«(…) O
seu último livro fora basicamente um apelo a uma Reforma Islâmica. Os membros
da jihad acusaram-no de ser herege. Os moderados proclamaram que tinha a
coragem de Martinho Lutero. Nessa tarde, argumentara, para consternação de
Sayyid, que a bola se encontrava no campo palestino. Enquanto os Palestinos não
abandonassem a cultura do terror, alertara Massoudi, não se poderia esperar que
os Israelitas cedessem um milímetro que fosse da Cisjordânia. Nem o deveriam
fazer. Sacrilégio, bradara Sayyid. Apostasia. O professor Massoudi era alto,
tendo um pouco mais de um metro e oitenta de altura, e era demasiado
bem-apessoado para um homem que trabalhava com jovens mulheres impressionáveis.
Tinha o cabelo escuro e encaracolado, malares largos e fortes e um queixo
quadrado com uma covinha marcada ao centro. Os olhos castanhos e profundos
conferiam-lhe ao rosto um ar de inteligência acentuada e tranquilizadora. Vestido
como estava, com um casaco desportivo de caxemira
e uma camisola de gola alta creme, parecia o arquétipo do intelectual europeu.
Era uma imagem que lhe dava muito trabalho a transmitir. Com gestos
deliberados, guardou metodicamente os papéis e as canetas na pasta coçada e
desceu os degraus do palco, ao que se dirigiu ao corredor central, em direcção
à saída. Vários elementos da assistência demoravam-se na entrada. A um lado,
uma ilha tempestuosa no centro de um mar de tranquilidade, estava a garota.
Vestia jeans desbotados, um blusão de couro e um kaffiyeh palestino axadrezado
ao pescoço. O cabelo preto brilhava como a asa de um corvo. Os olhos eram
também quase pretos, mas cintilavam com outro fulgor. Seu nome era Hamida
al-Tatari. Dissera ser refugiada. Nascera em Ama, fora criada em Hamburgo e era
agora uma cidadã canadiana que residia no Norte de Londres. Massoudi
conhecera-a nessa tarde, durante uma recepção na associação de estudantes. Com
um café na mão, acusara-o com fervor de mostrar insuficiente afronta contra os
crimes dos americanos e dos judeus. Massoudi gostara do que vira. Tinham combinado tomar uma bebida nesse serão, no
bar ao lado do teatro de Sloane Square. As intenções dele não eram românticas.
Não queria o corpo de Hamida. Queria o seu entusiasmo e o seu rosto limpo. O
inglês perfeito e o passaporte canadiano. A jovem lançou-lhe um olhar furtivo
quando ele cruzou o hall, mas não tentou falar-lhe. Mantém a distância após o
simpósio, indicara-lhe ele nessa tarde. Um homem da minha posição tem de ter
cuidado com quem é visto. No exterior, abrigou-se por um momento debaixo do
pórtico e olhou o trânsito que se arrastava ao longo da estrada molhada. Sentiu
alguém a encostar-se ao seu cotovelo e depois observou Hamida a mergulhar
silenciosamente na chuvada. Esperou que desaparecesse, pendurou a pasta no
ombro e afastou-se na direcção oposta, para o hotel em Russell Square.
Deixou-se
transformar, a mudança que ocorria sempre que alternava entre vidas. A
aceleração do ritmo cardíaco, o aguçar dos sentidos, a repentina inclinação
para os pormenores. Como o jovem calvo que vinha em sua direcção, ao abrigo de
um guarda-chuva, e cujo olhar pareceu demorar-se no rosto de Massoudi por um instante mais do que
deveria. Ou o vendedor do quiosque que fitara, sem pudor, seus olhos, quando
comprara o Evening
Standard. Ou o taxista que o observou, trinta segundos
depois, quando jogou esse mesmo jornal numa lixeira em Upper Woburn Place. Um autocarro
cruzou-se com ele. Enquanto passava ruidosamente, Massoudi espiou as janelas
embaciadas e viu uma dúzia de rostos cansados, quase todos negros ou castanhos.
Os novos londrinos, pensou, e, por um instante, o professor de Administração
Global e Teoria Social debateu-se com as implicações. Quantos apoiariam em
silêncio a sua causa? Quantos assinariam por baixo, se lhes apresentasse um
contrato de morte?
Logo
depois e o autocarro ter passado, viu no passeio oposto um único pedestre: capa
de plástico, rabo-de-cavalo, duas linhas estreitas como sobrancelhas. Massoudi
reconheceu-o de imediato. O jovem estivera na conferência, na mesma fila de
Hamida, mas no lado oposto do auditório. Ocupara o mesmo lugar nessa manhã,
quando Massoudi fora a única voz opositora durante uma discussão sobre os benefícios da proibição de académicos
israelitas nas costas europeias. Massoudi baixou os olhos e continuou a andar,
levando involuntariamente a mão à alça da pasta. Estaria a ser seguido? Se
assim fosse, por quem? O MI5 seria a explicação mais plausível. A mais
provável, pensou, mas não a única. A BND alemã poderia tê-lo seguido de Bremen
até Londres. Ou talvez estivesse vigiado pela CIA». In Daniel Silva, A Mensageira, 2006,
Bertrand Editora, 2007, ISBN 978-972-251-544-3.
Cortesia de BEditora/JDACT