Uma
Constelação Única
«(…)
O pai de Leonardo, Ser Piero, terá quase de certeza visitado o pai, Antonio Vinci,
e o seu irmão Francesco na propriedade dos Da Vinci em encontros familiares nos
dias festivos e durante as férias do verão. E terá certamente levado consigo a
sua jovem esposa, Albiera, com quem se casara em Florença, tal como terá levado
a sua segunda esposa, Francesca, com quem se casou depois da morte de Albiera.
Nenhuma destas mulheres teve filhos. Leonardo pode ter sido uma criança
solitária sem mãe, mas parece que o seu bom aspecto e a sua habilidade precoce
para o desenho terão encantado as duas madrastas. Desde o início, ele ostentou a
autoconfiança de quem está habituado a ser o centro das atenções, de um rapaz
que cresceu a sentir o amor feminino cheio de adoração e que nada questiona. O
facto de estas duas madrastas extremosas terem morrido quando Leonardo era
ainda jovem causou-lhe sem dúvida mágoa e pode ter contribuído para o
autodomínio retraído que ele começava a evidenciar.
Por
volta de meados de 1460, no início
da adolescência, Leonardo foi viver para Florença, onde o seu excepcional
talento para o desenho lhe valeu ser aceite como aprendiz no atelier do eminente artista Andrea del Verrocchio.
Aí, Leonardo aprenderia a desenhar, a pintar, anatomia, escultura e desenho
arquitectónico. Isto conduziu-o a novos campos, alargando ainda mais a sua
capacidade intelectual. O desenho levá-lo-ia ao estudo da perspectiva, o que o
fez interessar-se pela geometria; e a anatomia a estudar cuidadosamente o
funcionamento dos engenhos mecânicos; a arquitetura levá-lo-ia ao estudo das proporções
aritméticas, o que, por sua vez, o incentivaria a aprender a harmonia na
música. A sua curiosidade intelectual associada à falta de uma instrução formal
impeliu-o para uma busca incessante de um novo conhecimento. Este era um conhecimento
que ele fazia questão de adquirir à sua própria maneira: não a partir dos
livros (a maioria dos quais estava escrita em latim, língua que ele não
compreendia), mas sim a partir da experiência; não de maneira sistemática, mas
como e quando surgia a oportunidade adequada. Começou a anotar as coisas em
cadernos de apontamentos, sem uma ordem geral nem de importância, tal como
faria ao longo de toda a vida. Não havia um plano abrangente que fosse além do puro
impulso inicial, que Leonardo seguia com força e deslumbramento infantis na direcção
que ele lhe impunha. No entanto, esta aquisição de conhecimento não se fazia
sem uma aprendizagem livresca. Foi por volta desta época que ele começou a ler,
em tradução italiana, o autor romano do século I a.C. Lucrécio, cujo poema
épico De Rerum Natura (Sobre
a natureza das coisas) procurava explicar o mundo em termos científicos.
Embora as investigações de Leonardo possam ter parecido casuais, elas foram cada
vez mais orientadas por uma visão global, uma consistente visão empírica do
mundo, e isso provavelmente ele foi buscar a Lucrécio.
Muitos
dos melhores artistas de Florença reuniam-se no atelier de Verrocchio, incluindo Botticelli, o pintor preferido de
Lourenço, o Magnífico, chefe da
poderosa família Medici, que governava Florença. A magnificência, de Lourenço estendia-se a muitas áreas. Como
governante, fez de Florença uma grande cidade; a sua valentia nos torneios era
lendária; era um dos mais talentosos poetas do seu tempo, e o círculo social
que ele reunia no Palazzo Medici, na Via Larga, incluía os melhores poetas,
artistas, filósofos e eruditos. Entre eles contavam-se o poeta Angelo
Poliziano, o filósofo Giovanni Pico della Mirandola e o erudito em Platão
Marsilio Ficino, todos eles figuras excepcionais do Renascimento a que se
assistia em Florença.
De
modo inevitável, não passou muito tempo sem que o belo e talentoso Leonardo da
Vinci chamasse a atenção de Lourenço, o
Magnífico. Era mais um jovem poderoso por quem Leonardo se sentiu atraído,
e em breve este era considerado parte do círculo de artistas, filósofos e
poetas de Lourenço. No decorrer dos seus estudos musicais, Leonardo tinha aprendido
a tocar lira e desenvolvido uma voz excepcionalmente harmoniosa para o canto,
com a qual entretinha agora Lourenço e os seus amigos. Esta ligação pessoal com
o governante da cidade traria graves consequências para Leonardo. Em parte numa
afirmação deliberada das suas aptidões excepcionais, e em parte numa
compensação exibicionista para a sua condição de filho ilegítimo, Leonardo
tornara-se uma espécie de dandy. Alto
e belo, impunha a sua figura caminhando pelas ruas de Florença nas suas botas
de macia pele de Córdova que lhe chegavam ao meio da coxa, o cabelo comprido
caindo em caracóis por sobre os ombros da túnica curta cor-de-rosa, exalando ao
passar um aroma a água de rosas». In Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o
Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do
Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.
Cortesia
do CAutor/JDACT