Do lado do aprisionamento da vida pela rotina
«(…) A rotina começa por ser um esforço de regularidade nos vários
planos da existência, esforço que, temos de dizer, é em si positivo. A vida
seria impossível se o eliminássemos de todo. As rotinas têm um efeito saudável:
tornando o quotidiano um encadeado de situações expectáveis, permitem-nos
habitar com confiança o tempo. Mas o que começa por ser bom esconde também um perigo.
De repente, a rotina substitui-se à própria vida. Quando tudo se torna óbvio e
regulado, deixa de haver lugar para a surpresa. Cada dia é simplesmente igual
ao anterior. A nossa viagem passa para as mãos de um piloto automático, que só
tem de aplicar, do modo mais maquinal que for capaz, as regras previamente
estabelecidas. Os sentidos adormecem. Bem podem os dias ser novos a cada manhã
ou o instante abrir-se como um limiar inédito, que nunca os cruzaremos assim.
Os nossos olhos sonolentos veem tudo como repetido. E, sem nos darmos conta,
acontece-nos o que o salmo bíblico descreve a propósito dos ídolos: … têm boca, mas não falam; olhos têm, mas
não vêem; têm ouvidos, mas não ouvem; narizes têm, mas não cheiram; têm mãos,
mas não palpam. Podemos equivocadamente pensar que nos é possível viver
assim. Mas chega a estação, como recorda o livro do Eclesiastes, em que a vista não se sacia com o que vê, nem o
ouvido se contenta com o que ouve. A rotina não basta ao coração do homem.
O grande desafio é, em cada dia, voltar a olhar tudo pela primeira vez,
deslumbrando-se com a surpresa dos dias. É reconhecer que este instante que
passa é a porta por onde entra a alegria. Mas para isso teremos de recuperar a
sensibilidade à vida, à sua desconcertante simplicidade, ao seu canto frágil,
às suas travessias. A vida que nos havíamos habituado já a consumir no
relâmpago que dura um fósforo, sem ouvi-la verdadeiramente, sem conspirar para
a sua plenitude. Para responder à pergunta sobre o sentido que a dada altura
nos assalta a vida que levo que sentido tem? E indispensável uma pedagogia
de reactivação dos sentidos.
Do lado do excesso de comunicação
Não somos apenas o nosso corpo, estamos também integrados
num corpus social, que
solicita, expande e reprime a nossa sensibilidade. Basta ouvir aquele que foi o
maior teórico da comunicação do século XX, Marshall Mcluhan, para perceber até
que ponto isso é aproveitado pela sociedade de comunicação global, para quem o
indivíduo passa a ser uma presa. O que diz McLuhan sobre a televisão, por
exemplo, é imensamente elucidativo: … um
dos efeitos da televisão é retirar a identidade pessoal; só por ver televisão,
as pessoas tornam-se num grupo colectivo de iguais; perdem o interesse pela
singularidade pessoal. Se repararmos, os meios que lideram a comunicação
humana contemporânea (da televisão ao telefone, do e-mail às redes sociais) interagem apenas com aqueles dos nossos
sentidos que captam sinais à distância: fundamentalmente a visão e a audição. Origina-se
assim uma descontrolada hipertrofia dos olhos e ouvidos, sobre os quais passa a
recair toda a responsabilidade pela participação no real. Viste aquilo? Já
ouviste a última do... Os nossos quotidianos são continuamente bombardeados
pela pressão do ver e do ouvir. O mesmo se passa com a locomoção: seja a
pilotar um avião, a conduzir um automóvel, ou seja o peão a deslocar-se nas
artérias das cidades modernas, o fundamental são os sentidos que colhem a
informação visual e sonora. Nem será necessário lembrar que não é assim em
todas as culturas. Esta sobrecarga sobre os sentidos que captam o que está mais
afastado de nós esconde o subdesenvolvimento e a pobreza em que os outros são
deixados. Ao mesmo tempo que floresce a indústria dos perfumes, desaprendemos a
distinguir o aroma das flores. Por mais que isso seja dez mil vezes mais
prático, passar pela frutaria do inodoro hipermercado não é a mesma coisa que
atravessar a catedral de aromas de um pomar». In José Tolentino Mendonça, A
Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente,
Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.
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