«(…) Mais tarde, quando lhe revistaram os bolsos, descobri no montão de
objectos vulgares um pequeno frasco vazio de perfume barato que Melissa usava;
e trouxe-o para o apartamento, onde ficou sobre a pedra da chaminé durante
alguns meses, até ao dia em que Hamid, tomado de um acesso de arrumação, o
lançou para o lixo. Nunca falei nisso a Melissa; mas, muitas vezes, quando a
noite me encontrava só, enquanto ela dançava e era, talvez, obrigada a ir para
a cama com os seus admiradores, punha-me a observar esse pequenino frasco, que parecia
condenar triste e apaixonadamente o amor desse velho e compará-lo com o meu; o
testemunhar, também, por procuração, o desespero que leva uma pessoa a
agarrar-se a qualquer objecto insignificante, ainda todo impregnado da memória
daquela que traiu. Descobri Melissa perdida no sombrio litoral de Alexandria,
pobre avezinha exausta, quase afogada e com o sexo despedaçado...
Ruas que fogem das docas, por entre montões de casas desmanteladas e
apodrecidas, metendo-se umas pelas outras, voltando as costas umas às outras...
Balcões esteirados formigando ratos, e velhas cujo cabelo está cheio de crostas
de feridas. Paredes ébrias que cambaleiam para leste e oeste do seu verdadeiro centro
de gravidade. Cordões negros de moscas colando-se aos lábios e aos olhos das
crianças, e larvas de moscas, como pérolas húmidas, por todo o lado; o peso dos
cadáveres faz cair o papel mata-moscas nas portas dos cafés e das cantinas. Odor
dos berberes curtidos de suor, comparável ao cheiro de uma velha passadeira em
decomposição. E, depois, os pregões e os ruídos da rua: os gritos e o tilintar
do aguadeiro, batendo os pratos de metal para anunciar a sua passagem, e os
gritos inesperados que, uma vez por outra, dominam a algazarra, tais como os de
um pequeno animal de órgãos sensíveis que se estripa vivo. Feridas como
pântanos..., a incubação da miséria humana toma tais proporções que nos
confunde, transbordando e espalhando todos os sentimentos humanos numa vaga
única de desgosto e terror.
Gostaria de poder imitar a coragem de Justine atravessando estas ruas
para vir encontrar-se comigo no café onde a esperava: o El Bab. O pórtico com
um arco quebrado onde inocentemente nos sentávamos a conversar; mas a nossa
conversa escolhia um caminho repleto de insinuações que tomávamos por
presságios de uma pura e simples amizade. Sobre este chão de terra batida,
sentindo subir das profundezas da terra uma frescura sombria, só um desejo
predominava em nós, e era o de comunicar os pensamentos e experiências que
ultrapassam a gama das ideias que, ordinariamente, são o tema das conversas.
Ela falava como um homem e eu falava-lhe como se ela fosse um homem. Não
consigo recordar-me em substância do que tratávamos nessas conversas.
Apoiando-me sobre um cotovelo, bebendo arak,
sorrindo-lhe, eu respirava o perfume, quente como o próprio Estio, que se exalava
do seu vestido e do seu corpo, um perfume que se chamava, não percebo bem
porquê, Jamais de la vie.
São estes momentos que o
escritor possui, e não o amante, e que vivem para sempre. Podemos recordá-los
uma vez por outra, ou servirmo-nos deles para construir esta porção de vida que
é a obra literária. Podemos embriagá-los com palavras, mas o que não podemos é
destruí-los. Nesse mesmo contexto, encontro outro desses momentos, deitado ao
lado de uma mulher adormecida, num quarto arrendado à hora, perto da mesquita.
Na madrugada desse começo de Primavera, densa de orvalho, destacando-se no
silêncio que entorpece a cidade, antes do despertar das aves, ouvia a voz
monótona do muezim cego recitando o Ebed,
a voz flutuando como um cabelo na camada de ar fresco que assenta sobre as
palmeiras de Alexandria. Glorifico a perfeição
de Deus Eterno. (Isto era repetido três vezes, cada vez mais lentamente, num
registo agudo e muito puro.) A perfeição
de Deus, o Desejado, o Existente, o Único, o Supremo: a perfeição de Deus, o
Primeiro, o Único: a perfeição dele que não foi criado, a quem nada se assemelha,
que não tem semelhante nem descendência. Glorifiquemos e celebremos a Sua
perfeição. A maravilhosa oração abre caminho como uma serpente através da minha
consciência adormecida, os anéis de palavras lucilantes penetram em mim, a voz do
muezim baixando gradualmente para registos mais graves, até que a aurora emerge
cheia do seu maravilhoso poder de sarar, sinal de uma graça imerecida e
inesperada, impregnando o pobre quarto onde Melissa dorme, respirando Com uma leveza
de gaivota, embalada pelos esplendores oceânicos de uma língua que ela jamais conhecerá.
Quem pode pretender que Justine não tinha o seu lado estúpido? O culto do
prazer, as pequenas vaidadezinhas, a preocupação pelo que podiam pensar dela as
gentes provincianas, a arrogância. Quando queria, era também capaz de ser de
uma exigência titânica. Sim. Sim. Mas é o dinheiro que faz crescer todas estas ervas
daninhas. Direi somente que em muitos casos ela pensava como um homem, e nos seus
actos saboreava uma certa independência vertical com o adoptar um comportamento
masculino. A nossa intimidade era de uma ordem psíquica muito estranha. Cedo
descobri que ela podia ler os meus pensamentos com grande segurança. As ideias chegavam-nos
simultaneamente. Lembro-me de ter tido consciência de uma vez em que ela
pensava exactamente no mesmo que eu, e pelos mesmos termos: Esta intimidade não deve prolongar-se porque já esgotámos
todas as possibilidades das nossas respectivas imaginações; o que acabaremos por
descobrir, para além das cores sombrias da sensualidade, será uma amizade tão
profunda que nos tornará escravos um do outro, para toda a vida». In
Lawrence Durrell, Justine (Quarteto de Alexandria), Editora Ulisseia, Lisboa,
2007, ISBN 978-972-568-496-2.
Cortesia de Ulisseia/JDACT