quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

A Metáfora do voo em Herberto Helder. Pedro Eiras. «Este ensaio pretende seguir o exemplo herbertiano, abrindo-se a um plural imprevisível. Seja o ensaio o duplo do passeio, adquirindo por sincretismo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Partindo de um texto de Herberto Helder onde se trata de bicicletas e helicópteros, este ensaio propõe a abertura para o imprevisível de um passeio. Entendido como exploração, o passeio confunde-se com a incógnita e só termina quando o explorável se torna conhecido. Como dar conta da fenomenologia do passear, abarcando desde a força das expectativas anteriores até à formação de uma panorâmica, uma assimilação do diverso na percepção simultânea, desde o acto de desocultação até à organização do saber?
Este ensaio pretende seguir o exemplo herbertiano, abrindo-se a um plural imprevisível. Seja o ensaio o duplo do passeio, adquirindo por sincretismo os contornos da fenomenologia do passear/voar herbertiano (pois toda a leitura crítica que não se saiba assim invadida pelo texto apenas pode incorrer na má-fé de mitos positivistas). Além disso, é o texto herbertiano que, lúdico, me convida a escrever um scherzo. Seja o ensaio homenagem a uma metáfora, resposta a um repto, medição do alcance da metáfora. E ainda: um voo sobre outro voo. Parto do texto a paisagem é um ponto de vista, publicado em Photomaton & Vox (para as citações, recorrerei à terceira edição, de 1995). Uma primeira versão daquele texto surgiu em 1976, sem título e sem indicação do nome do autor, como introdução a uma antologia literária: Nova. Magazine de poesia e desenho, Inverno de 1975/1976. O texto terminava com uma descrição entusiasta dos objectivos da antologia; mas esses parágrafos finais desaparecem em Photomaton & Vox. Ora, em 1976, nada prova que este texto (doravante referido como declaram que…, suas primeiras palavras) seja da autoria de Herberto Helder: sendo Nova organizada por António Palouro, António Sena, Herberto Helder, e editada por este último, poderíamos supor que declaram que…, fosse do punho de qualquer dos organizadores. Só com a inclusão do texto em Photomaton & Vox, três anos depois, Helder assume como sua a defesa da visão helicopteriana da poesia. Nada disto, e muito menos o assumir da paternidade, é inocente ou desprovido de consequências.
Na sua primeira versão, o texto de Herberto Helder divide-se pois em duas partes: a primeira é uma teorização metapoética a partir da metáfora do helicóptero como instrumento de leitura da poesia; a segunda, separada por três linhas de intervalo, apresenta objectivos e premissas da antologia. Sugere-se assim que a proposta revolucionária de aplicação da metáfora helicopteriana será resolvida (ou está já resolvida) pelos poetas antologiados (ou pela reunião desses poetas na antologia). No entanto, a ambiguidade predomina. Quem lança a proposta: Herberto Helder ou a comissão organizadora? A favor de quem? Contra quem? O repto dirige-se também/sobretudo aos poetas da antologia? A todos os poetas revolucionários (e em que sentido deve ir esta revolução poética-ideológica?) do Portugal do Inverno de 1975/76? Aos poetas que andam ainda em mala-posta? Ao próprio autor de declaram que…?
Nem todas estas questões serão resolvidas pela (re)publicação de declaram que…, em Photomaton & Vox. Na versão de 1979, declaram que…, constitui o décimo-oitavo texto entre os cinquenta e nove do livro, intitulando-se a paisagem é um ponto de vista, entre parêntesis e em itálico, sublinhando a parergonalidade dos títulos em relação aos textos propriamente ditos de Photomaton & Vox. O estilo é depurado, redundâncias e algumas expressões orais de cortesia irónica apagam-se ou atenuam-se. Além disso, o texto integra-se num livro de Herberto Helder. O projecto de fonte anónima, dirigido a um público ambiguamente lato, passa a ser legível com (ou contra?) outros textos do mesmo autor, incluindo os outros textos do mesmo livro. Constitui-se uma poética pessoal, que giza possibilidades de biografia e estabelece coordenadas idiossincráticas. De declaram que…, a paisagem é um ponto de vista cria-se um pai, isto é, um piloto». In Pedro Eiras, A Metáfora do voo em Herberto Helder, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXII, Porto, 2005.

Cortesia de Wikipedia/RFLLeLiteraturas/JDACT