«(…) Decidi dizer-te, finalmente, que o presidente lhe mostraria,
embora talvez também lha lesse, a carta dos colegas (de que soubéramos por uma
confidência), e explicar-lhe-ia depois o apuro em que poria a Administração no
caso de persistir na intenção de que o livro fosse publicado; ao ponto de,
nesse caso, a Administração se reservar o direito de rever e considerar o
contrato de trabalho que, desde há tantos anos, unia Claire à universidade:
acordo de que as partes tinham tirado evidentes benefícios, ela de honra, ele
de dinheiro. Isso quer dizer que o vão
despedir? Provavelmente. Mas, porquê?
O livro dele não é um grande livro? O mais importante dos livros de história
escritos desde há séculos, aquele que descobre o que ninguém devia ter
descoberto, o que a ninguém convém que se saiba. Mas, Napoleão existiu ou não existiu? Depois de lido o livro de
Claire, acho que não. E então? Tu és, Ariadne, a aluna distinta da secção de
História Contemporânea, a discípula amada em quem Alain Sidney, chamado Claire
na intimidade, pôs todas as suas preferências, que não sei ainda se foram
também as científicas ou só as eróticas; conheço também as dos outros colegas,
todos teus admiradores segundo a mesma vacilante dicotomia; vejam só Ariadne,
essa rapariga grega, que talento para a investigação, que finura de trabalho, a
sua tese é um assombro de precisão e de ordem, tem umas lindas mamas! Sendo as
coisas assim, estando como estavas a par do que Claire escrevera e da sua
transcendência e risco, a que propósito vieram tais perguntas, e, sobretudo,
aquele E então? proferido quase como um desafio? Mais do que eu, modesto
profissional da História Literária, alcanças tu a importância daquilo que Claire
defende (e havemos de ver depois que não é uma descoberta, ainda que não
saibamos exactamente o que seja): Napoleão nunca existiu, foi uma mera invenção
técnica para explicar acontecimentos inexplicáveis, toda a história do século
XIX se torna inteligível graças a esta ficção. Ora toma lá! Se soubesses o que
no meu país disseram, como foi recebida a notícia! Já não há Napoleão em
Chamartín, nem vitória nacional sobre as tropas imperiais, e ao povo é-lhe arrebatada
a glória das guerrilhas, graças à qual conseguiu aguentar um século de opressão
sem que o orgulho popular sofresse, sem que os condenados à abjecção se
sentissem abjectos: pois cada um deles, nos piores momentos, se tinha por um
Juan Martín possível; pois tudo lhes fica agora reduzido a umas escaramuças com
Dupont, com Murat, ou com Soult, exageradas na sua importância pela propaganda
cortesã, que no mito do povo invencível achou pretexto para cem anos de
conspirações, pronunciamentos e fraudes à democracia. Mas, e os Russos? Tenho
agora mesmo em cima da mesa o New York
Times desta manhã, e, quando chegares, hei-de mostrar-to: a Academia
Soviética interroga-se a que extremos de demência chegam os intelectuais sob o
capitalismo, sendo, como se vê que são, capazes de defender com todo o luxo de
aparato científico e precisamente graças a ele, que o invasor da Rússia não é
mais do que um nome de uma mentira. E
Beressina? E o marechal Kutuzof?
Por que é que Moscovo foi incendiada? Pois entre a Rússia e a minha pátria fica
o resto da Europa, glorificada ou esmagada pelo Corso.
São muitos os interesses que se mantêm graças a Napoleão, muitas as
realidades que nele se justificam e encontram nome, os palácios e as pontes de
Paris!, para se poder receber e aceitar sem mais aquelas a afirmação de Claire!
Não duvido que o livro se leia, acredito mesmo que sim, mas como um romance
fascinante escrito por um inglês que ensina História na América do Norte. E
escrito de que modo! Porque, evidentemente, Claire fá-lo maravilhosamente.
Cork, o de Manchester, começa a sua recensão, que tenho aqui à mão, dizendo:
também a mim, aos quinze anos, me ocorreu que Napoleão nunca tinha existido,
que era um sonho de todos, apesar das provas em contrário, tão esmagadoras,
que me chegaram depois, me terem feito renunciar a tão generosa ideia. Vê-la
agora defendida pela mão e pelo engenho de alguém tão reputado como o professor
Alain Sidney faz-me retroceder aos distantes anos adolescentes e ao deleite que
me causava sempre a leitura de Alice
no País das Maravilhas. Confesso que o fabuloso conto de Lewis Carroll
já não me atrai tanto, talvez por os críticos, de tanto o manipularem, o terem
estragado; mas talvez seja devido ao facto de o exercício científico, que se
não me secou a fonte da imaginação, pelo menos canalizou-a.
É muito possível, pois, que o espírito com que enfrento a leitura do
ingente livro de Sidney não seja o apropriado. Lastimo. O artigo de Cork
é uma ave rara: rejeita a tese, mas admite a legitimidade da ideia e admira, ou
diz admirar, os métodos postos em jogo, o aparato científico e, é claro, a sua
prosa. Aqueles, porém, a quem a presença de Napoleão na história e em certos
monumentos ainda erguidos ou francamente deitados for embaraçosa ou
simplesmente intolerável, aqueles que apagariam de boa vontade os nomes de
Austerlitz, Fontainebleau e Santa Helena da memória dos mapas, encontrarão uma
especial satisfação, um deleite semelhante ao de quem remexe com o ferro no
seio da ferida, nesta leitura, cujo efeito menos visível só pode ser definido
com uma palavra francesa, soulagement.
E todos recordaremos aqueles versos de um poeta espanhol pouco conhecido: ...
Grande pena / que não seja verdade tanta beleza! Volto então àquela tarde,
se bem que já no meu gabinete, e à angústia com que me perguntavas se o
calhamaço de Claire seria um enorme disparate, a obra de um cérebro perturbado,
se não mesmo a burla imponente que se gera na frustração. Fazia-me pena ver
como perdias por momentos a confiança, já não naquele que tinha sido o teu
professor, aquele que te dirigiu uma tese por todos louvada, mas acima de tudo
em ti própria, na tua capacidade para discernir as provas e os raciocínios. A
porta do gabinete de Claire fica perto da minha: sugeri-te que fosses à procura
do texto com o objectivo de examinarmos conjuntamente algumas passagens
discutidas, e o que encontraste foi um maço de provas, o capítulo em que se
cotejam, não tanto no seu conteúdo como na sua escrita, certas páginas de
Chateaubriand, de Metternich e de Vigny. Nas primeiras narra-se e qualifica-se a
morte do duque de Enghien; pelas segundas conhecemos a entrevista de Dresden,
quanto às do poeta romântico, imagina-se nelas o que aconteceu entre o Corso e
o papa prisioneiro: são estas, precisamente, as que servem a Claire de fundamento
para a exposição do seu ponto de partida metodológico, isto é, que, com os
mesmos meios linguísticos, a narração, a
descrição do fictício, é levada a cabo por processos substancialmente
diferentes dos usados quando se narra, quando se descreve a verdade de um
acontecimento». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los
Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados,
Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994,
ISBN-972-708-232-7.
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT