De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…)
Estás numa sociedade caracterizada, pelos extremos, no topo os nobres,
detentores de toda a riqueza, e na base a plebe, sem qualquer capacidade
económica e financeira. Apesar de estarem em extremidades opostas na escala
social, as suas géneses conferem-lhes uma grande liberdade, de parte a parte, que
possibilitam ascensão ou declínio, sem que isso signifique algo de
transcendente. Não estás em nenhuma destas
classes, pois não? Pois não! O grupo onde te inseres descaracteriza a
sociedade dos ideais de quem manda, a nobreza, portanto. Para eles, a classe
média, que é maioritariamente composta pelos conversos e judeus que ameaçam
prevalecer, com o domínio do capital e o comércio das cidades, nunca deveria
existir. Esta situação aguçou o engenho da nobreza, levando-os à necessidade de
examinar a vossa seriedade cristã materializada no decreto papal, datado de
Novembro de mil quatrocentos e setenta e oito, que instituiu a
Inquisição (maldita). É a mais forte
das armas usada na luta de classes para impor a ideologia daqueles que dominam
uma vez que a expulsão não resolveu o problema na sua totalidade; logo, o
conceito funciona com todo o seu vigor.
Não
tenhas ilusões, és apenas um peão num tabuleiro extremamente emaranhado. Tempos
houve em que contavam com o papel de pacificador, desempenhado pela coroa,
entre as diferentes comunidades. Papel este que foi abandonado por ser mais
seguro identificar-se com a classe mais poderosa como forma de garantir a
própria sobrevivência. E não há melhor forma de o fazer senão adoptando o
modelo imposto, bordado pelas razões de ordem espiritual, atribuindo a este a mais
alta magnitude. Um modelo, Raquel!... Um modelo assente na grande flexibilidade
social, onde a classe inferior se sente tão boa quanto a superior, faz com que
todos se sintam parte integrante. Com isso, a exterminação das outras deixou de
ser o propósito de ume única classe. O orgulho da nobreza exerce um papel
fundamental na afirmação dos cristãos-velhos. Familiaridade e nivelamento
significam a aceitação incondicional dos ideais impostos. Uma minoria, de que
fazes parte, aparentemente insignificante, instalou o terror que urge resolver.
A causa religiosa que, diga-se, encaixa tão bem, assente nos milhares de judeus
que aceitaram o baptismo depois de terem sido perseguidos e massacrados, mas que
continuam a seguir as leis de Moisés, atingiu a escala aterrorizadora no entender
das autoridades eclesiásticas. Expulsar judeus, purificar o país e estabelecer
a unidade religiosa para o serviço de Deus e, mais importante ainda, para o
serviço dos reis católicos. Hum,
Raquel, problema abençoado, não achas? O certificado que legitima a
utilização da tão desejada arma, a Inquisição (maldita). Os pecados dos
cristãos-novos estão entregues aos bispos e às cortes da sua igreja. Não os
atices Raquel... Já tens corpo de mulher, mas o que, de facto, te faz falta é
maturidade. Bolas! Queres fazer de mim
uma velha, é?
Raquel,
o patriarca da dinastia Ortiz está muito zangado contigo e com Manolo também, mas
ele é intocável. Estás em sarilhos; meteste todos em sarilhos. O carrancudo, a
insonsa e a avó estão inocentes, mas isso em nada os iliba. Podiam tomar providências
para desarraigar o mal, mas os inocentes morrem em cima de ódio. E o impávido? O impávido está-se nas
tintas! Podia ser a tua safa se Manolo não resolvesse bater o pé ao pai, mas coitado...,
está enamorado! Ficou enfeitiçado com a tua beleza e a forma alegre como abordas
a vida. Outra saída seria uma abordagem directa ao carrancudo, mas o patriarca Ortiz
sente-se muito importante para isso, acha que existem outras formas de resolver
os seus importunos. Foste denunciada por um pecado que cometes reiteradamente, Raquel,
mas os teus delatores não sabem se o cometes ou não, mas é uma bela desculpa
para punir a tua beleza e ousadia. Tu e os teus estão tramados porque quem vos denunciou
é um Ortiz. As denúncias feitas por eles trazem invariavelmente o veredicto...,
estampilha de culpa. É um pecado, Raquel, e já, foi entregue aos bispos e aos elementos
da sua corte». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições
Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.
Cortesia
de Colibri/JDACT