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terça-feira, 26 de abril de 2016

A Mística do Instante. O Tempo e a Promessa. Tolentino Mendonça. «As mãos são um organismo complexo, são um delta no qual desemboca uma vida que vem de muito longe, para transformar-se numa torrente imensa de acção. Há uma história das mãos; têm por direito próprio a sua beleza…»

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Do lado do excesso de comunicação
«(…) E de modo semelhante com os outros sentidos que implicam proximidade: o paladar e o tacto. Hoje, só os profissionais arriscam provas cegas das comidas ou bebidas. Mas, mesmo aí, são cada vez mais os olhos que comem, pelo investimento no impacto decorativo dos pratos, pelo requinte do design ou pela manipulação do próprio sabor. Para não falar do tacto. A nossa distância da natureza é tão grande que deixamos de saber coisas tão elementares como caminhar descalço, dobrar-se na clareira e afastar mansamente as folhas da fonte para beber devagarinho, ou acariciar a vida desprotegida que se avizinha de nós. Assim nos tornamos os analfabetos emocionais que somos, resumia o cineasta Ingmar Bergman. Não será tempo de voltarmos aos sentidos? Não será esta uma oportunidade propícia para os revitalizarmos? Não é chegado o instante de compreender melhor aquilo que une sentidos e sentido?

Redescobrir o tacto
Pensou-se, desde a Antiguidade clássica, que o primeiro dos sentidos fosse o tacto, mesmo se ele aparece só em terceiro lugar na escala que Aristóteles apresentava então. Na ordem da criação ele tem certamente a primazia. O desenvolvimento dos sentidos no fecto começa provavelmente com o tacto. Depois, com o nascimento, é também através do contacto físico que experimentamos a realidade: o frio e o calor, o familiar e o estranho, o desconforto e o consolo. Todo o objecto vem avaliado pelo nascituro através do tacto, que para isso o leva inevitavelmente à boca e às mãos. Muito legitimamente, o tacto vem descrito como o nosso grande olho primeiro. A pele recobre o nosso corpo, da cabeça aos pés. Ela divide e ao mesmo tempo une o mundo exterior e o interno. A pele lê a textura, a densidade, o peso e a temperatura da matéria. O sentido do tacto conecta-nos com o tempo e a memória: através das impressões do tacto fazemos intermináveis viagens sem as quais não seríamos quem somos. O tacto permite que não esbarremos apenas uns contra os outros, mas que existam encontros. Por isso, a pergunta que um dia Jesus fez no meio de uma multidão compacta continua a ser significativa: quem me tocou? Os discípulos bem tentavam, em vão, dissuadi-lo, lembrando que uma massa de gente o apertava e tocava de todos os lados. Mas o que Jesus afirma é que há um tocar e um tocar.
As mãos são um organismo complexo, são um delta no qual desemboca uma vida que vem de muito longe, para transformar-se numa torrente imensa de acção. Há uma história das mãos; têm por direito próprio a sua beleza; assiste-lhes o direito de ter o seu próprio desenvolvimento, seus desejos próprios, seus sentimentos, escreveu Rainer Maria Rilke. E o que dizemos das mãos podemos dizer da pele. A nossa autobiografia é assim também uma história da pele e do tacto, da forma como tocamos ou não, da forma como fomos e não fomos tocados, mesmo se essa continua, em grande medida, um relato submerso, em que não pensamos. E, contudo, ela tem tanto a ensinar-nos. Existe um tipo de conhecimento, não apenas na primeira infância, mas pela vida fora, que só nos chega através do tacto.
O pintor Miró falava sempre da origem táctil da sua arte. Na juventude, em Barcelona, teve por mestre o arquitecto Francisco Gali que, embora sendo um académico muito convencional, era capaz de arriscar por caminhos inesperados na iniciação dos seus estudantes. Miró confessa que não era propriamente um virtuoso no desenho e que o seu mestre ajudou-o assim: colocava-lhe uma venda nos olhos para que ele tocasse os objectos com os dedos e não apenas com o olhar. Miró fechava então os olhos, agarrava uma pequena pedra, tacteava-a, palpava-a, revirava-a várias vezes nas suas mãos. E desenhava-a. O pintor catalão dizia-se incapaz de chegar à representação do mundo de outra maneira». In José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente, Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.

Cortesia de Paulinas/JDACT

terça-feira, 21 de julho de 2015

A Mística do Instante. O Tempo e a Promessa. Tolentino Mendonça. «… a vista não se sacia com o que vê, nem o ouvido se contenta com o que ouve. A rotina não basta ao coração do homem. O grande desafio é, em cada dia, voltar a olhar tudo pela primeira vez»

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Do lado do aprisionamento da vida pela rotina
«(…) A rotina começa por ser um esforço de regularidade nos vários planos da existência, esforço que, temos de dizer, é em si positivo. A vida seria impossível se o eliminássemos de todo. As rotinas têm um efeito saudável: tornando o quotidiano um encadeado de situações expectáveis, permitem-nos habitar com confiança o tempo. Mas o que começa por ser bom esconde também um perigo. De repente, a rotina substitui-se à própria vida. Quando tudo se torna óbvio e regulado, deixa de haver lugar para a surpresa. Cada dia é simplesmente igual ao anterior. A nossa viagem passa para as mãos de um piloto automático, que só tem de aplicar, do modo mais maquinal que for capaz, as regras previamente estabelecidas. Os sentidos adormecem. Bem podem os dias ser novos a cada manhã ou o instante abrir-se como um limiar inédito, que nunca os cruzaremos assim. Os nossos olhos sonolentos veem tudo como repetido. E, sem nos darmos conta, acontece-nos o que o salmo bíblico descreve a propósito dos ídolos: … têm boca, mas não falam; olhos têm, mas não vêem; têm ouvidos, mas não ouvem; narizes têm, mas não cheiram; têm mãos, mas não palpam. Podemos equivocadamente pensar que nos é possível viver assim. Mas chega a estação, como recorda o livro do Eclesiastes, em que a vista não se sacia com o que vê, nem o ouvido se contenta com o que ouve. A rotina não basta ao coração do homem. O grande desafio é, em cada dia, voltar a olhar tudo pela primeira vez, deslumbrando-se com a surpresa dos dias. É reconhecer que este instante que passa é a porta por onde entra a alegria. Mas para isso teremos de recuperar a sensibilidade à vida, à sua desconcertante simplicidade, ao seu canto frágil, às suas travessias. A vida que nos havíamos habituado já a consumir no relâmpago que dura um fósforo, sem ouvi-la verdadeiramente, sem conspirar para a sua plenitude. Para responder à pergunta sobre o sentido que a dada altura nos assalta a vida que levo que sentido tem? E indispensável uma pedagogia de reactivação dos sentidos.

Do lado do excesso de comunicação
Não somos apenas o nosso corpo, estamos também integrados num corpus social, que solicita, expande e reprime a nossa sensibilidade. Basta ouvir aquele que foi o maior teórico da comunicação do século XX, Marshall Mcluhan, para perceber até que ponto isso é aproveitado pela sociedade de comunicação global, para quem o indivíduo passa a ser uma presa. O que diz McLuhan sobre a televisão, por exemplo, é imensamente elucidativo: … um dos efeitos da televisão é retirar a identidade pessoal; só por ver televisão, as pessoas tornam-se num grupo colectivo de iguais; perdem o interesse pela singularidade pessoal. Se repararmos, os meios que lideram a comunicação humana contemporânea (da televisão ao telefone, do e-mail às redes sociais) interagem apenas com aqueles dos nossos sentidos que captam sinais à distância: fundamentalmente a visão e a audição. Origina-se assim uma descontrolada hipertrofia dos olhos e ouvidos, sobre os quais passa a recair toda a responsabilidade pela participação no real. Viste aquilo? Já ouviste a última do... Os nossos quotidianos são continuamente bombardeados pela pressão do ver e do ouvir. O mesmo se passa com a locomoção: seja a pilotar um avião, a conduzir um automóvel, ou seja o peão a deslocar-se nas artérias das cidades modernas, o fundamental são os sentidos que colhem a informação visual e sonora. Nem será necessário lembrar que não é assim em todas as culturas. Esta sobrecarga sobre os sentidos que captam o que está mais afastado de nós esconde o subdesenvolvimento e a pobreza em que os outros são deixados. Ao mesmo tempo que floresce a indústria dos perfumes, desaprendemos a distinguir o aroma das flores. Por mais que isso seja dez mil vezes mais prático, passar pela frutaria do inodoro hipermercado não é a mesma coisa que atravessar a catedral de aromas de um pomar». In José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente, Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.

Cortesia de Paulinas/JDACT

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

A Mística do Instante. O Tempo e a Promessa. Tolentino Mendonça. «O luto é um manto de tristeza que oculta dois corpos: o corpo amado que parte e o nosso próprio corpo que, permanecendo, tem, no entanto, absoluta necessidade de acompanhá-lo…»

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«(…) Diversos são, no entanto, os quadros existenciais que nos conduzem às patologias dos sentidos e nos empurram para uma espécie de astenia. Passaremos, em seguida, em revista, mesmo se brevemente, quatro experiências dessa ordem: o sofrimento humano, o luto, o aprisionamento da vida pela rotina ou os efeitos da nossa exposição actual ao excesso de comunicação.

Do lado do sofrimento
Vivemos numa sociedade dominada cada vez mais pelo mito do controlo. E o seu postulado dogmático é este: a receita para uma vida realizada é a capacidade de controlá-la a 360 graus. Não percebemos até que ponto uma mentalidade assim representa a negação do princípio de realidade. Isto para dizer como somos pouco ajudados a lidar com a irrupção do inesperado que hoje o sofrimento representa. Sentimos a dor como uma tempestade estranha que se abate sobre nós, tirânica e inexplicável. Quando ela chega, só conseguimos sentir-nos capturados por ela, e os nossos sentidos tornam-se como persianas que, mesmo inconscientemente, baixamos. A luz já não nos é tão grata, as cores deixam de levar-nos consigo na sua ligeireza, os odores atormentam-nos, ignoramos o prazer, evitamos a melodia das coisas. Damos por nós ausentes nessa combustão silenciosa e fechada onde parece que o interesse sensorial pela vida arde. A dor é tão grande, a dor sufoca, já não tem ar. A dor precisa de espaço, escreve Marguerite Duras nas páginas autobiográficas do volume a que chamou A dor. E descobrimo-nos mais sós do que pensávamos no meio desse incêndio íntimo que cresce. Nas etapas de sofrimento a impotência parece aprisionar enigmaticamente todas as nossas possibilidades. E colocamos em dúvida que este limitado corpo que somos seja o lugar para viver a nossa aventura total ou um fragmento dela que seja significativo. Precisaríamos de recursos que nos capacitassem a vivenciar a incapacidade, provocada pela dor, com outro ânimo e outro olhar.

Do lado do luto
O luto é um manto de tristeza que oculta dois corpos: o corpo amado que parte e o nosso próprio corpo que, permanecendo, tem, no entanto, absoluta necessidade de acompanhá-lo, não só no plano afectivo e simbólico, mas também pela diminuição dos nossos indicadores vitais. Lembro-me da descrição que abre o romance As ondas, de Virginia Woolf, onde há uma frase que, no meu entender, descreve exactamente o que é o luto: a separação entre o céu e o mar. Uma barra de sombra desceu no horizonte, separando o céu do mar, e o grande tecido cinzento ficou marcado por grossas linhas que se agitavam sob a superfície, perseguindo-se num ritmo infindável. A experiência da perda é também um desses segredos do corpo, de si para si, com o qual é-nos cada vez mais difícil lidar. Por um lado, a morte tornou-se um tabu. É mais desagradável referi-la do que soltar uma obscenidade. Ocultamo-la por todos os meios. E depois, por outro, quando nos cabe saber que os que amamos partem, isso mergulha-nos numa dor e numa solidão extremas. Entramos, então, numa espécie de suspensão, de recuo face à vida, de eclipse na nossa relação não só com o exterior, mas com o corpo que somos. Faltam-nos mestres que nos ajudem a avizinhar-nos da morte e do que ela representa para a nossa humanidade. Precisaríamos primeiro de chorar a nossa impossibilidade de consolação (extraordinária frase do Antigo Testamento que São Mateus recupera para o seu Evangelho, na cena da morte dos inocentes: Ouviu-se uma voz em Ramá, uma lamentação e um grande pranto: é Raquel que chora os seus filhos e não quer ser consolada. Precisaríamos depois de chorar e ser consolados, em pequenos passos. E integrar então progressivamente a ausência numa nova compreensão desse mistério que é a presença dos outros na nossa vida». In José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente, Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.

Cortesia de Paulinas/JDACT

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A Mística do Instante. O Tempo e a Promessa. Tolentino Mendonça. «”Estou cansado, é claro,/ porque, a certa altura, a gente tem de estar cansado./ De que estou cansado não sei:/ de nada me serviria sabê-lo/ pois o cansaço fica na mesma”. ‘Não sei sentir, não sei ser humano’, escrevia ainda Fernando Pessoa»

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A sociedade do cansaço
«(…) Todas as épocas têm as suas patologias e estas funcionam como indicadores que vão além do diagnóstico banal. As enfermidades dominantes mostram-nos o ponto de dor escondido, revelam comportamentos e compulsões, desocultam a vulnerabilidade que é a nossa, mas que raramente queremos ver. Ora, o grande combate dos séculos que nos precederam foi bacterial e viral. A invenção dos antibióticos e das vacinas, partindo do esforço imunológico, sem resolver tudo, torna, no entanto, esses problemas sanitários controlados. É verdade que de vez em quando irrompe o pânico de uma pandemia viral, mas essa não é a questão que condiciona mais profundamente os nossos quotidianos e práticas. O filósofo Byung-Chul Han, seguido atentamente em círculos cada vez mais amplos, defende que este começo do século XXI, do ponto de vista das patologias marcantes, é fundamentalmente neuronal. O sol negro da depressão, os transtornos de personalidade, as anomalias da atenção (seja por hiperactividade, seja por uma neurastenia paralisante), a síndrome galopante do desgaste ocupacional que nos faz sentir devorados e exauridos por dentro à maneira de uma terra queimada, definem o difícil panorama da década presente e das que virão. Estas enfermidades não são infecções, mas modalidades vulneráveis de existência, fragmentações da identidade, incapacidades de integrar e refazer a experiência do vivido. A verdade é que as nossas sociedades ocidentais estão a viver uma silenciosa mudança de paradigma: o excesso (de emoções, de informação, de expectativas, de solicitações...) está a atropelar a pessoa humana e a empurrá-la para um estado de fadiga, de onde é cada vez mais difícil retornar. O risco é o aprisionamento permanente nesse cansaço, como explicava profecticamente Fernando Pessoa: Estou cansado, é claro,/ porque, a certa altura, a gente tem de estar cansado./ De que estou cansado não sei:/ de nada me serviria sabê-lo/ pois o cansaço fica na mesma.

Combater a atrofia dos sentidos
Accende lumen sensibus, (Ilumina os sentidos), recitava uma antiga invocação litúrgica, não deixando dúvidas sobre o necessário envolvimento dos sentidos corporais na expressão crente. Os sentidos do nosso corpo abrem-nos à presença de Deus no instante do mundo. Em boa saúde, temos ao nosso dispor cinco sentidos (tacto, paladar, olfacto, visão e audição), mas a verdade é que não os aperfeiçoamos a todos devidamente, ou, pelo menos, não os temos desenvolvidos da mesma maneira. Podemos receber e transmitir informações tão diversas pelos sentidos, porque dispomos de um cérebro que elabora e dirige. Mas falta-nos uma educação dos sentidos que nos ensine a cuidar deles, a cultivá-los, a apurá-los. Não sei sentir, não sei ser humano, escrevia ainda Fernando Pessoa. E continuava: Senti de mais para poder continuar a sentir. De facto, o excesso de estimulação sensorial em que estamos mergulhados tem um efeito contrário. Não amplia a nossa capacidade de sentir, mas contamina-a com uma irremediável atrofia. Ah, se ao menos eu pudesse sentir!, é a proposição do desespero contemporâneo, que advém depois de se ter experimentado tudo, em vertigem e convulsão. Mas também a indiferença aos sentidos, que o cinismo induzido a dada altura da vida promove, não deixa de ser um menor instrumento de aniquilação. A pele não me ensinou nada, lamentava-se o poeta René Crevel em O meu corpo e eu. Este é um território onde a mística dos sentidos pode desempenhar um papel reconversor fulcral, porque nela, como explica Michel de Certeau, o corpo é informado. A pele ensina». In José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente, Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.

Cortesia de Paulinas/JDACT

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A Mística do Instante.O Tempo e a Promessa. Tolentino Mendonça. «… quanto mais a alma vai às escuras, e vazia de suas operações naturais, tanto mais segura vai. A subida ao monte místico implicava tomar como programa esta noite sensitiva: procurar o espiritual e interior e combater o espírito da imperfeição segundo o sensual e exterior»

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Para uma espiritualidade do tempo presente
«Se tivéssemos de buscar um sinónimo para espiritualidade diríamos, sem muito risco de errar, interioridade. E interioridade parece ser também a noção mais afim à ideia de mística. Fecha a porta dos teus sentidos/e procura Deus no profundo, propunha um dos expoentes do pietismo no século XVIII. A sua proposta representa bem aquilo que poderíamos designar por mística da alma. De que se trata, afinal? Da consideração de que o caminho que nos conduz a Deus é fundamentalmente um exercício interior que implica uma relativização ou mesmo uma renúncia dos sentidos corporais. Para alcançar o divino a alma tem de mergulhar na própria alma. O divino oculta-se às possibilidades do corpo e à sua gramática, e não se deixa detectar senão pelo radar da profundidade mais estrita. O divino é o mistério. A via para ele passa por desligar-se do mundo, do mundo habitual e quotidiano, e reentrar no espaço interior, esse sim, a morada que guarda Deus religiosamente.
Numa obra que teve um grande impacto na imaginação cristã, e que trazia  emblemático título de A verdadeira religião, Santo Agostinho dizia: Não saias para fora de ti, retorna a ti mesmo, porque a verdade habita no homem interior. Há que reconhecer que grande parte de mística cristã, mais antiga e até contemporânea, glosou indefinidamente este motivo, o que mostra quanto é oportuna uma releitura desse precioso património à luz de uma antropologia mais integradora. O grande São João da Cruz, por exemplo, na segunda metade do século XVI, explicava que quanto mais a alma vai às escuras, e vazia de suas operações naturais, tanto mais segura vai. A subida ao monte místico implicava tomar como programa esta noite sensitiva: procurar o espiritual e interior e combater o espírito da imperfeição segundo o sensual e exterior. Mas esse modelo marcou e marca ainda referentes da mística cristã mais próximos de nós. Em pleno coração comercial de Louisville, cidade do Estado americano do Kentucky, há uma placa a assinalar que ali, no ano de 1958, ocorreu a segunda conversão do monge trapista Thomas Merton. Nessa época, ele já era mundialmente conhecido como autor no domínio da espiritualidade. O volume que o tinha lançado, dez anos antes precisamente, havia sido a sua autobiografia, A montanha dos sete patamares, onde o paradigma da fuga ao mundo estava completamente presente. Andando agora por Louisville, abraçando a marcha frenética de uma multidão naquele epicentro comercial, Merton teve a intuição de que afinal não existia diferença alguma ou separação entre ele e aquele povo desencontrado e sedento. Sentiu-se simplesmente membro da família humana, da qual o próprio Filho de Deus quis fazer parte. Nascia assim uma nova etapa da sua espiritualidade, crítica em relação à primeira. Thomas Merton percebia que a mística só pode ser uma experiência quotidiana, solidária e integrativa.

Há mais espiritualidade no corpo
De um lado, a excessiva internalização da experiência espiritual e, de outro, o distanciamento do corpo e do mundo permanecem, porém, em grande medida, características destacadas da espiritualidade que se pratica. O que é espiritual vem considerado superior àquilo que vivemos sensorialmente. O primeiro é estimado como complexo, precioso e profundo. O segundo é visto como epidérmico e sempre um pouco frívolo. E há uma sintomática condição descarnada na vivência do religioso, que se refugia voluntariamente numa representação de alteridade em relação ao mundo, do qual se considera (vem sendo considerado) distante, para não dizer estranho. Na chamada mística da alma, o Espírito divino é radicalmente outro face ao instante presente. E face ao destino histórico e pungente das criaturas». In José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente, Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.

Cortesia de Paulinas/JDACT

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Bosco Deleitoso. Mosteiro de Alcobaça. «E quando tal poder é dado ao homem, deve sojugar o seu próprio desejo aa prol comunal e pera seu falante deve desamparar o ermo, em que aproveita e serve a si soo, e torna-se ao lugar u seja proveitoso ao mundo»


Cortesia de wikipedia

O Bosco Deleitoso, também Boosco Deleitoso em português medieval ou Bosque Deleitoso, é uma das obras místicas escritas no Mosteiro de Alcobaça entre os finais do século XIV e o início do século XV, na Idade Média, foi escrito por um monge anónimo do mosteiro de Alcobaça. É considerada uma das mais importantes obras espirituais da literatura portuguesa. O ‘bosque’ refere-se a um lugar de isolamento, contemplação e reflexão, de renúncia ao mundo e busca do sentido da vidaCerca de setenta capítulos transcrevem a tradução da obra de Petrarca De Vita Solitaria. Os últimos quarenta e seis capítulos são originais. O Bosco Deleitoso foi impresso em Lisboa em 1515.

Bosco Deleitoso. Terceira Parte. Capítulo XXX
Defesa da vida solitária
Quando o nobre solitário ermitam acabou estas razões suso ditas levantou-se logo üu velho honrado que i estava, vestido em maneira de doutor sagral mui honestamente, e em sua cabeça tiinha üa grilanda de louro seca e sem verdura; e começou sua razom mui apostamente contra aquelo que o nobre ermitam católico havia dito.
E disse enesta guisa:
 – Maior cousa é segundo natura receber e padecer mui grandes trabalhos e grandes nojos e tribulações por conservar e ajudar todas as gentes, se poder seer, que viver em o ermo vida apartada, posto que nom haja o homem nenhüus nojos nem tribulações em o ermo e que haja avondança de todos os viços e haja fremosura e forças do corpo. E por em qualquer homem de bõo entendimento e de bõo engenho grande avantagem dá a esta tal vida sobre a vida apartada.
Quando eu, pecador e fraco de coraçom, ouvi esto, contorvei-me já quanto, e preguntei quem era este doutor que assi falava ousadamente, e foi-me dito que era üu poeta filósofo que havia nome Ciceram, e porque fora gentil e nom fora católico, por em agrilanda que trazia, que perteence aos poetas, era seca.
E tanto que ele disse sua razom, logo o nobre solitário Dom Francisco respondeu e disse:
 – Dom Cicerom, eu outorgo o que vós dizes quando as causas assi som como havedes dito. Mas eu falo daqueles ocupados que nós veemos, dos quaes é chea a vida do poboo; mas dos outros taes como vós dizedes, nom há i nenhüus em o mundo; ou som tam poucos, que nom parecem em nenhüu lugar.
E eu bem sei que foram já em o mundo e per ventura som agora alguns barões mui ocupados e mui santos, que aduserom pera Jesu Cristo si meesmos e consigo as almas que andavam desviadas da carreira da salvaçom. E quando esto assi é, eu confesso que é mui grande bem que nom pode seer extimado nem apreçado, e é dobrada bem aventurança em contrairo daquela dobrez daquela mizquindade dos ocupados que vivem com outrem.
Qual é a cousa mais bem aventurada e mais dina em o homem ou mais semelhávil a Deus, que guardar ou ajudar muitos? E aquele que esto pode fazer e nom o faz, parece-me que enjeita e lança de si ofício mui nobre de humanidade. E quando tal poder é dado ao homem, deve sojugar o seu próprio desejo aa prol comunal e pera seu falante deve desamparar o ermo, em que aproveita e serve a si soo, e torna-se ao lugar u seja proveitoso ao mundo.

Mas destas cousas todas o meu juízo é este: certamente a doutrina e a ensinança geeral, que é verdadeira, nom se abala nem é movida nem quebrantada per mui poucas razões contrairas. Muitos som que prometem e razoam as ocupações proveitosas do comum e mais santas que qualquer vida apartada do ermo. Mas rogo-te que me digas quantos som aqueles que comprem aquelo que prometerom e razoavam. Som er ventura alguns ou som muitos? Mostra-me üu, e calar-m'-ei.
Eu nom nego que há em o mundo algüus barões ensinados e bem falantes e que desputam muito contra estas cousas; mas nom é a nossa questom sobre o engenho e a sotileza, mas sobre os costumes. Eles andam pelas cidades e pregam e razoam em as praças e falam muitas cousas das virtudes e dos pecados; e aadur pode achar üu que per obra cumprisse o que razoava». In Mosteiro de Alcobaça, Boosco Deleitoso, edição de Augusto Magne, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1950, Projecto Vercial, Leitura Gulbenkian.

Cortesia de Augusto Magne/JDACT

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O Bosco Deleitoso: Mosteiro de Alcobaça. «Certamente um dos textos mais ricos e expressivos da espiritualidade portuguesa sobre a experiência do amor místico»

Cortesia de institutocamoes 

O Bosco Deleitosoou Bosque Deleitoso, é uma das obras místicas escritas no Mosteiro de Alcobaça entre os finais do século XIV e o início do século XV. Cerca de 60 capítulos transcrevem a tradução da obra de Petrarca, De Vita Solitaria. Os últimos 46 capítulos são originais. O Bosco Deleitoso foi impresso em Lisboa em 1515. O Bosco Deleitoso é certamente um dos textos mais ricos e expressivos da espiritualidade portuguesa sobre a experiência do amor místico.

«O Bosco Deleitoso Solitário é uma das obras mais marcantes da espiritualidade portuguesa medieval, profundamente marcada pelo pensamento de Petrarca e sobretudo de S. Bernardo. Escrita provavelmente no final do século XIV ou no início do século XV por um autor anónimo, mas certamente um monge, revela uma grande afinidade temática com o Horto do Esposo, tendo já sido aventada a hipótese de serem de obras de um mesmo autor. Bosco é aqui assumido no sentido de ermo, lugar de recolha, de retiro, de solidão, onde o homem, voltando-se para si mesmo, intenta conhecer-se, na linha do interiorismo agostiniano e do socratismo cristão. Conhece-te a ti próprio como condição para amar a Deus e ao próximo, tal é a primeira condição do rigorismo ascético a que esta obra nos conduz, em conselho significativamente expresso pela personagem que neste diálogo representa a sabedoria, na qual ecoa idêntico preceito expresso por S. Bernardo, para quem o «conhece-te a ti próprio» é também princípio de verdadeira sabedoria, por ser essa a via que conduz o homem a reconhecer a sua miséria, crescendo em humildade perante a grandiosidade divina.

Cortesia de auladeliteraturaportuguesa
Este livro é escrito como uma confissão autobiográfica de um pecador que é conduzido por um anjo aos caminhos da contemplação e da união com Deus, sendo nesse percurso aconselhado pela justiça, pela misericórdia, pela memória e pela sabedoria ao desprezo dos bens mundanais, que se desfazem «assi como fumo», a que se antepõe a afirmação do verdadeiro caminho do mais autêntico conhecimento, que consiste na ascese mística e na união com Deus. Torna-se pois fundamental tomar consciência de que ao homem cumpre tomar vida solitária, apartada das cidades e dos negociadores do mundo, razão por que o pecador é conduzido a um «bosco nevoso», como antecâmara de um alto monte onde o aguardarão os prazeres da contemplação. É esta a oportunidade escolhida pelo monge para nos expor o tema das relações entre a vida activa e a vida contemplativa, a que se segue o enunciado dos graus da contemplação e das três espécies de visão.
A vida activa usa bem e com justiça as coisas do mundo, mas a vida contemplativa renuncia ao mundo, voltando-se somente para Deus. Sendo «vaga de todo o negócio», é capaz de sentir o sabor do paraíso dentro da alma. No entanto, a vida activa é boa, sendo justamente considerada como degrau pelo qual se ascende, com a graça divina, à vida contemplativa.
Mas, propriamente falando, os graus da contemplação, pelos quais atingirá o homem a união mística com Deus são:
  • a obediência fundada em perfeita humildade,
  • o fazer da carne a servidora do espírito,
  • o bem obrar com descrição,
  • o conhecimento dos conteúdos da fé,
  • o guardar a limpeza da alma. 
Seguem-se os três graus finais: «o sexto é trespassares-te de juizo de razom em na afeiçom da mente, ca nom has-de julgar aquelas cousas que vires, que te forem reveladas e dadas por Deus, segundo a razom humanal. O setimo graao é sguardar e oolhar a groria de Deus com face descuberta. O oitavo é seres tresformmado de craridade em craridade».

Cortesia de dctbus
Começa aqui o interesse maior desta obra, sobretudo com os momentos em que descreve pormenorizadamente a experiência mística da visão e da união com Deus, saboreando fervorosamente o amor místico. Cabem aqui as suas inúmeras referências à «avondança de prazer» e à alegria da mente, à folgança espiritual «que me fazia todo ledo», estendendo-se essa alegria aos membros do corpo, «de tal guiza que me fazia andar assi: como bêvedo entrepeçando. E nom podia assessegar e abraçava as criaturas que achava com grandeza do amor do seu Criador», ficando a alma e a mente «esbarafida e de todo fora do seu estado e arrevatada sobre si mesma, trespassando e sobrepojando todolos razoamentos humanais».
Mais adiante, este entusiasmo atinge o erotismo, quando acentua a intensidade dessa experiência: «E depois que o taamo mais de dentro da minha alma era perfeitamente apostado e ordenado e o amado era dentro metido, crecia a fiuza aa minha alma e tomava grande atrevimento e com grande atrevimento e com grande desejo que a costrangia, nom se podia mais conter: e lançava-se subitamente aos beijos do seu amado e com os beiços apegados enele aficava-lhe beijos de devaçoom mui de dentro do coraçom». In Instituto Camões, Pedro Calafate.

Obra:
Booco Deleytoso Solitario, por Hermão de Campos, 1515 (microfilme da BNL F-7007)

Cortesia de institutocamoes 
Bibliografia
Mário Martins, «Petrarca no Bosco Deleitoso», em Estudos de Literatura Medieval, Braga, 1956, cap. XI; Aida Fernanda Dias «Boosco Deleytoso», em Antologia de Espirituais Portugueses, org. de Maria de Lurdes Belchior, José Adriano de Carvalho e Fernando Cristóvão, Lisboa, 1994, págs. 25-36.

Cortesia do Instituto Camões/JDACT

segunda-feira, 29 de março de 2010

Jazz: Bernardo Sassetti Trio

«Por esta energia, quase telepática  e pelos caminhos da música no momento que nos deixamos levar, a descobrir a empatia, que contamina o palco e a plateia...



 
JDACT
(riffsstrides.blogspo...)

sábado, 20 de março de 2010

Inês de Castro: Da tragédia ao melodrama

(1320 ou 1325-1355)
Inês de Castro era filha natural de Pedro Fernandes de Castro, mordomo-mor do rei Afonso XI de Castela, e de, Aldonça Lourenço de Valadares que era portuguesa. O seu pai, era um dos fidalgos mais poderosos do reino de Castela.
Em 1339 o príncipe Pedro, casou, herdeiro do trono português com Constança Manuel, mas seria uma das aias de Constança, D. Inês de Castro, por quem D. Pedro viria a apaixonar-se. Este romance começou a ser comentado e muito mal aceite pelo povo e própria corte.

O rei D. Afonso IV não aprovava esta relação, sob o pretexto da moralidade, não só por motivos de diplomacia, mas também devido à relação de amizade de D. Pedro com os irmãos de Inês, Álvaro Pirez de Castro e Fernando de Castro. Os fidalgos da corte portuguesa, sentiam-se ameaçados pelos irmãos Castro, pressionavam o rei D. Afonso IV para afastar esta influência do seu herdeiro. Assim sendo, o rei mandou exilar em 1334, Inês no castelo de Alburquerque, na fronteira castelhana. No entanto, a distância não teria apagado o amor entre Pedro e Inês que, segundo a lenda, continuavam a corresponder-se com frequência.
Constança morreu ao dar à luz, em Outubro do ano seguinte, o futuro rei Fernando I de Portugal. O infante Pedro, ficando viúvo, mandou Inês regressar do exílio e os dois foram viver juntos, situação que provocou grande escândalo na corte, para desgosto de El-Rei seu pai. Começou então uma desavença entre o rei e o infante.
O Rei tentou remediar a situação casando novamente o filho com uma dama de sangue real. Mas Pedro rejeitou, alegando que não conseguia ainda pensar em novo casamento, porque sentia ainda muito a perda de sua mulher Constança. Entretanto, fruto dos seus amores, Inês foi tendo filhos de D. Pedro: Afonso em 1346 (que morreu pouco depois de nascer), João em 1349, Dinis em 1354 e Beatriz em 1347. O nascimento destes veio agravar a situação: D. Afonso IV, durante o reinado de D. Dinis sentira-se em risco de ser preterido na sucessão ao trono devido aos filhos bastardos do seu pai. Agora circulavam boatos de que os Castros conspiravam para assassinar o infante D. Fernando, herdeiro de D. Pedro, para o trono português passar para os filhos de Inês de Castro.
Entretanto, o reino de Castela encontrava-se em grave agitação com a morte de Afonso XI e a impopularidade do reinado de D. Pedro I de Castela, cognominado o Cruel. Os irmãos de Inês sugeriram a Pedro que juntasse os reinos de Leão e Castela a Portugal, uma vez que o príncipe português era, por sua mãe, neto de D. Sancho IV de Castela. Em 1354 convenceram-no a pôr-se à frente da conjuração, na qual Pedro se proclamou pretendente às coroas castelhana e leonesa. Foi novamente a intervenção enérgica de Afonso IV de Portugal que evitou que tal sucedesse. O rei mantinha uma linha de neutralidade, abstendo-se de intervir na política de outras nações, o que lhe permitia paz e respeito com os reinos vizinhos.
Depois de alguns anos no norte de Portugal, Pedro e Inês tinham regressado a Coimbra e se instalado no Paço de Santa Clara. Mandado construir pela avó de Pedro, a Rainha Santa Isabel, foi neste paço que esta rainha vivera os últimos anos, deixando expresso o desejo que se tornasse na habitação exclusiva de reis e príncipes seus descendentes, com as suas esposas legítimas.
Havia boatos de que o príncipe tinha se casado secretamente com Inês. Na família real, um incidente deste tipo assumia graves implicações políticas. O rei D. Afonso IV decidiu que a melhor solução seria matar a dama galega. Na tentativa de saber a verdade, o rei ordenou dois conselheiros seus dizerem a Pedro que ele podia se casar livremente com Inês se assim o pretendesse. D. Pedro percebeu que se tratava de uma cilada e respondeu que não pensava casar-se com Inês. A 7 de Janeiro de 1355, o rei cedeu às pressões dos seus conselheiros e do povo e, aproveitando a ausência de Pedro numa excursão de caça, enviou Pêro Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco para matarem Inês de Castro em Santa Clara. Segundo a lenda, as lágrimas derramadas no rio Mondego pela morte de Inês teriam criado a Fonte dos Amores da Quinta das Lágrimas, e algumas algas avermelhadas que ali crescem seriam o seu sangue derramado.
A morte de Inês provocou a revolta de D. Pedro contra D. Afonso IV. Após meses de conflito, a rainha D. Beatriz conseguiu intervir para selar uma paz em Agosto de 1355.
(Wikipédia livre)
O episódio dos amores infelizes de Pedro e Inês que o génio lírico do nosso trágico e do nosso épico quinhentistas, Ferreira e Camões, imortalizaram, depressa se vê envolvido pelo manto diáfano da poesia, assumindo-se como tema de idiossincrasia mais perfeita com radicação no país, antes do Sebastianismo.
Desde as crónicas quatrocentistas, as Trovas de Garcia de Resende, a Visão de Anrique da Mota, a tradição popular, que a imaginação e a sensibilidade estética de diversos autores transfiguram e recriam o tema inesiano e fazem-no ascender a um lano por assim dizer lendário e intemporal, paralelo ao da fábula grega.

O próprio Fernão Lopes encarece a aura mítica de Inês que merece maiores honras do que as heroínas da poesia e da mitologia clássicas, Ariadne e Dido. A par das descrições objectivas de Fernão Lopes e Rui de Pina, a Crónica de Manizola enfatiza a beleza de Inês, «colo de garça», a sua «boa geraçam», a celebração do casamento, que Pedro não confessara, porque a chave deste segredo tinha deitado no mar, os presságios de Inês, a culpa dos conselheiros e a consequente atenuação da de D. Afonso IV, a união dos enamorados que jazem ambos os dous juntos por que ja que se apartaram na morte ficassem juntos nas sepulturas. Na Crónica de Acenheiro, a idealização da figura de Inês surge filtrada através dos argumentos que aduz em sua defesa, na presença do rei: a sua inocência, a orfandade dos filhos de Pedro e Inês, seus netos, a tristeza que traria ao príncipe a morte da amada. Além das advertências, de feição moralizante, sobre os riscos do amor, nas Trovas de Resende, o tratamento do tema, embelezado esteticamente com elementos petrarquistas, adquire profundidade e intimismo característicos da poesia quinhentista. Assim se pode verificar que muitos dos motivos e recursos dramáticos de Ferreira, na Castro, já se encontravam elaborados nos textos, em prosa e em verso, que a precederam. Não quer isto dizer que o nosso tragediógrafo desmereça, por esta razão, em originalidade. Pelo contrário, reside precisamente nesta escolha do tema e na sua teatralização a marca da sua actualidade, da sua novidade estética, dentro dos padrões de sensibilidade da época. Albertino Mussato, o precursor de Petrarca, tinha em 1314 composto e lido publicamente a Ecerinis, a primeira tragédia moderna de inspiração senequiana, de assunto nacional contemporâneo, que se tornaria mentora, no Renascimento, de um tipo de tragédia que já existia nas literaturas grega e latina. O drama histórico – apesar do carácter poético-lendário de que se revestia a verdade histórica – atraía os gostos dos poetas de toda a Europa, da Itália à França, à Inglaterra, a Portugal, que glosaram, por vezes, os mesmos temas e dentro dos mesmos moldes. O fascínio da história da Antiguidade e da história pátria, que caracterizou o movimento humanista, aliado a um intercâmbio cultural e mesmo geográfico entre os diversos autores, explica o tema comum de muitas tragédias por toda a Europa.
No entanto, podemos afirmar que a própria expressão lírica e os seus recursos e ingredientes servem para acentuar os contrastes luz/sombra, claro/escuro da alma humana, verdadeiro diapasão da essencialidade dramática. O lirismo petrarquista, no seu jogo intelectivo, assente numa estratégia da reduplicação do sujeito da enunciação em relação ao sujeito do enunciado; na valorização das capacidades perceptivas, em ue avulta a prevalência da luz, do ver e do olhar, de inspiração plotino-ficiniana; na simplicidade estilística, que vive do ritmo e da harmonia interna do verso – conseguida por vezes por subtis alterações, na repetição de esquemas sintácticos e lexicais – exprime admiravelmente os contrastes do sentimento amoroso, o debate passional.
Nair Nazaré Castro Soares, Universidade de Coimbra (extractos).
JDACT
Tu, só tu puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano
Tuas aras banhar em sangue humano.
(Camões)

quinta-feira, 18 de março de 2010

Ary dos Santos: A casa da Rua da Saudade

(1936-1984)
José Carlos Ary dos Santos, Poeta português, natural de Lisboa. Saiu de casa aos 16 anos, exercendo várias actividades como meio de subsistência. Ficou sobretudo conhecido como autor de poemas para canções do Concurso da Canção da RTP. Os seus temas «Desfolhada» e «Tourada» saíram ambos vencedores. Personalidade entusiasta e irreverente, muitos dos seus textos têm um forte tom satírico e até panfletário, anticonvencional, contribuindo decisivamente para a abertura de novas possibilidades para a música popular portuguesa. Deixou cerca de 600 textos destinados a canções.


Soneto de Inês
Dos olhos corre a água do Mondego
os cabelos parecem os choupais
Inês! Inês! Rainha sem sossego
dum rei que por amor não pode mais.
Amor imenso que também é cego
amor que torna os homens imortais.
Inês! Inês! Distância a que não chego
morta tão cedo por viver demais.
Os teus gestos são verdes os teus braços
são gaivotas poisadas no regaço
dum mar azul turquesa intemporal.
As andorinhas seguem os teus passos
e tu morrendo com os olhos baços
Inês! Inês! Inês de Portugal.
José Carlos Ary dos Santos
«Da tua campa rasa no cemitério do Alto de São João e da tua Rua da Saudade, morada de comunhões e solidões, contínuas a «pegar o mundo/pelos cornos da desgraça», e um dos teus e dos nossos desígnios é contrariar o apagamento dos factos e das memórias, das razões e das convicções, do direito de resposta à liberalização da infeliCidade e à globalização da rapaCidade. Recordar a tua voz, é um acto de gratidão colectiva e de decência intelectual»
(arestasdevento.blogs.sapo.pt).
JDACT

terça-feira, 16 de março de 2010

Poesia Medieval: O início da palavra SAUDADE

Na Galiza e entre Douro e Minho, floresceu uma poesia, escrita em galaico-português. Desde os começos da nacionalidade (século XII) até, pelo menos, à morte de D. Dinis (1325) cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio e mal dizer, constituem prova da vitalidade da poesia galaico portuguesa.
Há quem estabeleça uma cronologia da poesia galaico-portuguesa, dividindo-a por períodos e designando-as pelos nomes dos reis trovadores ou protectores de trovadores que a cultivaram ou protegeram. Assim, teria havido um período pré-afonsino até 1245; o período afonsino de 1245 a 1284; o dionisíaco – de D. Dinis - fixar-se-ia pelos anos de 1300. 
Cantigas de amor, de amigo e de escárneo e mal dizer são classificações que decorrem de as primeiras tratarem dos males de amor, sendo uma característica das cantigas de amigo. O fingirem que são lidos por uma mulher, que lamenta a ausência do amigo, conta como o amigo partiu e não dá notícias, etc. As cantigas de escárneo e mal dizer são composições satíricas, em que, com maior ou menor violência, se atacam pessoas, se criticam acontecimentos. As cantigas de amor quer pelos temas abordados, quer pela estrutura, parece estarem próximas e ter recebido acentuadas influências da chamada lírica trovadoresca provençal. Há uma série de elementos, como os louvores e exaltação da mulher, misticamente reverenciada, a obrigação de guardar segredo da paixão, certas regras da arte de servir e amar sua dama, que justificam o parentesco entre as cantigas de amor provençais e as cantigas de amor galaico-portuguesas.

A ironia de D. Dinis que «à maneira de proençal» declara querer fazer um cantar de amor e, com intenção de crítica, censura certas regras do trovar provençalesco.
Qual é a originalidade da nossa poesia trovadoresca? A resposta não é fácil. A nossa poesia trovadoresca tem, sobretudo, nas cantigas de amigo, um frescor e uma qualidade que levou já alguns especialistas a serem os defensores da originalidade desta poesia. Disse-se já que a saudade é portuguesa. D. Duarte no seu Leal Conselheiro, Duarte Nunes de Lião, D. Francisco Manuel de Melo e tantos outros procuraram na saudade, de certo modo, a definição do ser português. Nesta perspectiva, a originalidade da nossa poesia trovadoresca, estaria na obcessão da saudade, nascida do amor e da ausência. Quase não há cantiga de amigo que o não seja de saudade.
Que soidade de mha senhor ei,
quando me nembra d’ela qual a vi
e que me nembra que bem a oí
falar, e, por quant ben d’ela sei,
rogu’eu a Deus, que end’ á o poder,
que mha leixe, se lhi prouguer, ver
(D. Dinis)

JDACT/escoladeescritores.blogs.sapo.pt/

segunda-feira, 15 de março de 2010

Carlos Paredes: O Mestre dos mil dedos

Calos Paredes foi um dos grandes guitarristas, e é um símbolo ímpar da cultura portuguesa. É um dos principais responsáveis pela divulgação e popularidade da guitarra portuguesa e grande compositor.
Carlos Paredes (Coimbra, 1925-Lisboa, 2004) foi um guitarrista que para além das influências dos seus antepassados - pais, avós, tios, todos eles exímios guitarristas de Coimbra - manteve um estilo Coimbrão, a sua guitarra é de Coimbra, e própria afinação. A sua vida em Lisboa marcou-o e inspirou-lhe muitos dos seus temas e composições.



Conhecido como O Mestre da guitarra portuguesa ou O homem dos mil dedos.
Em 1962, é convidado pelo realizador Paulo Rocha, para compor a banda sonora do filme «Os Verdes Anos». Segundo as suas palavras, «muitos jovens vinham de outras terras para tentarem a sorte em Lisboa. Isso tinha para mim um grande interesse humano e serviu de inspiração a muitas das minhas músicas. Eram jovens completamente marginalizados, empregadas domésticas, de lojas - eram precisamente essas pessoas com que eu simpatizava profundamente, pela sua simplicidade».
A palavra por dentro da guitarra
a guitarra por dentro da palavra.
Ou talvez esta mão que se desgarra
(com garra com garra)
esta mão que nos busca e nos agarra
e nos rasga e nos lavra
com seu fio de mágoa e cimitarra.
Asa e navalha. E campo de Batalha.
E nau charrua e praça e rua.
(E também lua e também lua).
Pode ser fogo pode ser vento
(ou só lamento ou só lamento).
Esta mão de meseta
voltada para o mar
esta garra por dentro da tristeza.
Ei-la a voar ei-la a subir
ei-la a voltar de Alcácer Quibir.
Ó mão cigarra
mão cigana
guitarra guitarra
lusitana.
Poema de Manuel Alegre
«Já me tem sucedido fazer as pessoas chorar enquanto eu toco... E eu não compreendia isto, mas depois percebi que é a sonoridade da guitarra, mais do que a música que se toca ou como se toca, que emociona as pessoas». São palavras de Carlos Paredes.
JDACT

sábado, 13 de março de 2010

Festival Pontes para Istambul no CCB: Istanbul Oriental Ensemble

Hoje, 13 de Março, o Istanbul Oriental Ensemble, actua no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, CCB, inserido no Festival Pontes para Istambul. A quase esquecida magia da herança musical cigana na Turquia promete deliciar amantes de todos os tipos de música.


Istanbul Oriental Ensemble é um dos grupos que melhor preserva o estilo da música tradicional cigana da Turquia. O reportório inclui algumas antigas canções de amor turcas e peças contemporâneas compostas por membros da banda. De Istambul até ao CCBelém, um concerto intenso que mistura tradição, exotismo e modernidade.
CCB/Istanbul Oriental Ensemble/JDACT

Ara Güler: Olhar Istambul

Ara Güler é a figura maior da fotografia turca. Começou por trabalhar para a imprensa turca e internacional, mas rapidamente ganhou lugar entre os melhores fotógrafos do mundo na famosa agência Magnum. Ara é conhecido como O olho de Istambul e construiu uma obra única sobre a sua cidade e o seu país.


São retratos de uma cidade em movimento, atravessada por uma actividade incessante e habitada por gentes e histórias cheias de uma intensa nostalgia.
CCB/Ara Güler/JDACT

Francesco Geminiani: A Floresta Encantada




A Floresta Encantada é uma das muitas peças inspiradas na obra-prima do poeta italiano Torquato Tasso, la Gerusalemme Liberata, de 1580, que descreve os combates imaginários entre cristãos e muçulmanos durante o cerco a Jerusalém, no fim da primeira cruzada.
A música de A Floresta Encantada foi encomendada a Francesco Geminiani (1687-1762) pelo encenador Giovanni Niccolò Servandoni (1695-1766). O texto descreve as tentativas para retomar o cerco a Jerusalém, depois do mago Ismeno ter «encantado» a floresta de onde os guerreiros queriam trazer a madeira para construir as máquinas de guerra.
A simplicidade do enredo permite a Geminiani recriar através da música ambientes misteriosos, espíritos e batalhas.
Torquato Tasso
CCB/Divino Sospiro/JDACT

sexta-feira, 12 de março de 2010

Camilo Pessanha (Coimbra, 1867-Macau, 1926) foi um poeta português, expoente máximo do Simbolismo. Tirou o curso de Direito em Coimbra. Em 1894, transferiu-se para Macau, onde durante três anos foi professor, deixando de leccionar por ter sido nomeado Conservador do Registro Predial em Macau e depois Juiz de Comarca. Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro eram aprecidores da poesia de Pessanha.
Publicou poemas em várias revistas e jornais. O livro Clepsidra foi publicado em 1920 por Ana Castro Osório, a partir de autógrafos e recortes de jornais. Graças a essa iniciativa, os versos de Pessanha ficaram para a posteridade.  Apesar da pequena dimensão da sua obra, é considerado um dos poetas mais importantes da língua portuguesa. 

Nasce a aproximação do verso à música, porque a poesia é essencialmente som e ritmo em que se reflecte e revela a harmonia cósmica. A métrica adquire uma elasticidade até então desconhecida na medida de ritmo do verso, na posição das pausas e dos acentos e até no número de sílabas. É neste quadro histórico-cultural que se situa a figura de Camilo Pessanha, o único verdadeiro simbolista da literatura portuguesa e, em absoluto, um dos maiores intérpretes do Simbolismo europeu. A estatura europeia de Pessanha e a importância da sua experiência literária têm origem, em primeiro lugar, na brilhante individualidade do seu estilo poético que exalta as virtualidades da língua, extraindo das palavras um poder de evocação, sugestão e alusão desconhecido em outros escritores.  Camilo Pessanha teve uma vida inteira de abandono, desistência e amargura que estão reflectidos nos seus versos mais marcantes.
Violoncelo (Clepsidra)
Chorai arcadas
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...
De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.
Fundas, soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas, (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...
Trêmulos astros,
Soidões lacustres...
Lemes e mastros...
E os alabastros.

Dos balaústres!
Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo.
Bárbara Spaggiani/O simbolismo na obra de Camilo Pessanha/JDACT

Rafael Bordalo Pinheiro: o autor do Zé Povinho

Rafael Bordalo Pinheiro (1846-Lisboa-1905) foi um artista português, de obra vasta e dispersa por largas dezenas de livros e publicações, precursor do cartaz artístico em Portugal, desenhador, aguarelista, ilustrador, decorador, caricaturista político e social, jornalista, ceramista e professor. O seu nome está intimamente ligado à caricatura portuguesa, à qual deu um grande impulso, imprimindo-lhe um estilo próprio. É o autor da representação popular do Zé Povinho, que se veio a tornar num símbolo do povo português.
Dotado de um grande sentido de humor mas também de uma crítica social bastante apurada e sempre em cima do acontecimento, caricaturou todas as personalidades de relevo da política, da Igreja e da cultura da sociedade portuguesa. Apesar da crítica demolidora de muitos dos seus desenhos, as suas características pessoais e artísticas cedo conquistaram a admiração e o respeito público.
O Zé Povinho continua a ser retratado e utilizado por diversos caricaturistas para revelar de uma forma humorística os podres da sociedade. Foi ele que se fez ouvir om as suas caricaturas da queda da monarquia.
Rafael Bordalo Pinheiro, destacou-se sobretudo como um homem de imprensa. De 1870 a 1905 foi a alma de todos os periódicos que dirigiu quer em Portugal, quer em terras brasileiras. Em 1870 lançou três publicações: O Calcanhar de Aquiles, A Berlinda e O Binóculo, este último, um semanário de caricaturas sobre espectáculos e literatura, o primeiro jornal, em Portugal, a ser vendido dentro dos teatros. A Lanterna Mágica, em 1875, inaugurou a época da actividade regular deste jornalista sui generis que, com todo o desembaraço, ao longo da sua actividade, fez surgir e também desaparecer inúmeras publicações. Bordalo Pinheiro, vivendo numa época caracterizada pela crise económica e política e enquanto homem de imprensa, soube manter uma independência face aos poderes instituídos, nunca calando a voz, pautando-se sempre pela isenção de pensamento e praticando o livre exercício de opinião. Este seu posicionamento, deu-lhe um apoio total do público-leitor, que a censura nunca conseguiu calar a sua voz. Todas as quintas-feiras, dia habitual da saída do jornal, os leitores podiam contar com os piparotes costumeiros, com uma crítica a que se juntava o divertimento.


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