De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) Mas apreendeste as regras e
ficaste à espera do dia em que tu e a tua irmã iriam fazê-lo sozinhos. Boa Javier!
Sozinho, mas fizeste-o. És o orgulho de uma família que, lá de cima, olha para
ti. Seria mais fácil, para tu perceberes a convulsão reinante, se a Raquel começasse
por te contar a história assim: os
empreiteiros cristãos constroem casas para os judeus, os artífices judeus
trabalham para patrões cristãos, advogados judeus representam clientes cristãos
nos tribunais seculares, correctores judeus agem como intermediários entre
elementos cristãos e mouros, ou seja, existem contactos diários e contínuos que
promovem tolerância religiosa e relação de amizade. Mas infelizmente tudo
isso é tão remoto que ela será obrigada a dizer: bem-vindo ao mundo sombrio, à grande escalada dos conversos e aos azangos
do nosso povo.
Primeiro o bum. E depois as labaredas. Num instante tudo passou a ser
estranho, uma voz fatigada constituía o único elemento familiar. Vem Javier, chega mais perto. Talvez não me
reconheças mas sou eu, a tua irmã Raquel. Não sinto as minhas pernas mas isso
não tem qualquer importância. Abraça-me porque tenho frio. Pega-me ao colo mas
não me leves daqui; não te vás embora porque tenho medo, medo de morrer
sozinha. Eu aqui estou a chorar mas é o local mais seguro onde podemos estar.
Não vês as minhas lágrimas porque elas se transformaram em sangue e é do meu
coração que jorram. Tu és um homem e valente, nunca terás medo! Sim Javier.
Aproxima-te e abraça a tua irmã Raquel. Nada de sussurros nem lamúrias. Já nada
mudará.
Psiu...
Não digas nada. Não precisas de sussurrar palavras lindas ao meu ouvido. Não
precisas de encher-me de esperanças vãs porque ambos sabemos que de nada
servirá. Conforta-me com o teu olhar paradoxalmente paterno e oferece-me os
teus sentidos auditivos e toda a tua atenção. Afaga-me, mas não me deixes
adormecer porque no sono embalar-me-ia eternamente e, com isso, perder-se-ia
algo de muito valioso. Escuta com atenção porque a frágil linha que passará a
guiar o teu destino terá pouco significado se não passares a ser detentor de certas
informações. Escuta com atenção porque essas informações vão fortalecer e
conduzir os teus dias.
É um esforço que vale a pena,
Raquel. Javier precisa perceber alguma coisa, no meio de tanto alvoroço. Ele
olha para ti perdido, mas prossegue porque, embora pouca, alguma coisa será
assimilada. É a única forma de suavizar tamanha injustiça. Raquel, tu representas
a última oportunidade de ele ouvir um protagonista. Vá, avança. É a história e
a identidade do teu irmão. Pouco importa o que farás com tudo o que irás ouvir,
o importante é que estas informações são tuas por direito. Aos nossos avós foram
contados os capítulos mais remotos, mas, como não podia deixar de ser, o tempo encarregou-se
de enriquecer o seu conteúdo. Hoje é tudo muito mais dramático. É uma cadeia! Cada
um de nós é obrigado a memorizar, de forma meticulosa, cada pedra, cada pedaço de
solo que suportaram os nossos passos. Terão de pisar, religiosamente, os mesmos
terrenos, de modo a garantir a nossa sobrevivência, dar continuidade à história
e assegurar a nossa presença, a presença dos seguidores da lei mosaica, nos
tempos vindouros.
Tens
toda a razão, Raquel. A diferença é grande em relação ao momento e à forma como
os teus pais fizeram a passagem do património histórico. Foi numa gruta, talvez
um pouco ansiosos, mas plenos de lucidez e, além disso, estavam reunidas todas as
condições para que nenhum detalhe escapasse, nem nas memórias do narrador, nem nas
insaciáveis curiosidades, angústias e perplexidades do ouvinte. Naquela altura,
Javier, dormias. A sonhar com os anjos, se calhar. Eras incapaz de perceber a corrente.
Mesmo agora, com apenas seis anos, não se pode esperar muito, mas o desabar dos
acontecimentos não deixa alternativas». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus
Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por
ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.
Cortesia
de Colibri/JDACT