro, escreveu-se outra página nos anais da guerra. Porém, onde está o chefe deste exército? Onde está o gentil combatente que trocou o pião pelo bastão de marechal de campo? Não está, não se encontra, ninguém o viu mais. Logo, foi milagre, dizem os mirandeses. Logo, foi o Menino Jesus. O viajante confirma. Se foi capaz de falar aos peixes e eles capazes de o ouvirem, não tem agora nenhum motivo para desconfiar das antigas estratégias. Tanto mais que aqui está ele, o Menino Jesus da Cartolinha, com a sua altura de dois palmos, à cinta a espada de prata, a faixa vermelha atravessando do ombro para o lado, laço branco ao pescoço, e a cartola no alto da sua redonda cabeça de criança. Este não é o fato da vitória, apenas um do seu confortável guarda-roupa, completo e constantemente posto em dia, como ao viajante está mostrando o sacristão da Sé. É sabedor do seu mister de guia este sacristão, e, porque dá tento da minuciosa atenção do viajante, leva-o a uma dependência lateral onde tem recolhidas diversas peças de estatuária, defendendo-as assim das tentações dos gatunos de ofício e ocasião. Aí se confirmam as coisas. Uma pequena tábua, esculpida em alto-relevo, acaba de convencer o viajante da sua própria incipiência em matéria de milagres. Eis Santo António recebendo genuflexão duma ovelha, que assim está dando exemplar lição de fé ao pastor descrente que se tinha rido do santo e ali, na escultura, evidentemente, se mostra corrido de vergonha e por isso talvez ainda merecedor de salvação. Diz o sacristão que muita gente fala desta tábua, mas que poucos a conhecem. Escusado será dizer que o viajante não cabe em si de vaidade. Veio de tão longe, sem empenhos, e só por ter cara de boa pessoa o admitiram ao conhecimento destes segredos. Esta viagem vai no princípio, e sendo o viajante escrupuloso como é, aqui lhe morde o primeiro sobressalto. Afinal, que viajar é este? Dar uma volta por esta cidade de Miranda do Douro, por esta Sé, por este sacristão, por esta cartolinha e esta ovelha, e, isto feito, marcar uma cruz no mapa, meter rodas à estrada, e dizer, como o barbeiro enquanto sacode a toalha: O senhor que se segue». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,