«(…) Poucos criadores terão ilustrado com tanto génio o carácter intrinsecamente
fetíchista, idólatra, de todo o erotismo,
como Eça de Queirós. São célebres as fixações dos seus heróis ou heroínas, a
absolutização de uma parte do corpo (pé, pescoço, ombro, o que então estava
mais à vista), como declic para a apropriação
fantasmática do resto. Maior é a distância em termos de mera apropriação
fascinada do pormenor em relação ao todo visado, maior é a carga erótica de que
se reveste. Como já Sócrates observara no Fédon,
mas agora explorado com requintes demoníaco. Eça recria o corpo erótico ainda
com mais intensidade menos através da rêverie
que o pormenor do corpo desejado lhe faculta, que sobretudo daquilo que dele se
evola ou com ele esteve em contacto. E mais do que tudo daquilo que por analogia
permite à memória, já tão pré-proustiana de Eça, recuperar, depurado, por assim
dizer, o próprio perfume do erotismo: À
tardinha quando refrescava, ia espalhar para a Baixa. Mas cada cortina de casa
me lembrava a intimidade da alcovinha de Adélia, num simples par de meias,
esticado na vitrine de uma loja, eu revia com saudade a perfeição da sua perna;
tudo o que era luminoso me sugeria o seu olhar; e até o sorvete de morango no
Martinho, me fazia repassar nos lábios o adocicado e gostoso sabor dos seus
beijos.
Pareceria que este erotismo em segundo grau, esta sublimação relativa
dele pela memória, contivesse, em termos afectivos, sentimentais, a suficiente
volúpia capaz de apaziguar a violência e angústia latente do surto erótico, da
sensualidade dos primeiros encontros, como no caso de Amaro e Amélia. Mas nunca o erotismo queirosiano tem a sua
raiz ou o seu ponto de fuga em si mesmo. Como na sua essência ou em todo o
caso, na sua encenação ficcional, é da ordem
da tentação, quer dizer de uma desordem dos sentidos e do espírito que
submete a alma à vertigem pura da queda,
no seu devenir é fuga para espaços ou objectos que o livrem da tentação. Todo o
erotismo de Eça se recorta e ao mesmo tempo se exaspera sob o fundo de uma
visão ideal antierótica, estado adâmico original, imagem redentora ou
exemplar sem sombra do pecado original. O resultado é conhecido: de remédio
contra a tentação, essas realidades-mitos tornam-se a expressão alucinatória de
um Desejo sem referente humano, amalgamando num só, o êxtase barroco que tem
como objecto Deus e o êxtase erótico profano que Adélia lhe suscita. Sem
transição, logo a seguir à passagem sobre as saudades da alcovinha de Adélia, o narrador continua: À noite, depois do chá, refugiava-me no oratório, como numa fortaleza
de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado na sua
linda cruz de pau-preto. Mas então o brilho fulvo do metal precioso ia, pouco a
pouco, embaciando, tomava uma alva cor de carne, quente e tenra, a magreza do
Messias triste, mostrando os ossos, arredondava-se em formas divinamente cheias
e belas; por entre a coroa de espinhos, desenrolavam-se lascivos anéis de
cabelos crespos e negros; no peito sobre as duas chagas, levantavam-se rijos,
direitos, dois esplêndidos seios de mulher, com um botãozinho de rosa no peito,
e era ela, a minha Adélia, que assim estava no alto da cruz nua, soberba,
risonha, vitoriosa, profanando o altar, com os braços abertos para mim!
Por mais paródico, voluntariamente satírico, que suponhamos este, e outros
textos de Eça, o que está escrito está escrito,
e nessa passagem não está apenas fantasmada a transmutação do corpo de Jesus no
corpo de Adélia mas a simétrica confusão do corpo de Adélia com o corpo de Jesus.
Eça foi a mais audaciosa e inteligente imaginação do seu tempo, mas não se pode
exigir que lhe fosse consciente o que no tempo pós-freudiano não pode ser
ocultado com o tipo de autoconsciência que Eça (o seu narrador), explicitando
sempre de mais as suas audácias, ilustra para salvaguarda sua: Eu não via nisto uma tentação do Demónio, antes
me parecia uma graça do Senhor. E como a lógica da sua provocação, a dos
irresistíveis mecanismos que a determinam e são os da sua ficção, não tem
entraves, Eça continua: Comecei mesmo a
misturar nos textos das minhas rezas as queixas do meu amor. O Céu é talvez
grato, e esses inumeráveis santos a quem eu prodigalizava novenas e rezas
desejariam talvez recompensar a minha amabilidade, restituindo-me as carícias
que me roubara o homem cruel da capa à espanhola. Se em vez de textos das queixas do meu amor lermos textos da minha ficção, a paisagem erótica
de Eça ilumina-se de insuspeitadas e ambíguas claridades. A sua denegação é
supérflua. Demasiado sabe ele que o campo que está lavrando, pela primeira vez
entre nós, é, no só por metáfora ou provocação libertina, mais que o do
Tentador, o da vertiginosa tentação
sem o qual o seu imaginário jamais teria ousado tais cenas. Ou, o que mais
importa: descrevê-las usando um código que é a exacta transposição daquele que
estrutura as orações beatamente obscenas que Amaro, para levar a bom fim a
educação erótica de Amélia, tanto finge abominar, gozando como Amélia, mas
conscientemente, o deleite da abominação». In Eduardo Lourenço, As Saias de Elvira e
Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.
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