1805
- 1806
«(…) Por essa altura, sentados ao
canto no Café do Comércio, já travavam longos diálogos sobre os avanços de
Napoleão, assim como discorriam argumentos sobre as derrotas e vitórias das
forças navais britânicas e espanholas, a subexploração dos territórios
coloniais e a proliferação dos caminhos-de-ferro e suas vantagens na
Inglaterra. Conversavam no inglês que João adquirira durante anos a travar
contacto com britânicos na Índia, e Daniel progredia a olhos vistos com o
português. Dizia ter interesse em tudo o que lhe parecia exótico, e um país na
periferia de um continente, de costas voltadas para a Europa, com África aos
pés, e pelas ruas, e a América a acenar-lhe de frente, soava-lhe exótico o suficiente.
Não sabia responder se pretendia ficar. Muitos outros ingleses haviam-no feito,
e adivinhava-se uma aliança militar entre as duas nações imperiais. A velhaca
Espanha, muito provavelmente, voltar-se-ia de novo contra Portugal, a pretexto
de ganhar terreno na Península. A pressão de Napoleão na Europa, contudo, teria
de ser travada, mais cedo ou mais tarde. Uma pena que a Inglaterra não pudesse
esmagá-lo no mar. Nesse caso não tinha dúvidas de que engoliria os seus ideais revolucionários.
Em suma, Daniel comia e bebia bem
no país do porto, gostava da vista sobre o rio, das paisagens pitorescas da
cidade e da sua herança árabe. Fazia tempo para partir para o Norte, por terra,
momentaneamente entretido nos círculos intelectuais do país. Nem a quantidade
inesperada de mosquitos o demovia de se banhar no Tejo nas tardes mais quentes
desse estio de 1802. Já se apaixonara fugazmente algumas vezes, uma delas por uma
padeira cujo perfume a pão e a feno se mesclava pecaminosamente com o sabor
salgado da pele. O decoro era diferente da contenção georgiana de Inglaterra.
As senhoras exaltavam e pregavam a virtude, com vestidos de inspiração clássica,
e cultivavam os seus talentos mais do que nunca. Sabiam falar várias línguas,
desenhar, tocar vários instrumentos, bordar, tinham vastos conhecimentos de
literatura e filosofia, flutuavam ao dançar e eram afáveis ao trato. Em tudo
opostas ao entusiasmo mal-contido das portuguesas, que se aproximavam demasiado
e se insinuavam descaradamente, ou pelo menos as dos estratos mais baixos,
habituadas a deitar-se com marinheiros. A moda também estava alguns anos
atrasada por essas terras do Sul. As mulheres ainda usavam o espartilho
ditatorialmente apertado ao tórax, o rosto esbranquiçado e as perucas não
tinham desaparecido de todo. Alguns nobres de pior gosto ainda trocavam de cabelo
várias vezes ao dia. Sobretudo os homens, pareciam relutantes em deixar que se
lhes visse a cabeleira rala após anos de cabelo farto e encaracolado preso com
fita de seda. João era um dos que tinham assumido os seus trejeitos capilares,
apenas disfarçados pelos chapéus. Era educado, actualizado, humilde, jovem e,
dir-se-ia, vigoroso se não fosse a tosse que por vezes o tomava e vergava e
que, no final de 1803, quando Daniel finalmente partiu para o Porto, era já
mais do que evidente que o conduziria à cova.
Estava
também subentendido entre os dois homens que Daniel precisava de uma quinta no
Douro, e João tinha ali um casario e em redor uma propriedade com razoáveis
hectares adequados à plantação de vinha. Em contrapartida, João precisava de
casar uma filha e, por graça divina, Daniel era solteiro, bem estabelecido e
ganhara o afecto do futuro sogro. Dona Sofia não se perdoaria por não ter
conseguido elevar a filha a condessa ou até, nos seus sonhos mais íntimos, a
duquesa. Abriu os olhos para descobrir Mariana, reclinada no assento, a
respirar para o vidro da janela. Apertou os lábios e apercebeu-se de que
perdera um fio de baba. Limpou-o discretamente ao ombro e endireitou-se no seu
canto do veículo. Qualquer coisa que fugisse ao seu controlo cerrado era um gesto
de fraqueza imperdoável. O tijolo estava frio, as pontas dos dedos enregeladas e
o dia continuava cinzento. Mariana tinha posto aquela cara tão sua de rapariga infeliz.
Ingrata, seria mais adequado. O sacrifício maior era o da mãe, cuja vida
terminara, e que seria encerrada no Douro devido ao casamento dela com um zé-ninguém
inglês. A vida de Mariana começava aí, onde a sua terminava. Porque é que uma coisa
tinha de implicar a outra? Puxai o reposteiro, Mariana. A luz acordou-me. Não era
verdade, mas era o caminho mais curro para poupar a vista à luz macilenta daquele
início de tarde». In Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão, 1809, Marcador Editora,
2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.
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