«Urna
força social poderosíssima arrastava para fora de Portugal homens aos milhares,
poucas mulheres. Eram homens de 50 soldos, esfarrapados e descalços, pescadores,
marinheiros, artesãos ligados à construção naval e ao fabrico das armas, mercadores,
escudeiros, fidalgos, clérigos. A torrente carreava para dentro riqueza de fora:
as drogas, o ouro, as pérolas, os têxteis; aumentava dentro o número dos
escravos da África, da Ásia e da América; atraía europeus. As formas, os cheiros,
os sabores chegavam nas velas e nos corpos. Aumentava o tráfego à escala do
mundo. Recorria-se ao crédito, iniciava-se a corrida aos padrões de juro. Os campos
perdiam mão-de-obra jovem, crescia o número das viúvas. Do extremo ocidental da
Europa, um pequeno povo hispano provocava mudanças qualitativas e quantitativas
muito profundas à escala do Mundo: na viagem, no pensar, na representação dos humanos,
do planeta, da fauna e da flora, rio espanto e na variedade das culturas, na
extensão e na velocidade do comércio, nas indústrias do mar e da guerra, nos patamares
da riqueza. Não creio que na cristandade
haverá rei tão rico como Vossa Alteza. O rei e os seus ministros empurravam
uma e outra vez os capitães e os soldados para o Mar Vermelho e a Etiópia. Falem
com o Preste João, abram caminho para Jerusalém. Mas o íman eram o ouro de Sofala,
os portos do Golfo Pérsico, de Cambaia, de Canará, do Malabar, do Golfo de
Bengala, da Birmânia, da Tailândia, do Camboja, da Indonésia, da China e do Japão.
A atracção era tão forte que Governador que passe o cabo da Boa Esperança nunca lhe mais lembra se Portugal nasceu no
Mundo.
Pilotos, mestres, mareantes,
mercadores, clérigos, capitães, geógrafos e políticos carregavam todos os dias sobre
as costas a esfera do mapa-mundo, nas palavras de João Barros. E a mestria na
construção de navios oceânicos e na arte de navegar, a prática na fundição e manuseio
de bombardas de variado poder de fogo, a técnica e saber na construção de
fortalezas, deram às armadas portuguesas um temível poder no Atlântico e nos
mares orientais. Com Portugal, a forte Europa
belicosa, corno personagem militar, política e civilizacional, confrontava a
Ásia e a África. A América começava a desvelar o rosto. A Austrália foi encontrada
mas continuou na penumbra. No processo de desenvolvimento e apropriação pelos hispanos
e europeus do novo continente americano, os portugueses estenderam ao Brasil a civilização
do engenho, criada nas ilhas do Atlântico. Cabia aos escravos, índios e negros,
a carga do trabalho e do sacrifício. Como diria mais tarde o padre António Vieira:
quem nos há-de ir buscar um pote de água
ou um feixe de lenha? Quem nos há-de fazer duas covas de mandioca? Hão-de ir nossas
mulheres? Hão-de ir nossos filhos?... Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos
e essas capas se torceram haviam de lançar sangue. Os portugueses tinham
fé, lei e rei. A fé amarrava-os a uma crença e a um ritual da vida e da morte e
legitimava a perseguição civil e armada aos mouros e aos luteros; a lei e o rei integravam-nos na comunidade que se individualizara
no território ocidental da Hispânia desde o século XII. Outro laço, fortíssimo,
provinha da partilha de uma língua que se estruturava na fala e na escrita e gerava
um tesouro, hoje quase escondido, de textos geográficos, antropológicos,
literários, históricos, linguísticos e científicos.
A militarização da sociedade e o
triunfo da Contra-Reforma permitiram que os teólogos, os doutores e os fidalgos
se mantivessem na direcção da política, da cultura, da economia e da ideologia.
Afundaram as contas, travaram a atividade dos mercadores profissionais, em boa
parte, cristãos-novos. O tribunal do Santo Ofício (maldito) e os teólogos conservadores
das Ordens Religiosas bloquearam a criatividade do pensamento, a crítica e as práticas
que se desviassem dos dogmas tridentinos. Sufocaram no berço a rotura epistemológica
que internamente se operava e se desenvolveria na Europa». In António Borges Coelho, Na
Esfera do Mundo, Editorial Caminho, 2013, ISBN 978-972-212-642-7.
Cortesia Caminho/JDACT