domingo, 31 de dezembro de 2017

No 31. Sonetos. Antero de Quental. «E a mim, a quem deu olhos para ver-te, sem poder mais... A mim o que me há dado? Voz que te cante e uma alma para amar-te!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Pôs-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
o que fada o poeta e o soldado
volveu a ti o olhar, de amor velado,
e disse-te: vai, filha, sê formosa!

E tu, descendo na onda harmoniosa,
pousaste neste solo angustiado,
estrela envolta num clarão sagrado,
do teu límpido olhar na luz radiosa...

Mas eu... Posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! O que é vedado,
anjo! Deu-te o Senhor um mundo à parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
sem poder mais... A mim o que me há dado?
Voz que te cante e uma alma para amar-te!»

«Porque descrês, mulher, do amor, da vida?
Porque esse Hermon transformas em Calvário?
Porque deixas que, aos poucos, do sudário
te aperte o seio a dobra humedecida?

Que visão te fugiu, que assim perdida
buscas em vão neste ermo solitário?
Que signo obscuro de cruel fadário
te faz trazer a fronte ao chão pendida?

Nenhum! Intacto o bem em si assiste:
Deus, em penhor, te deu a formosura:
bênçãos te manda o Céu em cada hora.

E descrês do viver?... E eu, pobre e triste,
que só no teu olhar leio a ventura,
se tu descrês, em que hei-de eu crer agora?»

«No Céu, se existe um céu para quem chora,
céu para as mágoas de quem sofre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
chama que brilha, mas que não devora...

No Céu, se uma alma nesse espaço mora,
que a prece escuta e enxuta o nosso pranto...
Se há pai, que estenda sobre nós o manto
do amor piedoso... Que eu não sinto agora...

No Céu, ó virgem! Findarão meus males:
hei-de lá renascer, eu que pareço
aqui ter só nascido para dores.

Ali, ó lírio dos celestes vales!
Tendo seu fim, terão o seu começo,
para não mais findar, nossos amores»

«Aquela que eu adoro não é feita
de lírios nem de rosas purpurinas,
não tem as formas lânguidas, divinas,
da antiga Vénus de cintura estreita...

Não é a Circe, cuja mão suspeita
compõe filtros mortais entre ruínas,
mem a Amazonas, que se agarra às crinas
dum corcel e combate satisfeita...

A mim mesmo pergunto, e não atino
com o nome que dê a essa visão,
que ora amostra ora esconde o meu destino...

É como uma miragem que entrevejo,
ideal, que nasceu na solidão,
nuvem, sonho impalpável do Desejo...»

Sonetos de Antero de Quental, in “Farol das Letras

JDACT

No 31. Isabel d’Aragão e Rainha Santa. Anonymous. «Essas homenagens concretizam-se no culto fervoroso de todos os portugueses pela Santa Rainha e, mui especialmente, do povo de Coimbra…»

Cortesia de wikipedia

De acordo com o original.

Morte da Rainha Santa
(…) A seguir recita com visivel comoção algumas orações; os olhos fecham-se lentamente, o peito deixa de arfar, e todos os presentes, estupefactos ante aquele quadro tão emocionante, compreendem que a alma pura da Rainha Santa, solta do seu venerável corpo, subia aos céus a receber o premio das suas virtudes, descançando para sempre na paz do Senhor, onde eternamente gosará a bemaventurança com que Deus premeia os seus eleitos. É, pois, no reino celestial que a nossa Santa Protectora está recebendo o premio das suas boas acções e dos seus constantes trabalhos. Ali, no seio de Deus, junto da Virgem Santissima, intercede pelo seu povo, por aqueles que a ela recorrem com a alma angustiada pelas dôres humanas, e que jamais esquecem o seu nome para lhe tributar as homenagens do seu reconhecimento. Essas homenagens concretizam-se no culto fervoroso de todos os portugueses pela Santa Rainha e, mui especialmente, do povo de Coimbra que por Ela nutre o maior respeito e a mais significativa devoção.

Trasladações
Logo que a Rainha Santa entregou a sua alma a Deus, o primeiro cuidado da côrte foi escolher local para depositar o corpo de tão excelsa Senhora, opinando uns para que fôsse sepultado no Convento dos Franciscanos, em Estremoz, e outros para que fosse trasladado para a Sé de Evora, a cidade mais proxima daquela terra. Por conselho de Elrei procurou-se o testamento de D. Isabel e vendo-se por ele que a Rainha Santa queria ser sepultada em Coimbra, na Igreja de Santa Clara, foi respeitada esta vontade, dandose logo ordens para se pôr em pratica o desejo ali expresso. Apezar das opiniões em contrario, prevaleceram as determinações de El-rei. O prestito funebre saiu de Estremoz na tarde do dia 5 de julho e, em marchas apressadas, chegou a Coimbra no dia 11 do mesmo mês, tendo atravessado tão longo percurso debaixo dum sol abrazador.
As inumeras pessoas que constituiam o prestito funebre foram tomadas de verdadeiro espanto quando, ao 3.º dia de viagem, notaram que o ataúde onde vinha o corpo de Santa Isabel principiava de abrir algumas fendas, escorrendo por entre elas um liquido que todos supozeram ser proveniente da decomposição do cadaver. Mas, feliz engano! Esse liquido, longe de exalar qualquer cheiro desagradavel, antes era ameno e consolador, espalhando no espaço um tal aroma que aqueles que a principio se sentiam inquietos e desconfiados, logo se aproximaram do ataúde, louvando o Senhor por esta manifestação da sua omnipotencia. Quando o cortejo chegou a Coimbra deram-se então scenas comovedoras e lancinantes entre a população citadina. Todos á porfia queriam beijar o ataúde onde vinha a sua Protectora, a sua desvelada Bemfeitora, ouvindo-se choros de verdadeiro compungimento pela morte da virtuosa Rainha, cujo passado tinha sido um manancial de graças e bondade!» In Anonymous, Isabel d’Aragão e Rainha Santa, 2011, ISO 8859-1, Project Gutenberg Ebook, produzido por Pedro Saborano, Coimbra, Gráfica Conimbricense, Lda, 1921.


Cortesia de PGutenberg/Gráfica Conimbricense/JDACT

No 31. Marquesa de Alorna. Maria João Lopo de Carvalho. «Tome! Fique com a Perpétua, vá! Que linda é!, gabou Maria. Gosta, Leonor? Muito! É janota e galante, parece-se comigo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Leonor. 1755-1770
«(…) Pelas nove da manhã desse fatídico sábado de Todos os Santos, dia 1 de Novembro de 1755, a pequena Leonor saltou da cama. Sem chamar pelas criadas, dirigiu-se em bicos dos pés ao toucador para admirar os presentes que recebera na véspera, pelos seus cinco anos. O carrossel de música do avô Alorna, com figurinhas que giravam, sincronizadas, numa melodia repetida; a boneca de madeira vestida a preceito, que lhe tinham dado os avós Távora; e o serviço de chá em miniatura, de fina porcelana, com rosas pintadas, que lhe oferecera a tia Atouguia. Era lindo, pensou, podia brincar com a Maria todo o dia, a começar já pelo almoço. Deu uma corrida até ao quarto da irmã, chamando por ela com gritos de entusiasmo e sacudindo-a com força para que acordasse. Mana, mana, venha brincar! A Perpétua está com fome, não vê? Venha, mana, venha! Habituada a obedecer prontamente ao que a irmã mais velha lhe ordenasse, Maria saiu da cama, estremunhada. Tinham apenas um ano de diferença mas, apesar do feitio forte de Leonor, que era sempre a mentora de todas as brincadeiras e fantasias, entendiam-se na perfeição. Maria, que ainda esfregava os olhos, ensonada, seguiu a irmã até ao quarto, sem contestar. Sentaram-se as duas no chão e Leonor estendeu-lhe a boneca de cara pintada e fita vermelha na cabeça.
Tome! Fique com a Perpétua, vá! Que linda é!, gabou Maria. Gosta, Leonor? Muito! É janota e galante, parece-se comigo. Segure a mana nela, vou servir o chá! Só quero leite!, disse Maria. Leonor, pensativa, acabou por consentir. Leite, seja…, e uns docinhos, continuou, com os olhos a brilharem de felicidade, fingindo servir o leite à irmã e os doces à boneca. Oxalá o Pedro não venha aqui estragar tudo… Ai estas meninas, estas meninas! Era Feliciana que entrava no quarto, abanando a cabeça, depois de uma noite bem-dormida. Se a senhora vossa mãe vos vê aqui, de camisa e descalças… O que vale é que está calor, parece um dia de Primavera, nem uma nuvem no céu!, comentou, espreitando pela janela. Brincar é no quarto dos brinquedos, ou as meninas não sabem? Como se sente hoje, menina Leonor? Sua mãe estava em cuidados, passou mal? Absorta no chá que fantasiava, Leonor nem respondeu mas a palidez e as olheiras escuras que a noite lhe deixara diziam muito. Vamos lá guardar a brincadeira para depois da missa. É hora do almoço! Menina Leonor, está a ouvir?
Perante o silêncio distraído de Leonor, Feliciana voltou-se para Maria: menina Maria! Sim, Feliciana?, respondeu a mais nova, erguendo os olhos para a criada. Vamos, venha daí, seja obediente. Não!, interrompeu Leonor. A Maria só vai no fim do chá. Acostumada à docilidade de Maria e à personalidade intempestiva de Leonor, Feliciana saiu do quarto. Tinha de ir, sem mais delongas, avisar a criada de dona Leonor de que as meninas ainda não estavam vestidas para a missa na Sé, ali a dois passos do Limoeiro. Embora pouco passasse das nove da manhã, já se ouviam os brados de João Almeida Portugal a chamar pelo estribeiro-mor e pelo cocheiro, enquanto descia a escadaria do palácio. Não gostava de chegar atrasado onde quer que fosse». In Maria Lopo de Carvalho, Marquesa de Alorna, Oficina do Livro, 2011, ISBN 978-989-555-554-3.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

sábado, 30 de dezembro de 2017

Marquesa de Alorna. Maria João Lopo de Carvalho. «Por um instante ficaram as duas caladas. Com efeito, pensou dona Leonor, o costume seria ouvir-se na noite o ladrar dos muitos cães que vadiavam por Lisboa»

Cortesia de wikipedia e jdact

Leonor. 1755-1770
«Feliciana, Feliciana!… Mãe! Senhora minha mãe! O grito estridente de Leonor rompeu o silêncio da noite, que logo voltou a cair denso e medonho, invadindo o quarto como um monstro tenebroso. Escondida debaixo dos pesados lençóis de linho, Leonor, apavorada, tornou a chamar, desta vez ainda mais alto. Feliciana, Feliciana!… Mãe! Senhora minha mãe! Foram instantes até que uns passos apressados fizessem ranger o soalho do corredor. Leonor recostou-se nas almofadas, de olhos fixos na porta, agarrando com força na boneca de madeira. A mãe vinha aí, conhecia-lhe o andar mas só quando a viu recortada no escuro suspirou de alívio. Leonor estranhou que a ama não tivesse ouvido a filha mais velha mas, como a pequena não parava de chamar, teve de se levantar e de sair dos seus aposentos em camisa. Entrou no quarto, afastou as cortinas do leito, pousou a palmatória de prata com a vela acesa na mesa-de-cabeceira e sentou-se na borda da cama. Trazia o cabelo arrumado numa touca bordada e um sorriso doce, que a criança sentiu pousar-lhe primeiro ao de leve na pele e depois no coração. Então, Leonorzita, são cinco da manhã, o que te inquieta, minha filha?
O silêncio, respondeu Leonor, erguendo-se de repente e agarrando-se à cintura da mãe, num abraço desamparado. O silêncio, filha? Mas querias tu que houvesse ruído no palácio, a esta hora? Leonor desprendeu-se dos braços da mãe, pulou descalça para o chão e correu a abrir as janelas de par em par. A noite estava límpida, de uma imensa serenidade, e uma brisa leve de nordeste entrou pelo quarto. O céu, minha mãe, as estrelas, de que meu pai me ensina os nomes, fugiram todas! Passou por aqui uma só… e tinha asas. Era uma estrela com asas e não deixou senão uma cauda, como se fosse o manto de Sua Alteza! Que disparate, filha! Dona Leonor fechou as janelas. Anda, anda deitar-te, Leonorzita, eu fico aqui contigo mas diz-me o que te assusta, meu anjo! O céu, senhora minha mãe, passou aqui por cima uma estrela com asas, que eu vi…
Dona Leonor voltou a deitá-la, cobriu-a com os lençóis, ajeitou-lhe as almofadas e sorriu com ternura. A imaginação da filha era, de facto, delirante. Na véspera, dia em que completara cinco anos, regressa de Colares extremamente inquieta: o chafariz da vila secara, e o que apenas causara estranheza aos adultos bastou para lhe atiçar a curiosidade. Na carruagem de regresso a Lisboa, não parou de perguntar por que razão não dera água a fonte e, como ninguém lhe soubera responder, ficou a fantasiar mil enredos. No fim da ceia, nem a caixinha de música que o avô Alorna lhe dera pelos anos nem a paciência da Feliciana a tinham conseguido acalmar. Fora difícil fazê-la adormecer. E agora aqueles gritos às cinco da madrugada, primeiro, com medo do silêncio, depois, debruçada na janela a adivinhar no céu o manto de uma estrela ausente. Era sem dúvida uma criança precoce, sabia de cor a história sagrada e a história profana, as parábolas da Bíblia e os deuses da mitologia pagã. Leonor parecia bem diferente da irmã, Maria, que no quarto ao lado dormia o sono dos justos, e do pequeno Pedro, que acabara de fazer um ano. Mãe! Pode ficar aqui, minha mãe? Tenho medo do silêncio. Calma, Leonorzita, já passou! Chiu! Não se ouve o ladrar dos cães, pois não, minha mãe? Para onde terão ido?
Por um instante ficaram as duas caladas. Com efeito, pensou dona Leonor, o costume seria ouvir-se na noite o ladrar dos muitos cães que vadiavam por Lisboa. Dizia-se que eram mais de oitenta mil. Leonorzita tinha razão, não se ouvia um único latir, um único som que fosse. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Tentando não dar importância ao estranho silêncio de que a filha falava, dona Leonor endireitou-lhe os folhos e os punhos de renda da camisa e passou-lhe a mão ao de leve pelos cabelos encaracolados que lhe emolduravam o rosto perfeito, de olhos vivos, curiosos, brilhantes. Dorme, Leonor, os cães também já dormem, como a Maria e o mano. Depois, continuando a acariciar suavemente o cabelo da filha, pôs-se a entoar uma cantiga de embalar, enquanto pedia a Deus que a sua Leonor se tornasse uma mulher forte, corajosa e saudável, uma mulher da sua estirpe, com a alma e a determinação Távora, a quarta Leonor Távora em linha directa. Assim que a pequena adormeceu, encostou as madeiras da janela e saiu do quarto, pé ante pé, deixando apenas uma fresta na porta. Já nos seus aposentos, tornou a deitar-se. Com os olhos presos nas pinturas do tecto, soprou a vela, e o quarto pareceu-lhe subitamente envolto em escuridão e desassossego. Não conseguiu adormecer». In Maria Lopo de Carvalho, Marquesa de Alorna, Oficina do Livro, 2011, ISBN 978-989-555-554-3.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

O Pirata do Rei na Terra do Sol. Clóvis Bulcão. «A Quitanda dos Negros de São Sebastião, nos dias nublados, era frequentada por todo o tipo de gente, ou seja, homens, mulheres, crianças…»

jdact

Setembro de 1711. Na Quitanda dos Negros
«Aos sábados, o movimento na Quitanda dos Negros era mais intenso. Nos dias de chuva, muitos, quase todos evitavam as ruas imundas tomadas de poças, lama e todo o tipo de porcarias. Preferiam ficar em casa a reclamar ao tempo. Já quando o Sol brilhava forte, procuravam refúgio nas áreas mais frescas e aproveitavam para também reclamar do calor. Os dias nublados eram saudados com algum entusiasmo. Os sábados sem Sol faziam a felicidade dos comerciantes da Quitanda e dos seus frequentadores. O local era tomado por uma multidão de compradores ávidos por produtos frescos e, sobretudo, pela possibilidade de encontrar amigos, conhecidos ou qualquer pessoa para alvissarar. A vida dos moradores de São Sebastião, vilarejo insignificante da margem ocidental da baía da Guanabara, era pautada pelos humores do tempo.
A Quitanda dos Negros de São Sebastião, nos dias nublados, era frequentada por todo o tipo de gente, ou seja, homens, mulheres, crianças, ricos, pobres, brancos, mulatos, índios, estrangeiros, viajantes, padres, funcionários públicos, desocupados e até negros. Em toda a cidade não existia outro local onde houvesse tamanha mistura social. Nem nas missas de domingo havia tal harmonia. Gente que ia comprar, passear, comer, ter conversas desafogadas, deitar o olho a alguma moça, facturar algum ou apenas vadiar. Aos sábados convergiam para a Quitanda os produtores de alimentos do entorno da baía. De todos os lados os barcos aportavam na praia do monarca Manuel, trazendo o que todos desejavam, produtos fresquinhos. A vida na Quitanda obedecia a um ritual óbvio. Os primeiros a chegar, ainda de madrugada, eram os pescadores. Em grandes tabuleiros de madeira cortavam e limpavam os seus produtos: sardinhas, camarões, lulas, badejos, garoupas, robalos e tainhas. A seguir, desembarcavam os vendedores de frutas, com os seus produtos do fundo da baía, laranjas, mangas, limões, abacaxis e bananas. Depois chegavam os verdureiros com enormes couves, tenras alfaces, molhos de brócolos, mandiocas frescas, morangas maduras. Fechando o ciclo, entravam os vendedores de comida que fritavam postas de peixe, sardinhas, espetos de camarões, pastéis de siri, coziam milho e ainda serviam caldo de cana e diversas jeropigas. A fumaça da fritura marcava o auge do movimento.
Ao fim do dia, a Quitanda ficava tomada por um odor que reflectia bem o comportamento dos frequentadores. O enorme descampado que margeava as águas da baía transformava-se numa enorme lixeira. O sucesso económico podia ser medido pelo mau cheiro, e pela sujeira. Nos últimos tempos esse enorme mercado a céu aberto vivia um período atípico de prosperidade, e nunca antes o ar de São Sebastião fora tão fétido. Desde a descoberta de ouro na região das Gerais, o movimento ficara mais intenso. São Sebastião virara da noite para o dia um ponto de passagem do metal. Quanto mais mineiros usavam a cidade como porta de entrada para a região mineradora, mais ouro circulava no seu comércio.
Centenas de pessoas vindas de Portugal, de outras colónias e de muitas partes do Novo Mundo abasteciam-se antes de tomar o caminho da melhor esperança. Ninguém se aventurava em tão difícil sertão sem estar bem fornecido. Compravam os instrumentos de trabalho e os produtos fundamentais para a sobrevivência: farinha de mandioca, carne seca e sal, muito sal. A demanda pelo produto era cada vez maior. Produzido de forma ineficiente, pois era monopólio da Coroa, o sal legal era tão escasso quanto caro. Era comum não haver um único cristalzinho do produto nos armazéns reais. Sendo assim, as necessidades da sociedade acabaram por falar mais alto. De imediato, o negócio foi sendo dominado por alguns produtores clandestinos. Fabricavam na região dos lagos, uma localidade a norte da Guanabara. Aproveitavam o lugar ser de difícil acesso, obstando a presença dos interesses de El Rei. Uma cadeia produtiva foi-se organizando à margem da lei. Ora, teoricamente, a lei condenava essa quebra dos monopólios da Coroa e as pessoas, os traficantes, com duras penas». In Clóvis Bulcão, O Pirata do Rei na Terra do Sol, Saída de Emergência, 2015, ISBN 978-989-637-711-3.

Cortesia de Sde Emergência/JDACT

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Isabel d’Aragão e Rainha Santa. Anonymous. «Logo que a sua chegada é conhecida no acampamento de Afonso IV, imediatamente se suspendem as hostilidades…»

Cortesia de wikipedia

De acordo com o original.

Actos de Caridade
«(…) Se durante a vida de El-rei D. Dinís a acção da Rainha Santa foi um constante manancial de actos virtuosos, a partir do momento da sua viuvês, a sua acção tornou-se verdadeiramente exemplar. O numero de factos que desde então assinalam tão gloriosa existencia na terra, mais e mais fazem arreigar na alma do povo a convicção dos designios de Deus por Ela tão santamente interpretados. Sem todavia esquecer os deveres de Rainha, que lhe absorviam uma grande parte dos seus cuidados, e não poucas vezes foram motivo de profundos desgostos, D. Isabel de Aragão cinge livremente o hábito de freira Clarista e volvendo os olhos piedosos para um mais largo horisonte, consagra-se completamente a obras de caridade, fundando e auxiliando hospicios e asilos, nos quais se albergam, sob a sua protecção, muitas infelizes que se regeneraram pelos seus conselhos e alcançaram na terra a felicidade que só sabem gosar as almas puras e simples. Querendo encaminhar-se pela estrada luminosa que da terra se eleva até Deus, um dos seus primeiros cuidados, ao ver-se cingida pela roupagem da viuvês, foi trocar os faustos das glorias terrenas pela humildade da clausura a que, como já dissemos, livremente se sujeitou.
Junto dos seus Paços riais corriam vagarosamente as obras para a fundação do Convento de Santa Clara, obras que prometiam eternizar-se por demandas entre os frades Cruzios e D. Maior Dias, fundadora daquele convento, e que certamente ficariam incompletas se não fosse o auxilio e protecção que a Rainha Santa dispensou para a sua rápida conclusão. Uma vez concluido, cuidou logo a Rainha Santa em fundar junto deste convento um asilo para órfãos e para a pobresa envergonhada, chamando para junto de si algumas amas de leite com o encargo de alimentarem as crianças desvalidas! A maior parte do seu tempo tinha-o a Rainha Santa distribuido por forma a satisfazer os seus deveres de Rainha e cristã; o restante empregava-o no ministerio da caridade visitando os asilados, a quem não só consolava com a sua palavra, mas muitas vezes servia de carinhosa enfermeira curando as chagas que lhes corroiam o corpo.
Nesta e em muitas outras obras de verdadeira abnegação dispendia a Rainha Santa quasi toda a sua fortuna. Com o auxilio de Deus, a quem firmemente procurava engrandecer com os merecimentos das suas preciosas virtudes, nunca a Rainha Santa lutou com dificuldades para se desempenhar da sua nobre missão. Os proventos de que dispunha parece que tinham o condão de se multiplicar e, se algumas vezes houve em que o seu socorro tinha de fazer face a maiores calamidades, então eram as Rosas que, adquirindo a forma de oiro reluzente, premiavam os seus actos de caridade e satisfaziam os encargos adquiridos para garantir o pão aos famintos! Da sua vida, tão brilhantemente documentada na preciosa obra de S. Ex.ª o sr. Dr. Antonio Garcia Ribeiro Vasconcelos, erudito professor da Universidade de Coimbra, constam muitos e importantes factos da vida gloriosa da Rainha Santa, traduzidos todos eles nos mais altos beneficios em favor dos desprotegidos.

Morte da Rainha Santa
Em Junho de 1336 teve a Rainha Santa conhecimento de que seu filho D. Afonso IV e seu neto D. Afonso XI, rei de Castela, se haviam indisposto por motivo de graves acontecimentos, tendo-se declarado a guerra entre aqueles dois poderosos monarcas. Quando a Rainha Santa soube de tal resolução imediatamente se resolveu a partir para Estremoz, lugar onde a esse tempo estava seu filho acompanhado de toda a Côrte. Êste propósito foi prudentemente combatido pelos medicos da Rainha Santa, os quais, temendo mais o excesso do calor e a fadiga dessa longa viagem do que a idade da virtuosa Senhora, se apressaram a demovê-la dessa resolução. Inuteis rogos e infrutiferas tentativas! A Rainha Santa, despresando esses bons conselhos e animada sómente em restabelecer a paz entre os reis desavindos, filho e neto, parte apressadamente de Coimbra, caminhando sob um sol abrasador, e chega finalmente junto das fortalezas de Estremoz, abatida e fatigada, mas cheia de animo para cumprir a sua carinhosa missão. Logo que a sua chegada é conhecida no acampamento de D. Afonso IV, imediatamente se suspendem as hostilidades e todos se abeiram do leito da Rainha Santa para lhe prodigalizarem os cuidados que a sua melindrosa saude exigia.
Baldados esforços porque o mal agravava-se de momento para momento. Uma pústula que rapidamente lhe apareceu num braço tornou mais melindroso o seu estado e, no dia 4 de Julho, manhã cedo, a Rainha Santa declarou que queria receber os últimos Sacramentos. Na tarde desse mesmo dia as forças principiaram a faltar-lhe, a Rainha Santa vê que é chegada a sua ultima hora, e erguendo o pensamento até ao Ceu, encarrega a Mãe de Deus de lhe receber a alma, pronunciando com toda a suavidade estes versos do hino eclesiastico:

Mãe de graças e Misericordia
Maria piedosa e forte:
Livra a minha alma, recebe-a
Na hora da minha morte».
In Anonymous, Isabel d’Aragão e Rainha Santa, 2011, ISO 8859-1, Project Gutenberg Ebook, produzido por Pedro Saborano, Coimbra, Gráfica Conimbricense, Lda, 1921.

Cortesia de PGutenberg/Gráfica Conimbricense/JDACT

Isabel d’Aragão e Rainha Santa. Anonymous. «De Espanha até Coimbra foi a excelsa Rainha delirantemente aclamada por todo o povo que acorria á sua passagem»

Cortesia de wikipedia

De acordo com o original.

«Muito se tem escrito ácerca da vida da excelsa e virtuosissima D. Isabel d'Aragão, Esposa d'el-rei D. Dinís; mas impunha-se ha muito a publicação dum folheto, como este, que sendo conciso na sua descrição não deixasse de relatar os factos que mais  distinguiram Aquela que a cidade de Coimbra escolheu para sua Augusta Padroeira e Protectora. O que o autor deste folheto teve em vista foi facultar aos fieis, com grande economia de preço, um livrinho de leitura facil e corrente, ao alcance de todos, onde a historia sagrada da Rainha Santa possa deixar bem arreigada no espirito dos crentes a obra sublime, verdadeiramente maravilhosa, que lhe concedeu logar na côrte celestial. As notas que colhemos foram, principalmente, extraídas do monumental trabalho de investigação historica do Ex.o Sr. Dr. Antonio Garcia Ribeiro Vasconcelos, na sua tão apreciada obra D. Isabel d' Aragão. A fama de santidade da Rainha Santa Isabel estende-se por todo Portugal e por muitas terras de Hespanha. Em Coimbra, porém, é tão grande que em parte alguma do nosso país se realizam festas tão pomposas em honra dum santo, como nesta cidade, onde concorrem para mais de 50:000 pessoas por essa ocasião. É nos momentos de luta pela adversidade da vida que os conimbricenses, principalmente, recorrem á protecção da Rainha Santa na sua fervorosa suplica, e se nem sempre logram alcançar a satisfação das suas preces, é já poderoso linitivo para a sua dôr a lembrança de que Ela nunca desamparou os infelizes com a sua divina graça. Isabel d'Aragão tendo sido um grande exemplo de virtudes, deu tambem uma prova bem frisante do seu amor a Coimbra, determinando em seu testamento que o seu corpo sagrado repousasse no mosteiro de Santa Clara desta cidade, onde Ela esteve clausurada e donde foi trasladado o seu corpo para o novo mosteiro do mesmo nome. É, pois, pouco quanto façam os conimbricenses em honra da memoria sagrada da Sua excelsa Padroeira.

Nascimento da Rainha Santa. Da côrte de Aragão ao Trono de Portugal
A Rainha Santa Isabel, que Coimbra se ufana de ter como desvelada Protectora e valiosa Padroeira, nasceu na cidade de Saragoça (Espanha), no ano de 1271. Filha do Principe real D. Pedro de Aragão e de sua esposa D. Constança, o seu nascimento foi desde logo iluminado pela graça divina, pois que seu avô, El-rei D. Jaime, que até aí vivia em grande discordia com D. Pedro de Aragão, imediatamente se congraçou com este, passando ambos a viver na mais doce harmonia. Assim demonstrou Deus aos homens que esta menina estava reservada a ser na terra a medianeira da paz, o Anjo predestinado a estabelecer a harmonia e a concordia entre os desavindos, facto que mais tarde, quando Rainha de Portugal, se verificou nas diversas desavenças entre seu esposo El-rei D. Dinís e seu filho D. Afonso IV.
A Rainha Santa Isabel foi, como já dissemos, aureolada desde o seu nascimento pela graça do Senhor. As suas preciosas virtudes bem cedo se revelaram, crescendo nela com a idade a fama que tanto a impôs á consideração de todas as côrtes da Europa, facto que despertou em bastantes principes o desejo de possuirem como esposa tão excelsa senhora. Foi á côrte de Portugal, felizmente, que coube a suprema ventura de ser a preferida entre todas as outras, merecendo El-rei D. Dinís a gloria de ter como consorte um tesouro de tantas virtudes e de tão preciosos encantos.
O casamento de D. Dinís com D. Isabel celebrou-se por procuração na antiga cidade de Barcelona, tendo lugar este acto no dia 11 de Fevereiro de 1282 e contando a futura Rainha de Portugal apenas 11 anos de idade. Êste auspicioso enlace constituiu um motivo de grande regosijo para todos os portugueses, antevendo estes os enormes beneficios deste casamento, o qual foi muito festejado e aclamado em todo o país com demonstrações de grande alegria e verdadeira satisfação. A saída de D. Isabel para Portugal causou a seus pais grandes tristesas, custando-lhes imenso essa separação pelas profundas saudades que D. Isabel deixava em todos os corações que muito a estremeciam.
De Espanha até Coimbra foi a excelsa Rainha delirantemente aclamada por todo o povo que acorria á sua passagem, salientando-se mais essas carinhosas manifestações na antiga vila de Trancoso, onde, no dia 24 de Junho de 1282, no templo de S. Bartolomeu, se celebraram com toda a pompa as bençãos nupciais. Em Coimbra, onde a esse tempo residia a côrte juntamente com a principal nobresa do reino, as manifestações de contentamento e alegria pela chegada dos régios nubentes, atingiram o mais delirante entusiasmo, conquistando logo a Rainha D. Isabel a simpatia e o amor dum povo que, mais tarde, havia de herdar o seu mais precioso tesouro, o sagrado corpo que todos hoje veneramos, e que esta cidade conserva com a mais desvelada e respeitosa devoção. As manifestações de regosijo com que a cidade recebeu os régios consortes foram, pois, verdadeiramente grandiosas, vestindo a cidade as suas melhores galas para bem lhes significar o contentamento de que se achava possuida por motivo daquele enlace, cujos efeitos tanto se evidenciaram na vida da nação portuguesa, e de que Coimbra comparticipou em larga escala pelos benéficos actos de caridade que a Santa Rainha espalhou por toda a parte.
Foi nesta cidade, principalmente, que D. Isabel de Aragão manifestou mais claramente a pureza da sua alma. Os actos de caridade que praticou, os socorros por ela prestados á indigencia, aos órfãos, ás viúvas e ás donzelas abandonadas, foram os primeiros lavores que lhe teceram a sua coroa de gloria; a fundação de asilos, de albergues e de hospitais, que a sua magnificencia sustentou e onde se recolhia uma legião de infelizes, originou, sem duvida, a fama de santidade que bem cedo a distinguiu e que, mais tarde, a 25 de Maio de 1625, dia da Santíssima Trindade, a Igreja confirmou, englobando-a no numero dos eleitos do Senhor». In Anonymous, Isabel d’Aragão e Rainha Santa, 2011, ISO 8859-1, Project Gutenberg Ebook, produzido por Pedro Saborano, Coimbra, Gráfica Conimbricense, Lda, 1921.


Cortesia de PGutenberg/Gráfica Conimbricense/JDACT

A Princesa Guerreira. Barbara Erskine. «Quero alguma paz para pintar. Talvez para repensar o meu estilo de vida. Estou a ponderar uma mudança de carreira. Queria ver se consigo aguentar-me como pintora»

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«(…) Steph olhou, inquieta, por cima do ombro, para a porta que comunicava com o estúdio. Quando Kim a convidara pela primeira vez, ela tinha hesitado. Roma, no Verão, seria insuportavelmente quente e barulhenta. Kinr, viúva após menos de dez anos de casamento com o seu encantador, demasiado-bom-para-ser-verdade, extremoso homem mais velho, e inchada no seu estupendo apartamento no interior de um palazzo, nada mais, nada menos, com a considerável fortuna do falecido toda para si, simplesmente não podia sentir-se tão desolada quanto dava a entender. Por outro lado, talvez se sentisse, ou talvez Steph não conseguisse ignorar o irresistível charme de Roma. Afinal, que tinha ela a perder? No máximo, uma semana e pouco de dedicação às suas peças de olaria. Menos do que isso, se viesse a verificar-se que ela e Kim já não se davam tão bem como dantes, na altura em que todos frequentavam a mesma universidade. Meia hora depois, Steph já tinha ligado o computador, reservado o voo e estava a revolver o armário à procura da sua mala de viagem.
Jess sorriu, com melancolia, enquanto a voz da irmã falava ininterruptamente, até fazer, por fim, uma pausa. Jess? Estás aí? Não ficas feliz por mim? Tu sabias que Kim e eu nos tínhamos mantido em contacto, não sabias? Já se ouvia, essa entoação galesa, na voz de Steph. Isso é fantástico, Steph. Só que... Jess fez uma careta. Eu ia perguntar-te se podia ir a Ty Bran passar uma parte do Verão. Estou farta de Londres e um pouco desesperada por fazer uma pausa. Quero ir para um lugar onde ninguém me encontre. Quero alguma paz para pintar. Talvez para repensar o meu estilo de vida. Estou a ponderar uma mudança de carreira. Queria ver se consigo aguentar-me como pintora. Não valia a pena contar-lhe a verdadeira razão, estragar o dia a Steph; não valia a pena fazê-la sentir-se na obrigação de cancelar as suas férias.
Mas é formidável! O entusiasmo de Steph toldara-lhe a leitura, geralmente perspicaz, dos estados de espírito da irmã. Vem, és muito bem-vinda. Na verdade, fico contente por ter alguém a tomar conta da casa. As minhas plantas de vaso precisam de ser regadas. Se vieres, é perfeito! Terás a paz que procuras para pintar e meditar tudo o que quiseres! Pousando o auscultador, Jess deixou-se ficar um momento sentada, de olhos fixos na janela. Estaria a agir bem? Permitindo que alguém a afastasse do trabalho de que gostava, do apartamento que adorava, da cidade que, aos poucos, a fora seduzindo. Permitindo a esse alguém pensar que escapara àquilo impune. Escapara impune. Não haveria polícia. Nem identificação. Não haveria a mais pequena repercussão. Quando a luz do Sol rompeu pela janela e incidiu no tapete com motivos verde-claros, iluminando ao pormenor cada figura de linhas cruzadas que compunha o padrão, Jess ouviu a porta da rua abrir-se com estrondo e passos nas escadas. Susteve a respiração. Devagar, os passos aproximaram-se, tornaram-se mais firmes, mais ruidosos, mais masculinos. Engoliu em seco, o suor despontando-lhe entre as omoplatas. Teria fechado a porta do apartamento? Claro que sim. Isso convertera-se mesmo numa obsessão. Permaneceu sentada, incapaz de mover-se, os olhos pregados na maçaneta da porta, a ouvir o som que agora enchia o apartamento. Os passos alcançaram o patamar, lá fora, e ela ouviu-os parar. Por momentos, o silêncio instalou-se, absoluto. Depois, lentamente, os passos recomeçaram, subindo para o andar de cima. Só então se deu conta de que não estava a respirar bem. Tremia dos pés à cabeça. Levantando-se de um salto, dirigiu-se ao átrio de entrada e verificou a corrente da porta. Estava no seu lugar, segura, tal como o ferrolho e a fechadura de segurança.
Foi nesse momento, como já era hábito, que o medo se converteu em fúria. Ele fizera-lhe aquilo! Ninguém... Ninguém tinha o direito de aterrorizá-la daquela maneira, de fazê-la sentir-se vulnerável, ameaçada, na sua própria casa! Era um ultraje. Odiava o homem que lhe tinha feito aquilo, e odiava-se a si própria por se ter transformado numa vítima. Recusava-se a ser uma vítima. Teria de recuperar, de alguma maneira, a confiança perdida. Lá fora, era melhor. Sentia-se segura nas ruas movimentadas e barrulhentas, nas lojas apinhadas, ou sentada a uma mesa de esplanada, a beber um expresso com espuma de leite, num desses cafés de passeio, a ver os pombos cirandar, intrépidos, por entre os pés dos transeuntes, esquivando-se das rodas dos carrinhos de bebé e das bicicletas. No pub, do outro lado da rua, viam-se, como grinaldas, estandartes de pano esfarrapados pelos ventos de Inverno e ainda suspensos, ao fim de vários meses. Duas refeições pelo preço de uma. Veja aqui o jogo de hoje.
Multidões aguardavam, à sua frente, a oportunidade de atravessar a rua, contidas pela vedação que as impedia de derramarem-se no meio do trânsito. Entretanto, as luzes dos semáforos mudaram, a enchente fluiu para o outro lado; atrás, formou-se mais um grupo. Por cima dela, jazia um balão prateado, em fiapos, como um pássaro morto, na copa de uma árvore, agitando as asas no meio da folhagem. No fim da rua, o tráfego redemoinhava, na sua infinita coreografia, à volta da mini-rotunda. Jess beberricou o café, relutante em sair daquele lugar. O ruído era inexorável; ensurdecedor. Máquinas; música; o arrulho dos pombos nos rebordos dos prédios; pessoas a conversar, a rir, a gritar, a praguejar; a buzina de um camião alertando para a inversão de marcha; telemóveis a gemer de segundos em segundos, os seus insistentes toques uma cacofonia interminável e egoísta, tentando sobrepor-se à gritaria roufenha, crescente. Ali, costumava sentir-se em segurança; em casa. De repente, odiava tudo aquilo. O que ela queria era silêncio». In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.

Cortesia de PManuscrito/JDACT

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A Princesa Guerreira. Barbara Erskine. «Sentia a presença de algo ou de alguém. A observá-la. Sentia um par de olhos fixos na sua nuca. Está aí alguém?»

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«(…) Mas Stephanie já não sabia bem se tomara a decisão certa. Pousando o pincel, pegou num trapo manchado de tinta e limpou os dedos, franzindo um pouco o sobrolho enquanto o fazia. O som era tão subtil que mal o distinguira da música do rádio. Um estalido, não mais do que isso, vindo da outra ponta do estúdio. Passou os olhos pelas estantes carregadas de olaria, os sacos de barro, os frascos de esmalte, as latas de tinta na mesa encostada à parede. As pedras toscas da velha vacaria tinham sido caiadas, as seteiras medievais envidraçadas, as vigas tortas, no tecto alto, pintadas e guarnecidas, aqui e ali, de ganchos de ferro ornamentados, onde ela pendurava as ferramentas mais leves, e de um espanta-espíritos de vidro que tinia vagamente na corrente de ar, oferta de um dos seus muitos admiradores. Ei-lo, de novo. O estalido, seguido de um estrondo. Um pássaro ou outro animal devia ter entrado pela porta aberta, enquanto trabalhava, e começado a remexer nas estantes. Sem fazer barulho, empurrou o banco alto para trás e levantou-se. Vários minutos de cuidada investigação não lhe forneceram qualquer pista a respeito da origem do ruído, embora a sua inquietude crescesse.
Sentia a presença de algo ou de alguém. A observá-la. Sentia um par de olhos fixos na sua nuca. Está aí alguém? A sua própria voz soou-lhe nervosa. Dirigindo-se à porta, olhou lá para fora. A vacaria era perpendicular à casa, com as suas paredes caiadas e o telhado de velha ardósia galesa, unindo-se à cozinha por um corredor recém-construído. A porta onde ela se encontrava dava directamente para o exterior, para o antigo pátio da quinta, em forma de L, onde estacionava o carro, cercado de vasos de terracota com lavanda e alecrim. Franziu o sobrolho. O isolamento absoluto daquela velha quinta de montanha fora um dos seus encantos quando comprara a herdade. Acima de tudo, amava o silêncio, embora tivesse de admitir que a paz fosse de pouca dura, porque os seus amigos não paravam de lhe entrar, uns a seguir aos outros, pela porta dentro. Nos últimos tempos, porém, quando se encontrava sozinha, algo a perturbava. A sensação de que estava a ser observada. De que alguém, ou alguma coisa, se encontrava dentro de casa, com ela. Não um ser humano. Com isso, saberia lidar, julgava. Não, uma coisa mais subtil. Mais sinistra. Não eram os ruídos, embora desse por si permanentemente à escuta, consciente deles mesmo quando o rádio estava ligado. Não, era outra coisa.
Regressando ao estúdio, susteve a respiração. Por uma fracção de segundo, não mais, uma sombra movera-se perto da mesa do fundo. Pestanejou, e a sombra desapareceu; ou nunca ali estivera. Lá fora, ouviu um corvo a chamar enquanto sobrevoava o vale, a sua sombra uma pincelada veloz sobre as pedras quentes do pátio. Fora aquilo que ela vira, a sombra de um pássaro. Aliviada, virou-se e regressou para dentro de casa, no preciso momento em que o telefone da cozinha começou a tocar. Steph, é Km. A voz animada parecia encher a casa de sol. Pensaste no meu convite? Vem a Roma, Steph. Por favor. Podes trabalhar aqui em casa! O que quiseres. Ando aqui a falar sozinha com as paredes do apartamento. Todos os meus amigos se foram embora durante o Verão, ainda faltam semanas para eu partir para os Lagos, e preciso de ti!» In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.

Cortesia de PManuscrito/JDACT

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

A Metáfora do voo em Herberto Helder. Pedro Eiras. «Este ensaio pretende seguir o exemplo herbertiano, abrindo-se a um plural imprevisível. Seja o ensaio o duplo do passeio, adquirindo por sincretismo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Partindo de um texto de Herberto Helder onde se trata de bicicletas e helicópteros, este ensaio propõe a abertura para o imprevisível de um passeio. Entendido como exploração, o passeio confunde-se com a incógnita e só termina quando o explorável se torna conhecido. Como dar conta da fenomenologia do passear, abarcando desde a força das expectativas anteriores até à formação de uma panorâmica, uma assimilação do diverso na percepção simultânea, desde o acto de desocultação até à organização do saber?
Este ensaio pretende seguir o exemplo herbertiano, abrindo-se a um plural imprevisível. Seja o ensaio o duplo do passeio, adquirindo por sincretismo os contornos da fenomenologia do passear/voar herbertiano (pois toda a leitura crítica que não se saiba assim invadida pelo texto apenas pode incorrer na má-fé de mitos positivistas). Além disso, é o texto herbertiano que, lúdico, me convida a escrever um scherzo. Seja o ensaio homenagem a uma metáfora, resposta a um repto, medição do alcance da metáfora. E ainda: um voo sobre outro voo. Parto do texto a paisagem é um ponto de vista, publicado em Photomaton & Vox (para as citações, recorrerei à terceira edição, de 1995). Uma primeira versão daquele texto surgiu em 1976, sem título e sem indicação do nome do autor, como introdução a uma antologia literária: Nova. Magazine de poesia e desenho, Inverno de 1975/1976. O texto terminava com uma descrição entusiasta dos objectivos da antologia; mas esses parágrafos finais desaparecem em Photomaton & Vox. Ora, em 1976, nada prova que este texto (doravante referido como declaram que…, suas primeiras palavras) seja da autoria de Herberto Helder: sendo Nova organizada por António Palouro, António Sena, Herberto Helder, e editada por este último, poderíamos supor que declaram que…, fosse do punho de qualquer dos organizadores. Só com a inclusão do texto em Photomaton & Vox, três anos depois, Helder assume como sua a defesa da visão helicopteriana da poesia. Nada disto, e muito menos o assumir da paternidade, é inocente ou desprovido de consequências.
Na sua primeira versão, o texto de Herberto Helder divide-se pois em duas partes: a primeira é uma teorização metapoética a partir da metáfora do helicóptero como instrumento de leitura da poesia; a segunda, separada por três linhas de intervalo, apresenta objectivos e premissas da antologia. Sugere-se assim que a proposta revolucionária de aplicação da metáfora helicopteriana será resolvida (ou está já resolvida) pelos poetas antologiados (ou pela reunião desses poetas na antologia). No entanto, a ambiguidade predomina. Quem lança a proposta: Herberto Helder ou a comissão organizadora? A favor de quem? Contra quem? O repto dirige-se também/sobretudo aos poetas da antologia? A todos os poetas revolucionários (e em que sentido deve ir esta revolução poética-ideológica?) do Portugal do Inverno de 1975/76? Aos poetas que andam ainda em mala-posta? Ao próprio autor de declaram que…?
Nem todas estas questões serão resolvidas pela (re)publicação de declaram que…, em Photomaton & Vox. Na versão de 1979, declaram que…, constitui o décimo-oitavo texto entre os cinquenta e nove do livro, intitulando-se a paisagem é um ponto de vista, entre parêntesis e em itálico, sublinhando a parergonalidade dos títulos em relação aos textos propriamente ditos de Photomaton & Vox. O estilo é depurado, redundâncias e algumas expressões orais de cortesia irónica apagam-se ou atenuam-se. Além disso, o texto integra-se num livro de Herberto Helder. O projecto de fonte anónima, dirigido a um público ambiguamente lato, passa a ser legível com (ou contra?) outros textos do mesmo autor, incluindo os outros textos do mesmo livro. Constitui-se uma poética pessoal, que giza possibilidades de biografia e estabelece coordenadas idiossincráticas. De declaram que…, a paisagem é um ponto de vista cria-se um pai, isto é, um piloto». In Pedro Eiras, A Metáfora do voo em Herberto Helder, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXII, Porto, 2005.

Cortesia de Wikipedia/RFLLeLiteraturas/JDACT

Ensaio. Pedro Eiras. «É de um corpo que se trata, mas parece apenas outra paisagem, como no início do texto. O físico vê (é o narrador que enuncia…»

desenho de João Leme

«O físico prodigioso, primeiro incluído em Novas andanças do demónio (1966), é a possibilidade alegórica dessa humana divindade. A divisão simbólica em doze capítulos (seis de ascensão e seis de queda), a ficção medieval, a ambiguidade do nome (médico, corpo), o jogo de identidades entre as personagens (cavaleiro, diabo, Senhora, donzelas, frades), as alusões a mitos clássicos (Adónis, Bacantes) e ritos tradicionais, as referências cristológicas e pagãs, os códigos do amor cortês e do amor místico, tudo se congrega numa sagração do amor e da liberdade, da vida para além da morte, da redenção da condição humana nas metamorfoses de um corpo glorioso». In Instituto Camões

Notas sobre O Físico Prodigioso
«(…) Movimentos na horizontalidade e na verticalidade: eis uma cartografia sem lugares, que apenas assinala devires. E também a axiologia dos breves estados: porque o cavaleiro vertical é estranho na paisagem horizontal, porque o domínio sobre o cavalo é diferente da submissão à terra. Seria preciso pensar O Físico Prodigioso a partir desta gramática de diferenças. E o espaço é tão marcante a este nível que o próprio corpo de dona Urraca, doente, quando o físico a vê pela primeira vez, é como uma paisagem desigual; cito apenas um excerto de uma descrição maior: o pescoço era longo, e magro como os ombros. Mas da cava peitoral das clavículas os seios avançavam fortes, ainda que descaídos, em curva e contracurva, que mamilos crespos, largos e escuros, coroavam. Depois, a cinta era estreita, e as ancas, ossudas e largas, espetavam levemente as pontas de seus ossos, de que a barriga fluía redondamente como que precipitando-se no umbigo que parecia aquele buraquinho a meio de uma água que se esgota. E, numa onda que se encurvava, o ventre descia para uma altura cuja outra encosta um negro matagal cobria, sumindo-se no fino vale das coxas unidas.
É de um corpo que se trata, mas parece apenas outra paisagem, como no início do texto. O físico vê (é o narrador que enuncia, mas o ponto de vista é do físico: o cavaleiro olhou-a assim minuciosamente o corpo de dona Urraca como uma paisagem. Nada é indiferente: os seios são coroados por mamilos, as ancas espetam ossos, a barriga flui, o púbis cobre e desaparece entre as coxas. Nem falta, sintomaticamente, uma rede de metáforas e comparações que indiciam a paisagem natural: a barriga fluía (…) umbigo que parecia aquele buraquinho a meio de uma água que se esgota (…) numa onda que se encurvava (…) outra encosta um negro matagal cobria, sumindo-se no fino vale. Mar, montanha, vale, dona Urraca é uma horizontalidade cheia de lugares verticais. Apenas falta, para nomear esta paisagem, o desejo. Ele chegará na página seguinte: ondas tépidas percorreram o jovem, que viu, dentro do seu próprio corpo, as deusas enovelarem-se-lhe no baixo ventre, e se abaixou para elas, com os lábios entreabertos. O desejo chegará, sim, mas para exigir ao cavaleiro que se baixe, desmonte do seu saber teórico, seja terra. E esta descida não é uma escrita que contém o erotismo; já deve ter ficado claro que a própria escrita é o erotismo. Na expressão de Luís Carlos, se a nudez aparece pela mediação da palavra poética, é o discurso enquanto corporalidade que (…) se torna objecto de uma erotização e de um desnudamento radical». In Pedro Eiras, Metamorfoses 9, Rio de Janeiro / Lisboa, Caminho, Cátedra Jorge de Sena, UFRJ, 2008, p. 37-54, Jorge de Sena (1959-1965), Edições ASA, colecção Finisterra, 1977, ISBN 978-972-411-437-8.

Cortesia de Metamorfoses/EASA/JDACT

Ensaio. Pedro Eiras. «… numa sagração do amor e da liberdade, da vida para além da morte, da redenção da condição humana nas metamorfoses de um corpo glorioso»

desenho de João Leme

«O físico prodigioso, primeiro incluído em Novas andanças do demónio (1966), é a possibilidade alegórica dessa humana divindade. A divisão simbólica em doze capítulos (seis de ascensão e seis de queda), a ficção medieval, a ambiguidade do nome (médico, corpo), o jogo de identidades entre as personagens (cavaleiro, diabo, Senhora, donzelas, frades), as alusões a mitos clássicos (Adónis, Bacantes) e ritos tradicionais, as referências cristológicas e pagãs, os códigos do amor cortês e do amor místico, tudo se congrega numa sagração do amor e da liberdade, da vida para além da morte, da redenção da condição humana nas metamorfoses de um corpo glorioso». In Instituto Camões

Notas sobre O Físico Prodigioso
«Neste ensaio Eiras relê o percurso de iniciação a partir de figuras que elege como fulcrais. Herói ao mesmo tempo fáustico e inseguro, experimental e diabólico, o físico acaba por descobrir, para lá do apetite pela vida, a aceitação da morte. Para viver a física, deve recusar a metafísica: ser terra, corpo, desejo e dissolução. Balanceando o erecto corpo ao passo do cavalo, vinha descendo a encosta. O sol, muito alto ainda, iluminava de crepitações o vale que, selvático, se abria ante o seu olhar que pervagava abstracto, sem distinguir o mato que floria, as pedras que rebrilhavam pardas e cinzentas, os pequenos animais que esvoaçavam, corriam, rastejavam, ou se ficavam suspensos, sem temor, fitando a mole imensa e caminhante de cavalo e cavaleiro. No fundo do vale, por entre os renques de choupos e salgueiros, entrecortada estava a chapa metálica e estreita de um rio. Foram para ele descendo, o cavaleiro, na mesma distracção absorta, sofreando o passo, que se apressava agora, do sedento cavalo, cujas narinas se dilatavam. O manso ruído de águas entre seixos e o suave dançar das folhas do arvoredo ao sopro de uma brisa ténue fizeram que o cavaleiro despertasse para o calor que sentia, o cheiro acre de suor e pó, que dele e do cavalo era mistura, e um cansaço dos membros e da boca seca. Ele próprio dirigia a descida.
Suspendamos a leitura, mesmo se este parágrafo continua, ininterrupto, atravessando várias páginas. O que acontece aqui? Certamente a verticalidade de um corpo sobre a horizontalidade de uma paisagem. Há uma colina a descer, é certo, oblíqua; mas o olhar do cavaleiro pervagava abstracto, sem distinguir: como se todas as diferenças deste mundo natural, ainda não humano, fossem apagadas. Pelo contrário, o cavaleiro não é indiferente, sobretudo não nos é indiferente, se toda a narrativa, embora heterodiegética, for orientada pelo seu ponto de vista, para não dizer ponto de fuga. Como se assim pudéssemos ser também nós, leitores, desde o primeiro instante, físicos prodigiosos. Por ora, assinale-se esta verticalidade que desequilibra a paisagem; serão vários os desequilíbrios, mesmo se (ou porque) o cavaleiro está bem equilibrado na sua montada. É que este quase-centauro inaugura um regime de funcionamento da paisagem: o cavaleiro, na mesma distracção absorta, sofreando o passo, que se apressava agora, do sedento cavalo, cujas narinas se dilatavam, depois o cheiro acre de suor e pó, que dele e do cavalo era mistura, finalmente. Ele próprio dirigia a descida. Não será uma descrição da psique, entre o desejo do id e o domínio do ego? Ou a irrupção de uma linguagem de controlo e auto-conhecimento, inaudita na natureza, e contudo continuando a natureza? O físico, porque é dele que se trata, começa por ser aquele que tem poder sobre a física, isto é, sobre o seu próprio corpo natural ou sobre a natureza tout court. Ou talvez não. Se esta cartografia vertical do domínio é a tese da primeira página de O Físico Prodigioso, eu procurarei, aos poucos, os lugares do desdomínio.
Regresso à horizontalidade, aqui: o sol (…) iluminava de crepitações o vale que, selvático, se abria ante o seu olhar que pervagava abstracto, sem distinguir o mato que floria, as pedras que rebrilhavam pardas e cinzentas, os pequenos animais que esvoaçavam. O que há de estranho nesta frase? Certamente a corrente de orações relativas, a arrastarem a atenção do leitor de uns elementos para outros, agora sem centro de referência, numa quase indolente indiferença (a do próprio físico, a nossa) entre tudo o que existe. A própria frase se faz horizontal. Tudo nela é preciso (necessário e nítido), mas nada nela é central: o ponto de fuga transforma-se sem parar. Paisagem indiferente, e já imanente. Mas a imanência é vista do alto do cavalo (que, pelo contrário, está imerso na sede, e portanto no desejo); a focalização acaba por retornar ao físico, demasiado superior. Como escreve Luciana Picchio, há nesta sequência um cavaleiro qui descend la colline enveloppée de lumière: protagoniste et différent, surhomme, dès la première ligne. Mas essa super-humanidade, julgo eu, é precisamente o que ainda o retira à paisagem. O cavaleiro deverá descer à terra.
Por enquanto, guardemos esta paisagem, ou melhor, este contraste anterior à paisagem: horizontalidade indiferente de águas, plantas, bichos, verticalidade de um cavaleiro que acorda para o mundo. Não chega a ser uma imagem, mas é a promessa de todas as imagens, e também a negação delas, se o cavaleiro descer do cavalo, se o centauro se desfizer, se o desejo assaltar o super-homem. Contra as sequências de relativas, surgirão algumas figuras de desordem. Serão de duas ordens. Por um lado, uma movimentação no espaço horizontal: o cavaleiro percorre a paisagem. E, onde quer que pise, instaura a verticalidade: transporta a verticalidade com ele, isto é, a insolência de um olhar sobre. Desequilíbrio do espaço por irrupção do super-homem. Por outro lado, uma movimentação na própria verticalidade, que resolverá aquele desequilíbrio. É assim que o cavaleiro desce da montada, conhece as três donzelas, depois dona Urraca, ganha uma alma; mas esse percurso de queda continuará ainda, até o cavaleiro morrer e ser enterrado. Percurso de imanentização, pelo qual o homem abdica da verticalidade. Assinalemos já, não haverá simples síntese: porque do corpo irreversivelmente caído se erguerá uma roseira inebriante, gerando novos físicos. O ciclo recomeçará. Mas acho importante pensar que o físico tem de perder a verticalidade: é esta paisagem inicial que deve ser desfeita». In Pedro Eiras, Metamorfoses 9, Rio de Janeiro / Lisboa, Caminho, Cátedra Jorge de Sena, UFRJ, 2008, p. 37-54, Jorge de Sena (1959-1965), Edições ASA, colecção Finisterra, 1977, ISBN 978-972-411-437-8.

Cortesia de Metamorfoses/EASA/JDACT

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «Li o soneto, recitei-o um ror de vezes, primeiro em surdina e depois a alta voz. Li-o seguidamente de cima a baixo…»

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Catarina Ataíde. Igreja das Chagas, Sexta-feira Santa, 16 de Março, 1544
«(…) Com tudo aquilo, não prestava grande atenção à cerimónia, que Deus me perdoe. Mal podia esperar pela hora de saída. Estaria Luís Vaz no adro? Não ousei voltar-me nos bancos para o procurar no meio da multidão de fiéis que ali reviviam a paixão de Cristo. Esperaria pelo fim. Nunca as quatro horas de oração tinham levado tanto a passar. Queria rezar pela Rainha e pelo Rei, por Portugal, rezar pelos pobres, pelos desvalidos, pelos doentes, pelos escravos, pelos marinheiros e soldados que dilatavam a fé de Cristo nas remotas partes do Oriente e do Ocidente; rezar pelo Santo Padre, o papa Paulo III..., mas qual? Quando fechava os olhos e deixava cair a cabeça entre as mãos, uma só imagem me aparecia e uma só voz ouvia: a de Luís Vaz.

Violante Andrade. Évora, 1 de Junho, 1545
Aquelas rimas desconcertaram-me. Grande graça é saber ler, não só o que elas dizem mas mormente o que escondem. Li o soneto, recitei-o um ror de vezes, primeiro em surdina e depois a alta voz. Li-o seguidamente de cima a baixo e de trás para a frente, e ora só os versos pares, ora só os ímpares. Nada. Conformei-me: não tinha aquele soneto outro propósito que não o de ser um belo soneto à moda de Petrarca. Nisto saltaram-me de súbito à vista as primeiras letras de cada estrofe: lá estava, escondido num acróstico, o que Luís Vaz me intentava dizer: Vosso como cativo, já que o j, se lê i e o v se lê u na moderna ortografia. Procurei seguimento e, lendo depois as primeiras letras da sétima sílaba métrica, encontrei o tesouro: mui alta senhora. Orgulho-me da minha perspicácia; são também coisas que se aprendem, mas a queda parar decifrar o enigma, a mensagem de amor dissimulada, ou se nasce com ela ou ilude-nos para sempre. Há poemas que se viram do avesso para nos virarem do avesso. É esse o fascínio e o sobressalto!

Vencido está de Amor, meu pensamento,
o mais que pode ser vencida a vida,
sujeita, a vos servir instituída,
oferecendo tudo a vosso intento.

Contente deste bem, louva o momento
ou hora em que se viu tão bem perdida;
mil vezes desejando, a tal ferida
outra vez renovar seu perdimento.

Com essa pretensão está segura
a causa que me guia nesta empresa,
tão estranha, tão doce, honrosa e alta.

Jurando não seguir outra ventura,
votando só por vós rara firmeza,
ou ser no vosso amor achado em falta.

Muito enfadada ando eu com a política do Reino. Aqui em Évora só aquelas rimas me consolam: Vosso como cativo, mui alta senhora! Vosso como cativo, mui alta senhora!
Mais uma morte recente ensombra o paço: morre, em Castela, a princesa dona Maria Manuela, a única filha viva dos Reis de Portugal, ao dar à luz o pequeno Carlos Lourenço de Habsburgo. Ainda assim, não esmorece o ânimo do senhor meu marido. Francisco Morais, nosso conselheiro, dá-se a grandes trabalhos para o chamar à razão. A sucessão, senhor. Nada é ainda garantido. Francisco Morais franzia e desfranzia a testa, o que costumeiramente nada anunciava de bom». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
                                                                                   
Cortesia de OdoLivro/JDACT