sábado, 30 de dezembro de 2017

O Pirata do Rei na Terra do Sol. Clóvis Bulcão. «A Quitanda dos Negros de São Sebastião, nos dias nublados, era frequentada por todo o tipo de gente, ou seja, homens, mulheres, crianças…»

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Setembro de 1711. Na Quitanda dos Negros
«Aos sábados, o movimento na Quitanda dos Negros era mais intenso. Nos dias de chuva, muitos, quase todos evitavam as ruas imundas tomadas de poças, lama e todo o tipo de porcarias. Preferiam ficar em casa a reclamar ao tempo. Já quando o Sol brilhava forte, procuravam refúgio nas áreas mais frescas e aproveitavam para também reclamar do calor. Os dias nublados eram saudados com algum entusiasmo. Os sábados sem Sol faziam a felicidade dos comerciantes da Quitanda e dos seus frequentadores. O local era tomado por uma multidão de compradores ávidos por produtos frescos e, sobretudo, pela possibilidade de encontrar amigos, conhecidos ou qualquer pessoa para alvissarar. A vida dos moradores de São Sebastião, vilarejo insignificante da margem ocidental da baía da Guanabara, era pautada pelos humores do tempo.
A Quitanda dos Negros de São Sebastião, nos dias nublados, era frequentada por todo o tipo de gente, ou seja, homens, mulheres, crianças, ricos, pobres, brancos, mulatos, índios, estrangeiros, viajantes, padres, funcionários públicos, desocupados e até negros. Em toda a cidade não existia outro local onde houvesse tamanha mistura social. Nem nas missas de domingo havia tal harmonia. Gente que ia comprar, passear, comer, ter conversas desafogadas, deitar o olho a alguma moça, facturar algum ou apenas vadiar. Aos sábados convergiam para a Quitanda os produtores de alimentos do entorno da baía. De todos os lados os barcos aportavam na praia do monarca Manuel, trazendo o que todos desejavam, produtos fresquinhos. A vida na Quitanda obedecia a um ritual óbvio. Os primeiros a chegar, ainda de madrugada, eram os pescadores. Em grandes tabuleiros de madeira cortavam e limpavam os seus produtos: sardinhas, camarões, lulas, badejos, garoupas, robalos e tainhas. A seguir, desembarcavam os vendedores de frutas, com os seus produtos do fundo da baía, laranjas, mangas, limões, abacaxis e bananas. Depois chegavam os verdureiros com enormes couves, tenras alfaces, molhos de brócolos, mandiocas frescas, morangas maduras. Fechando o ciclo, entravam os vendedores de comida que fritavam postas de peixe, sardinhas, espetos de camarões, pastéis de siri, coziam milho e ainda serviam caldo de cana e diversas jeropigas. A fumaça da fritura marcava o auge do movimento.
Ao fim do dia, a Quitanda ficava tomada por um odor que reflectia bem o comportamento dos frequentadores. O enorme descampado que margeava as águas da baía transformava-se numa enorme lixeira. O sucesso económico podia ser medido pelo mau cheiro, e pela sujeira. Nos últimos tempos esse enorme mercado a céu aberto vivia um período atípico de prosperidade, e nunca antes o ar de São Sebastião fora tão fétido. Desde a descoberta de ouro na região das Gerais, o movimento ficara mais intenso. São Sebastião virara da noite para o dia um ponto de passagem do metal. Quanto mais mineiros usavam a cidade como porta de entrada para a região mineradora, mais ouro circulava no seu comércio.
Centenas de pessoas vindas de Portugal, de outras colónias e de muitas partes do Novo Mundo abasteciam-se antes de tomar o caminho da melhor esperança. Ninguém se aventurava em tão difícil sertão sem estar bem fornecido. Compravam os instrumentos de trabalho e os produtos fundamentais para a sobrevivência: farinha de mandioca, carne seca e sal, muito sal. A demanda pelo produto era cada vez maior. Produzido de forma ineficiente, pois era monopólio da Coroa, o sal legal era tão escasso quanto caro. Era comum não haver um único cristalzinho do produto nos armazéns reais. Sendo assim, as necessidades da sociedade acabaram por falar mais alto. De imediato, o negócio foi sendo dominado por alguns produtores clandestinos. Fabricavam na região dos lagos, uma localidade a norte da Guanabara. Aproveitavam o lugar ser de difícil acesso, obstando a presença dos interesses de El Rei. Uma cadeia produtiva foi-se organizando à margem da lei. Ora, teoricamente, a lei condenava essa quebra dos monopólios da Coroa e as pessoas, os traficantes, com duras penas». In Clóvis Bulcão, O Pirata do Rei na Terra do Sol, Saída de Emergência, 2015, ISBN 978-989-637-711-3.

Cortesia de Sde Emergência/JDACT