«Lucano
não sabia ao certo se gostava ou não do seu pai. Sabia apenas que o lamentava.
Homens simples e sem pretensões podiam ser admirados. Os sábios podiam ser venerados.
Mas o seu pai não era simples nem sábio, embora julgasse pertencer a esta última
categoria. Os guarda-livros e os notários tinham uma posição importante na vida,
sobretudo se fossem diligentes e compreendessem o seu valor enquanto guarda-livros
e notários e não insinuassem possuir dons mais elevados. Não era agradável quando
falavam de homens menores num tom excessivamente
erudito e superficial. Mas a mãe de Lucano sorria de forma tão terna e piedosa quando
o marido entoava os seus ridículos preconceitos que a luz da sua compaixão apaziguava
o filho. Havia ainda a questão de Eneias lavar as mãos em leite de cabra de manhã
e à noite, esfregando cuidadosamente cada ruga, fenda e articulação com o rico
fluído. Por volta dos dez anos de idade Lucano compreendeu que o pai não estava
apenas a tentar amaciar e branquear as mãos, e sim a tentar apagar as cicatrizes
da sua antiga escravidão. Isso irritava Lucano, pois já então ele sabia que nenhum
trabalho é degradante, a não ser que o trabalhador assim o encare. Mas quando Eneias
sacudia delicadamente as mãos molhadas para as secar no ameno ar sírio, Lucano via
as zonas desfiguradas das palmas e a feia e longa cicatriz nas costas da franzina
mão direita e a piedade assolava-o como uma vaga de amor indistinto. A sua compreensão,
no entanto, era ainda a de uma criança.
Eneias revelava-se no seu melhor
quando despejava a tradicional libação aos deuses antes da refeição da noite.
Lucano observava-o então com uma veneração que não podia ser descrita por palavras.
A voz do pai, por norma sempre tão aguda, agreste e altiva, tornava-se humilde e
hesitante. Eneias estava grato por os deuses o terem libertado, por terem possibilitado
aquela casa pequena e agradável com os seus jardins de palmeiras, flores e árvores
de fruto, por o terem levantado do pó e lhe terem conferido autoridade sobre outros
homens. Mas para Lucano o momento mais solene ocorria quando Eneias enchia de novo
o copo com vinho e, ainda com maior reverência, despejava lenta e cuidadosamente
o líquido vermelho dizendo com uma doçura quase inaudível: Ao Deus Desconhecido. As lágrimas enchiam os grandes olhos azuis do
rapaz de dez anos. O Deus Desconhecido. Para Lucano a libação não era apenas um
antigo costume dos gregos. Era uma saudação mística, um rito universal. Lucano observava
as gotas cor de rubi caírem e o seu coração estremecia com uma emoção quase insuportável,
como se testemunhasse o derramamento de sangue divino, a oferenda de um sacrifício
insondável. Quem era o anónimo Deus
Desconhecido? Eneias respondia ao filho dizendo que era um costume grego
realizar este ritual em seu nome, sendo necessário manter os costumes civilizados
dos gregos quando se vivia entre bárbaros romanos, ainda que o mundo fosse governado
por esses mesmos bárbaros. As suas mãos marcadas dobravam-se então num inconsciente
gesto de homenagem e o seu rosto estreito, tão insignificante e banal, adquiria
distinção e gravidade. E nesse instante Lucano sabia que amava o pai.
Lucano fora cuidadosamente instruído
sobre os deuses pelo pai, que os designava pelos seus nomes gregos e não pelos
nomes grosseiros que os romanos lhes tinham atribuído. Mas para Lucano, mesmo com
os seus nomes poéticos e aprazíveis, eles não passavam de homens, agigantados e
imortalizados, detentores de toda a crueldade dos homens, da sua voracidade, luxúria,
ódio e malícia. Mas o Deus Desconhecido não parecia possuir os atributos humanos:
não tinha os seus vícios, e nem sequer as suas pequenas virtudes. Os filósofos ensinaram-nos
que Ele não pode ser compreendido pelo homem, dissera certa vez Eneias ao filho.
Mas Ele é poderoso, omnisciente e omnipresente, tudo abrangendo e contudo presente
em cada partícula que existe, seja ela árvore, pedra ou humanidade. Assim afirmam
os pensadores imortais do nosso povo. O rapaz é demasiado sério para a idade que
tem, referiu uma certa vez Eneias a Íris, sua mulher. Mas não nos podemos esquecer
que o seu avô, o meu pai, era um poeta. Logo, não o devo censurar. Íris sabia que
o avô poeta era uma das ficções mais patéticas do marido, mas ainda assim anuiu
com um pequeno aceno da cabeça. Sim, o nosso filho tem o espírito de um poeta.
Porém, vejo-o e ouço-o a brincar com grande entusiasmo com a pequena Rúbria. Correm
juntos atrás das ovelhas e escondem-se um do outro por entre as oliveiras, e os
seus risos infantis são por vezes arrebatados e ruidosos.
Íris observou graciosamente o marido,
que erguia a cabeça com solenidade, tentando esboçar preocupação. Apesar do desprezo
que nutria pelos romanos, o seu pobre coração sentia-se orgulhoso. Espero que não
esteja a negligenciar os estudos, disse Eneias. Apesar de todo o respeito que tenho
para com o meu patrão, é difícil esquecer que ele é um bárbaro romano e que a sua
filha não pode oferecer ao meu filho qualquer estímulo intelectual. Acrescentou
então rapidamente, contudo, não podemos esquecer que ele tem apenas dez anos e que
a pequena Rúbria é ainda mais nova. Dizes,
portanto, minha querida, que eles brincam constantemente juntos? Não dei
por nada, mas a verdade é que passo os dias embrenhado na casa do tribuno, de manhã
à noite. Lucano ajuda Rúbria nas suas lições, disse Íris, sacudindo um caracol louro
da testa. É uma pena que o nobre tribuno, Diodoro Quirino, não tenha querido
que a ensinasses». In Taylor Caldwell, 1959, Médico de Homens e de Almas, tradução de
Margarida Luzia, A Esfera dos Livros, 2009, ISBN 978-989-626-153-5.
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