«O físico prodigioso, primeiro
incluído em Novas andanças do demónio
(1966), é a possibilidade alegórica dessa humana divindade. A
divisão simbólica em doze capítulos (seis de ascensão e seis de queda), a
ficção medieval, a ambiguidade do nome (médico, corpo), o jogo de identidades
entre as personagens (cavaleiro, diabo, Senhora, donzelas, frades), as alusões
a mitos clássicos (Adónis, Bacantes) e ritos tradicionais, as referências
cristológicas e pagãs, os códigos do amor cortês e do amor místico, tudo se
congrega numa sagração do amor e da liberdade, da vida para além da morte, da
redenção da condição humana nas metamorfoses de um corpo glorioso». In
Instituto Camões
Notas
sobre O Físico Prodigioso
«(…)
Movimentos
na horizontalidade e na verticalidade: eis uma cartografia sem lugares, que
apenas assinala devires. E também a axiologia dos breves estados: porque o
cavaleiro vertical é estranho na paisagem horizontal, porque o domínio sobre o
cavalo é diferente da submissão à terra. Seria preciso pensar O Físico Prodigioso a partir
desta gramática de diferenças. E o espaço é tão marcante a este nível que o
próprio corpo de dona Urraca, doente, quando o físico a vê pela primeira vez, é
como uma paisagem desigual; cito apenas um excerto de uma descrição maior: o
pescoço era longo, e magro como os ombros. Mas da cava peitoral das clavículas
os seios avançavam fortes, ainda que descaídos, em curva e contracurva, que
mamilos crespos, largos e escuros, coroavam. Depois, a cinta era estreita, e as
ancas, ossudas e largas, espetavam levemente as pontas de seus ossos, de que a
barriga fluía redondamente como que precipitando-se no umbigo que parecia
aquele buraquinho a meio de uma água que se esgota. E, numa onda que se
encurvava, o ventre descia para uma altura cuja outra encosta um negro matagal
cobria, sumindo-se no fino vale das coxas unidas.
É de um
corpo que se trata, mas parece apenas outra paisagem, como no início do texto.
O físico vê (é o narrador que enuncia, mas o ponto de vista é do físico: o cavaleiro
olhou-a assim minuciosamente o corpo de dona Urraca como uma paisagem. Nada é
indiferente: os seios são coroados por mamilos, as ancas espetam ossos, a
barriga flui, o púbis cobre e desaparece entre as coxas. Nem falta,
sintomaticamente, uma rede de metáforas e comparações que indiciam a paisagem
natural: a barriga fluía (…) umbigo que parecia aquele buraquinho a meio de uma
água que se esgota (…) numa onda que se encurvava (…) outra encosta um negro
matagal cobria, sumindo-se no fino vale. Mar, montanha, vale, dona Urraca é uma
horizontalidade cheia de lugares verticais. Apenas falta, para nomear esta
paisagem, o desejo. Ele chegará na página seguinte: ondas tépidas percorreram o
jovem, que viu, dentro do seu próprio corpo, as deusas enovelarem-se-lhe no
baixo ventre, e se abaixou para elas, com os lábios entreabertos. O desejo
chegará, sim, mas para exigir ao cavaleiro que se baixe, desmonte do seu saber
teórico, seja terra. E esta descida não é uma escrita que contém o erotismo; já
deve ter ficado claro que a própria escrita é o erotismo. Na expressão de Luís Carlos,
se a nudez aparece pela mediação da palavra poética, é o discurso enquanto corporalidade que (…) se torna
objecto de uma erotização e de um desnudamento radical». In Pedro Eiras, Metamorfoses 9, Rio de Janeiro /
Lisboa, Caminho, Cátedra Jorge de Sena, UFRJ, 2008, p. 37-54, Jorge de Sena (1959-1965),
Edições ASA, colecção Finisterra, 1977, ISBN 978-972-411-437-8.
Cortesia de Metamorfoses/EASA/JDACT