«(…)
Na história de Portugal e da monarquia portuguesa, as amantes foram
paulatinamente alcançando uma-posição social e um estatuto de contornos nem sempre bem definidos, quer no campo jurídico,
quer no domínio social, traduzido numa legislação dispersa pelas ordenações Afonsinas,
Manuelinas e Filipinas. Em todo o caso, o poder político esteve atento a este
fenómeno que proliferou por toda a arquitectura social portuguesa e europeia,
produzindo um vasto elenco de regras e de proibições dirigidas a prostitutas,
escravas e barregãs. Contudo, como tantas vezes sucedia, era grande a distância
e a eficácia de um corpus
normativo e as práticas quotidianas. Isto é, a legislação impunha e o que o
Homem dispunha. Daí que abundem os relatos de amancebamentos entre os grupos
sociais terciários ou em ascensão social. Mas quando se passa para o plano dos
reis e rainhas, a matéria apresenta contingências e especificidades
tradicionais e seculares. O casamento régio é um assunto de Estado, já que cria
alianças, assegura o funcionamento da dinastia e constitui, com o seu
necessário corolário que é a família, a célula de base de toda a autoridade.
Aliança,
troca, paz, o casamento régio, inserem-se, de igual modo, numa perspectiva
antropológica, religiosa e jurídica que integra a rainha e exclui a amante. O
papel da consorte régia sai claramente reforçado a partir do momento que a sua
prole aumenta e, muito em concreto, se se tratar de um primogénito. Mas a disputa
pelo afecto régio não cessa. De facto, as amantes, suas rivais, pretendiam
conquistar a atenção do rei, aspirando a uma ascensão social digna para si e
para a sua família, o que muitas conseguiram pela amizade, pelos laços de
sangue ou de consanguinidade. Porém, nem todas o alcançaram. Na verdade, procurando
o favor régio, tudo faziam para se tornarem mães dos filhos ilegítimos dos
monarcas. E, na verdade, algumas vieram a ser mães de futuros monarcas. Tal é o
caso de João I, bastardo de Pedro I. Esta é a história de um reino em que os
filhos bastardos dos reis com as suas amantes desempenharam um papel significativo,
por vezes mesmo crucial. Note-se o caso de Afonso (o Barcelos, jdact), filho natural
do mestre de Avis e futuro João I, que dará início à família dos Bragança,
dinastia que, em 1640, chega ao
poder em substituição dos Filipes. Mas muitos outros bastardos alcançarão um peso
relevante na História de Portugal.
E
é, pois, neste contexto que interessa trazer à luz as amantes dos reis
portugueses. Damas do séquito da rainha, senhoras da corte ou mulheres do povo. Certo é que terão
existido muitas mais do que aquelas que aqui falamos. Amantes, favoritas,
barregãs, amigas, são alguns dos termos que serviram para chamar a mulher cuja
companhia o rei escolhia, normalmente, por uma questão afectiva, amorosa ou
apenas por prazer. De facto, se a rainha encarnava a ordem e a legitimidade, a
amante era o símbolo de prazer, dos sentimentos e dos afectos. Falamos de
histórias de reis que amaram e que sofreram por amor. Paixões que, por vezes,
mudaram o curso do reino e que, como tal, deixaram marcas na História de
Portugal. Justa razão para trazer à luz do registo histórico estas mulheres que
pela alcova real passaram. Umas com maior importância social, outras com menor,
mas cumprindo, todas, a sua missão na arquitectura social monárquica:
complementar a função da rainha, papel de Estado, símbolo do reino, da linhagem
e da Casa Real, com a só na aparência fácil, mas deveras ardilosa , tarefa de
proporcionar ao rei momentos de deleite mais ou menos fugazes ou de duração
mais prolongada. O perigo e o risco estavam-lhes associados, pois a descoberta
de um caso de amor, em especial entre membros da alta aristocracia, podia
questionar a esfera de poderes e de influência social dessa casa aristocrática.
Note-se o exemplo, bem conhecido, da Casa dos Távora no reinado de José I.
Reis,
príncipes e infantes nunca deixaram de procurar o relacionamento fácil. Para as
mulheres que por seu turno pretendiam alguma distinção social para si ou a sua
prole, o leito era o passo obrigatório para a conquista do poder. O que não
excluiu membros das principais casas senhoriais que, sobretudo, após a chegada
dos Bragança ao poder tendem a estabilizar a elite política setecentista. Entre
a tutela soberana da rainha e um lugar ainda que fugaz na vida amorosa de cada
um dos reis de Portugal, para as amantes restou-lhes o poder possível de um
leito e de um poder obscuro, quase tão obscuro como o registo documental que
delas ficou. E que a breve trecho este livro, num primeiro ensaio temático
sobre a matéria, constata plenamente. Muitas foram as amantes régias, mas muito
menos foram os documentos que sobreviveram a estes amores. Tal como no
confessionário, os deleites do amor não tinham escrita diária ou ocasional.
Ficaram apenas relatos históricos, mais ou menos desenvolvidos, de encontros
amorosos que se encurtaram ou prolongaram no tempo. Mas nem por isso deixaram
de permitir a elaboração deste primeiro texto, que cumpre ao leitor ajuizar e
deleitar num domínio científico até hoje subalternizado entre nós. Subalternização
mais vasta e que se alarga ao estudo das mulheres,
campo também ele em larga renovação historiográfica por toda a Europa e pelos
Estados Unidos». In Paula Lourenço (coord), Ana Cristina Pereira, Joana Troni, Amantes
dos Reis de Portugal, 2008, Esfera dos Livros, Lisboa, 2011, ISBN
978-989-626-136-8.
Cortesia
ELivros/JDACT