«(…) A esta altura, cabe
destacar um dos mais importantes centros de cultivo do Celtismo na Galiza: a
chamada Cova Céltica. Este núcleo surgiu na Coruña, na livraria de Uxío
Carré Aldao, ele mesmo um importante intelectual em seu tempo, e tornou-se
um duplo centro de resistência: em primeiro lugar, foi o local no qual
reuniam-se os escritores regionalistas que, em reação contra os vanguardistas
que escreviam em castelhano a fim de seguir as novas tendências madrilenhas,
ali se reuniam para criar e publicar escritos em galego. Em segundo lugar, é
preciso ter em mente que faziam parte da Cova Céltica tanto o já mencionado
historiador Manuel Murguía quanto Eduardo Pondal; e contra Murguía, defensor das
origens célticas da Galiza, estava Celso Garcia La Riega, intelectual pontevedrês
que, em oposição àquele, defendia que as origens do povo galego eram gregas, e
não célticas. Por este motivo, Garcia La Riega apelidou ao grupo da livraria de
Carré, pejorativamente, la cueva céltica;
mas o grupo, apoderando-se da denominação, traduziu-a para o galego. Desta
forma, a Cova Céltica tornou-se um centro cultural que desempenhou importante
papel neste processo de construção da identidade galega, ao tornar-se um centro
activo de defesa do Celtismo. Passaremos, agora, a um exame mais pormenorizado
de algumas obras de Rosalía de Castro e Eduardo Pondal, a fim de demonstrar
mais explicitamente de que maneira a construção da identidade galega é nelas
realizada.
A cantora: território e tradição nos
cantares gallegos de Rosalía de Castro
Como mencionamos
anteriormente, os Cantares gallegos de Rosalía de Castro foram
idealizados pela poetisa como uma forma de retomar o lirismo galego,
dignificando sua língua e reverenciando as belezas e tradições da Galiza,
havendo a poetisa se inspirado no Libro de los cantares de Antonio Trueba.
O ponto de partida de ambas as obras é o mesmo: trata-se de resgatar motivos
populares por via de glosas e apropriações temáticas, procedimento percebido
como uma forma de entrar em contacto com o lirismo popular e, através deste,
com o substrato das próprias tradições e costumes do povo. Disso deriva a
similaridade do ternário que encontramos nestes dois livros: como observa
Carballo Calero; tradução nossa, à obra de Trueba comparecem motivos como o da moça desonrada, da
romaria, o canto nocturno dos pequenos animais, a ausência, a separação dos
amantes na alvorada, temas que também comparecem à obra de Rosalía. A
escritora galega, no entanto, realiza seu projecto lançando mão de um recurso
particular: a construção de uma persona literária, a saber, a figura da cantora que emoldura os Cantares, fazendo-se explicitamente
presente no primeiro e no último poemas do livro, mas também podendo ser
entrevista em diversos outros momentos da obra. Vejamos como se configura esta cantora
rosaliana. Consoante Pociña e López: Rosalía
recorre à utilização deste personagem, a cantora, para estabelecer uma
distância entre a autora e a sua obra, transferindo para esta máscara a tarefa
de dignificar o seu povo e a sua língua, deixando ao mesmo tempo diluída asua
própria personalidade; deste modo fica encoberta a ousadia de fazer algo
que é novo e importante.
O sentido deste recurso
está, na verdade, implícito no prólogo dos Cantares gallegos. Rosalía
parece de facto sincera quando não se considera capaz de desempenhar à altura a
tarefa de representar uma porta-voz da Galiza; talvez de facto padeça da angústia autoral que postulam os
mesmos Pociña e López, considerando-se deslocada tanto do espaço da palavra pública,
até então fundamentalmente ocupado por homens, quanto do espaço da palavra
poética, uma vez que se apresenta como seguidora de uma proposta literária inovadora,
inaugurada por Antonio Trueba. Deste modo, a adopção de uma máscara literária
representa uma forma de instaurar uma clivagem entre Rosalía e seus poemas, que
funcionaria simultaneamente como refúgio defensivo e recurso criativo, sendo
este segundo sentido o que mais nos interessa. A cantora rosaliana faz a sua
primeira aparição no poema que abre os Cantares gallegos. Dividido em
quatro partes, o poema começa com uma incitação para o canto, dirigida a uma
certa menina gaiteira, adjectivo
que, mais que a alegria, evoca, segundo Pociña e López, uma certa frivolidade
que identifica-a às meninas das cantigas medievais, muitas das quais tão
relacionadas ao lirismo popular quanto as poesias de Rosalía. Nas demais seções
do poema, o discurso é transferido para a primeira pessoa, o que nos permite
supor que seja a própria Rosalía a cantora, o que nos remete à já mencionada
noção de máscara. É como se a poetisa, na parte inicial, criasse uma
trincheira protectora, para só a partir da segunda secção se expor de facto.
Reforça esta hipótese a estância inicial da segunda parte:
Assim me pediram
na beira do mar,
ao pé das ondinha
que vêm e que vão.
Assim me pediram
na beira do rio
que corre entre as ervas
do campo florido.
Note-se que Rosalía não explicita quem fez o pedido; ao invés disso, apenas
descreve o lugar onde tal pedido foi realizado. Todavia, é preciso considerar
que a autora está falando através da máscara, ou seja: não foram pessoas
específicas que fizeram o pedido para Rosalía; foi a própria Galiza, representada
por sua paisagem, que fez o pedido para a cantora que nela habita». In
Henrique Samin, A construção da Identidade Galega nos Discursos Poéticos de
“Rosália de Castro” e Eduardo Pondal, Conexão Letras, volume 2, nº 2, 2006.
Cortesia de Conexão Letras/JDACT