O Tempo de Meu Pai
«(…) Caio, no meio de tudo aquilo, ia e vinha, corria por
todo o lado e tornava-se muito popular entre os soldados da escolta, colocava
perguntas que por vezes faziam rir os homens mas que, também, lhe valiam longas
respostas, que ele escutava com o ar mais sério e que retinha até à última
palavra. Tinha seis anos, precisamente o dobro da minha idade. Parecia-me já
terrivelmente idoso. E ele estava também convencido disso e dava-me uma lição a
propósito de qualquer coisa. Explicava-me a razão de ser do que eu via e
compreendo agora, depois de todos estes anos, a profunda influência que exerceu
sobre mim. O seu maior sucesso foi no dia em que ele me mostrou Nicópolis, a
Cidade da Vitória, em frente da qual se deu a batalha entre Augusto e António.
Uma vez mais repetiu-me que o nosso bisavô Augusto, e mais ainda o nosso avô Agripa,
tinham feito todos os possíveis para eliminar completamente o nosso outro bisavô.
Isso parecia aos seus olhos algo da maior comicidade possível. De repente,
começava a chorar, a gritar, e parava para me dizer a meia voz: … vês, é por António e, sem transição, rebentava
a rir. Era por Augusto e Agripa! Tal comédia encantava-me, apesar de me fazer
um pouco de medo. Eu dizia, vagamente, a mim própria, que as coisas eram ou
tristes ou alegres, que não podiam ser simultaneamente razão para tristeza e
razão para alegria. Ali, em frente da baía de Áccio, ao lado dos troféus erguidos
por Augusto, para celebrar a derrota daquele que havia sido o esposo de
Octávia, sua irmã tão amada segundo me dissera a minha mãe, eu não sabia mais o
que pensar. Se se amava alguém, como se poderia querer fazer-lhe mal? Eu amava
a minha mãe mais do que ninguém no mundo. Eu teria querido que ela nunca se
sentisse mal. Eu não suportava pensar que ela pudesse sofrer. Ela sabia-o e
esforçava-se Por sorrir, por me sorrir, mesmo quando alguma dor a impedia
bruscamente de respirar. Sobretudo nesses momentos, para que eu não pudesse adivinhar
o que ela sentia.
Apesar da sua fadiga, ela pareceu reanimar quando chegámos a
Atenas. Essa foi uma entrada verdadeiramente triunfal, e digna dessa cidade, de
que sempre me disseram que não existiam duas iguais. Acreditava nisso de bom
grado, visto que era a pátria da minha mãe. Pensei, ingenuamente, que o meu pai
só mostraria aos Atenienses em toda a sua glória, com uma escolta de soldados.
Mas ele não fez nada disso. Apresentou-se de toga, e fez-se preceder por um
único lictor. E nós seguimo-lo a pé. Para um romano, parecia que era demonstrar
um orgulho insuportável entrar-se numa cidade aliada, fazendo-se transportar de
carro ou mesmo de liteira. Isso humilha os habitantes. Eu não teria hesitado em
humilhar os Atenienses, se isso dependesse apenas de mim, Para evitar que a
minha mãe andasse aquele longo percurso a pé, por aquelas ruas tão estreitas e
tortuosas. Quanto a Caio, manteve um ar sério, imperturbável, durante todo o
trajecto, lançando olhares à direita e à esquerda, que denunciavam a sua
curiosidade. Via-o abanar a cabeça quando passávamos por baixo de arcos improvisados,
em que haviam sido penduradas inscrições que, naturalmente, eu não conseguia
ler. Caio pretendia dar a impressão que as conseguia ler e compreender, o que,
afinal, até era possível. Na verdade, eu preocupava-me muito pouco com tudo
isso. A minha sandália, que era nova, magoava-me o pé. Cada passo me era
doloroso. Mas eu estava perfeitamente consciente de que seria humilhante
queixar-me, e mais ainda chorar. A minha honra de Romana, a honra da própria
Roma estava em jogo. Aos três anos, eu já sabia que não se chora em frente dos
Gregos!
Quando chegámos à casa que devia acolher-nos, durante a
nossa estada na cidade, aguardava-nos uma delegação de magistrados. Vi um grupo
de personagens austeras, que se inclinavam em conjunto perante o meu pai, o que
os fazia parecer pássaros a debicar e nos tornava simpáticos. Eu gostava
bastante de pássaros, sobretudo de pombas, que voavam bastante sobre o
Palatino. Empoleiravam-se nos plátanos, nos loureiros, nos ciprestes e nos
pinheiros dos jardins vizinhos e nos que rodeavam os templos. A princípio não
se viam, mas de repente a folhagem parecia desfazer-se, com um grande barulho
de asas, e um pombo descia perante mim. Eu deixava cair docemente, em frente
dele, um punhado de trigo. Eu sabia por experiência, que um movimento demasiado
brusco o faria voar, mas eles conheciam-me todos e não tinham medo, com a
condição de que as normas entre nós fossem respeitadas. Ir-se-ia também dar aos
homens que eu via ali algo para debicarem? Germânico disse-lhes algumas
palavras que eu não entendi, e cada um respondeu com um discurso interminável,
cheio de nomes próprios, que me eram totalmente desconhecidos. A língua grega
ainda não me era, de todo, compreensível, apesar de me ir habituando a ouvi-la
à minha ama, que era grega. Caio, esse, estava encantado». In Pierre Grimal, Memórias de
Agripina, Lyon Edições, Romances Históricos, 2000, ISBN 972-8461-51-8.
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