«Consiste
o livre-arbítrio em voluntariamente cumprir o fado». In Agostinho da Silva
«(…) O rei José I não responde e
faz uma nova investida para me segurar o corpo onde deseja entrar. Mas
retiro-lhe as mãos das minhas ancas e levo-as aos meus seios, a grande fonte de
todos os enganos e ilusões. Não dará a vida por mim, pois não? Dou-lhe tudo o
que quiser... Menos a vida! Pois veremos se os nossos esposos chifrudos não resolvem
reescrever esta ópera e matar-vos antes a vós, meu rei. Já não estava a ouvir-me,
porque o desejo cerrara-lhe também os ouvidos. Mas deveria. Porque o tempo não
estava para cegueiras nem surdezes. Luís Bernardo, meu marido, não suportava a ideia
de ver a sua mulher nos braços do rei, o único homem a quem ele não podia
desafiar para um duelo em defesa da sua honra.
A apoiá-lo, toda a família dos
Távora a desejar vingança de um rei que os destratava e de um ministro que não
suportavam, de seu nome Sebastião José Carvalho e Melo. Do lado do rei, existia
uma rainha que o amava, disposta a tudo para o ver cingir-se à sua cama. O que
seria esse tudo, ninguém o sabia. Segundo José I, a rainha dona Mariana Vitória
limitava-se a obrigar as damas da corte a trocarem os decotes pelas golas e
abotoados alemães, mais decentes e muito menos aliciantes para o rei. As
criadas que o serviam eram agora todas muito feias e de formas mal esculpidas. E
dizia ainda o rei que dona Mariana se tornara uma amante despudorada, dentro
das quatro paredes do quarto real, para não dar azo a que o seu rei procurasse
a falta de pudor fora de portas. Mas isso não tenho a certeza de ser verdade.
Talvez fosse apenas uma forma que o rei arranjara de me provocar e me tornar
ainda mais despudorada do que essa outra que sustinha a coroa. O que no meu
caso não era difícil, diga-se, porque não me exigia qualquer esforço, nem era
motivado por nenhuma outra intenção que não fosse a obtenção de prazer. Volúpia
genuína, portanto. A única verdadeiramente eficaz para levar um homem à
loucura.
Arrancou a venda dos olhos,
louco, porque precisava agora de todos os sentidos para dar azo à excitação. E
levantou-me com os seus braços fortes para me encaixar na sua cintura. Não
houve tempo de chegar à cama. A escrivaninha onde, anos antes, eu escrevia
cartas ao meu esposo Luís Bernardo, a desejar-lhe sorte para as façanhas da
guerra, embrulhadas em juras de amor fiel, nunca cumprido, era agora o palco de
dois corpos despidos que se amavam como se o mundo fosse terminar naquele
instante. Era aquela a nossa ópera: As
escapadelas de Sua Majestade José I, que ainda julgávamos ser apenas de
sedução e traição. Mas as óperas alimentam-se, igualmente, das tragédias. E a
nossa estava prestes a começar. Quem morreria, ainda nenhum de nós sabia. Se
algum de nós morrer, minha Popeia, será de prazer..., disse-me o rei José, com
as carnes já satisfeitas e o desassossego já sossegado. Puro engano. Saborosa
ilusão, que uma meia hora depois se esfumaria, sem remédio. Três tiros
disparados contra a sege de José Teixeira, onde o rei viajava supostamente
incógnito, de regresso ao palácio.
Foi a última vez que nos amámos,
e eu fui Popeia, a amante do rei a quem ele chamava imperatriz. Daí em diante
apenas marquesa-nova e Távora, e depois já nem isso, porque tudo conseguiram
tirar-me. O nome, o título, o palácio e a liberdade. Deixaram-me apenas com a
culpa de todos os males que viriam a manchar Portugal de sangue, nos meses que
se seguiriam... Mas lá chegaremos, ao futuro, que nada é sem o passado que o alicerçou.
Vinte anos antes, José I ainda era príncipe, mas eu já era mulher e capaz de o
seduzir. Vinte anos antes, éramos já uma semente da árvore que viria a
ensombrar os nossos destinos. Vinte anos antes, foi assim que tudo começou...
31
de Março de 1738
Estava a meses de completar 15 anos
quando José, ainda príncipe, me cobiçou
pela primeira vez. Estava sentada ao lado de dona Pelágia Almada, neta de
princesa de Soubise, que se divertia a provocar o velho Luís Castelo Branco. Já
à beira dos 60 anos, era agora 4.º conde de Pombeiro pela morte do irmão mais
velho, que não deixara descendência. O conde Luiz fora cónego do patriarca, sem
qualquer vocação para o cargo, dizia-se, porque os seus olhos sempre se haviam arregalado
para as jovens fidalgas que lhe sorriam na igreja, entre uma ave-maria e um pai-nosso.
Assim que se apanhou detentor do título que lhe escapara por ter nascido segundo
filho, pediu dispensa para casar, com esperança de que a idade ainda lhe
permitisse uma prole legítima. E dona Pelágia, 35 anos mais nova do que ele, parecia-lhe
a jovem perfeita, a sua fonte da juventude e aquela que daria futuro ao seu nome
e ao seu título, o que viria a acontecer dois anos depois. Tem a barriga tão gorda,
que duvido de que consiga ver os próprios pés..., segredava-lhe, entre risos, que
chamavam a atenção dos nobres sentados no anfiteatro da Junqueira, onde se comemorava
o aniversário de dona Mariana Vitória, esposa do príncipe José e futura rainha».
In
Sara Rodi, Teresa Távora, A Amante do Rei, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013,
ISBN 978-989-626-482-6.
Cortesia
EsferaLivros/JDACT