terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «A meus ais peço-vos que lhes valhais, Damas de Amor tão validas, que nunca tal dor sintais que queirais, onde não sejais queridas»

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Catarina Ataíde. Igreja das Chagas, Sexta-feira Santa, 16 de Março, 1544
«(…) Era Luís Vaz um donzel arruivado de fartas barbas, que vira há breves instantes a cumprimentar o Chiado. Tinha cabelo de ondas largas e olhar penetrante e vinha coberto por um gibão azul-escuro, inteiriço, calções tufados do mesmo tom e meias negras. Fiz-lhe um cumprimento de cabeça, e dirigi-me ao banco lateral, perto do altar-mor junto às outras damas da Rainha. Reparou em ti, avisou-me logo dona Joana, a minha melhor amiga, levantando-me o queixo com a mão. Estás cheia de sorte... ou de azar! Fiz-me de tola, procurando uma página perdida no missal. Quem?, segredei-lhe, ajeitando o véu que me cobria o rosto, para depois me pôr outra vez à procura da maldita página. Nunca acho a oração, e com estas luvas pior ainda. Quem haveria de ser? O poeta, explicou-me, com uma careta cómica, chamam-lhe o Cisne do Tejo! O Chiado? Que tolice! Conhecemo-nos há um ror de tempo. Não, tonta, falo de Luís Vaz.
Elevou os olhos ao céu, abanando a cabeça e fazendo balançar os brincos de pérolas. Corei. Luís Vaz? Até nas suas mãos de dedos esguios e unhas roídas tinha atentado, mas sabia que não podia deixar transparecer uma gota de curiosidade. Coisa alguma me podia denunciar, o que quer que fosse que ali mostrasse daria logo azo a uma roda-viva de intrigas cortesãs. E, afinal, o que de mais tinha Luís Vaz? Luís Vaz, caramba! Na sua voz havia o timbre do orgulho. O poeta mais talentoso e janota da nossa cidade. Pois não sabes? É o mestre de António Noronha, o morgado dos condes de Linhares, e os seus ais de amor são por de mais celebrados, e dizem que também validos, por muitas e desvairadas damas!

A meus ais
peço-vos que lhes valhais,
Damas de Amor tão validas,
que nunca tal dor sintais
que queirais,
onde não sejais queridas.

Sei bem, sei bem, ora sus! Não exaltes o que foi tão-só um gesto de cortesia. Já vinha atrasada e o mancebo fez-me entrar abrindo a porta a uma dama, como compete a todo e qualquer mancebo. Deixa-te de rodeios, Catarina, que bem sabes que te leio nos olhos tudo o que não confessas. Luís Vaz ousa nas rimas e ousa nas prosas. Filou-te como falcão a presa mal te viu subindo as escadas! Previno-te que é sedutor consumado. Leva as noites no Mal-Cozinhado, esse antro que arde de fedor a vinho, a vapores e a pó de enxofre, misturado com o ranço nauseabundo das mulheres que o frequentam; e leva os dias no palácio dos Linhares. Dizem que erra pelas ruas sinuosas de Alfama e é vezeiro em brigas e duelos, é folgazão como poucos, e poucas são as que alcançam escapar-lhe. Não lhe caias no ardil!
Supunha que Joana falasse verdade. Folgazão ou não, todos lhe reconheciam as virtudes. Corria que o mestre de António tinha um saber tão requintado e uma cultura de tal sorte profunda que secava tudo em seu redor. Ninguém sabia ao certo onde Luís Vaz colhera tanto e tamanho saber, pois que só por curto tempo cursara na Universidade de Coimbra. O infante João Manuel, o único varão vivo dos Reis, era íntimo amigo de António Noronha, os dois passam muito tempo juntos a jogar a péla e a cavalgar pelos campos à desfilada, e já bastas vezes os vira no Paço de Almeirim. E tanto diziam da desmesurada erudição do mestre como desdiziam do encanto que dona Violante lhe achava. Porém, nunca antes lhe tinha posto a vista em cima». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
                                                                                   
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