«O bronze agitou-se no alto dos
campanários e um som triste ecoou por Tordesilhas naquele dia 12 de Abril
de 1555. Era Sexta-Feira Santa, dia lúgubre,
em que se recordava a paixão e morte de Jesus Cristo, mas o repique fora de horas
assinalava um outro falecimento. A rainha Joana, senhora das coroas de Castela e
de Aragão, mais suas dependências ultramarinas, partira deste mundo aos setenta
e seis anos de idade. Morrera a rainha
louca. Mulher arrebatada e apaixonada, nunca aceitara bem as regras da sociedade,
ou não fora capaz de se encaixar nelas. Seu modo ingénuo e caprichoso de viver a
vida apaixonadamente e suas inseguranças haviam convencido os súbditos de que era
incapaz de governar sozinha, apesar de a roda da fortuna a ter tornado na herdeira
dos Reis Católicos.
Joana fora tida como incapaz para
governar, mas não era uma louca inofensiva. Ela encarnava um poder imenso, que
Filipe, o seu marido, tentara tomar para si, ao assumir a coroa castelhana no Verão
do longínquo ano de 1506; mas Filipe
morrera inesperadamente, três meses depois de desembarcar na Corunha e Joana fora
incapaz de tomar as rédeas do poder. A sua instabilidade emocional fora aproveitada
por seu pai, Fernando, rei de Aragão, que assumiu então a regência de Castela e,
habilidosamente, enclausurou a filha em Tordesilhas, no ano de 1509. A morte de Fernando, em 1516, coincidira com a chegada à idade adulta
de Carlos, o filho mais velho de Joana, e este viera da sua Flandres até à
Península, não para assumir o governo dos reinos em nome de sua mãe, como
príncipe regente, mas para ser proclamado rei, E Joana continuou encerrada na fortaleza,
feita masmorra. Carlos viera com seus amigos flamengos e distribuiu por eles
títulos e riquezas, como o governo supremo Inquisição (maldita) ou o monopólio do
comércio de escravos e depois partiu.
Inquietos, os povos de Castela e de
Aragão haviam reagido contra os Flamengos e o usurpador, e os Comuneros entraram em Tordesilhas,
no dia 29 de Agosto de 1520, dispostos
a libertar a sua rainha Joana. Mas Joana, sempre só desde que enviuvara, fora incapaz
de assumir o governo, não quisera assinar um simples papel e talvez não tivesse
percebido que lhe estavam a oferecer a liberdade. A hesitação da rainha e o carácter demasiado popular
da revolta tinham levado a aristocracia castelhana a preferir a autoridade do flamengo,
e a realeza de Carlos fora salvaguardada na batalha
de Vilalar, a 21 de Abril de 1521. Carlos tornara-se, entretanto, no imperador da cristandade e quando
regressou à Hispânia, no ano de 1522,
consolidou definitivamente a sua autoridade sobre seus súbditos espanhóis e Joana,
a rainha legítima de Castela, permaneceu encerrada em Tordesilhas.
Podia ser louca, mas sua legitimidade
era indiscutível, pelo que lhe teria bastado um esposo a seu lado, ou mesmo um amante,
um amigo, um simples campeão que a apoiasse e que falasse por si, para que o
todo-poderoso Carlos V pudesse perder seus domínios ibéricos. Por isso, o imperador guardou
impiedosamente sua mãe na clausura de Tordesilhas, afastada de tentações e de contactos
não controlados e governou quase toda a sua vida com um título que não era seu.
Tomara-o para si aos dezasseis anos, mas só o herdou, de facto, aos cinquenta e
cinco, e pouco depois abdicou, entregando a Espanha e os Países Baixos a seu filho
Filipe, e o título imperial, com os domínios dos Habsburgos, a seu irmão Fernando».
In
João Paulo Oliveira Costa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012,
978-989-644-184-5.
Cortesia de CL/TDebates/JDACT