O
Outono da Saudade
«(…)
O colorido das rosas, as gotas brilhantes da rega ou uma andorinha no peito, fizeram
chover na sua alma perdida, e chorou pela primeira vez em muito tempo. Era a
noção do vazio, o sentimento de ruim consciência a marcar-lhe ainda mais a
pobreza. E quando saiu para a rua, rasgado o céu num bando de aves negras,
sangravam no horizonte visual palavras aflitas de saudade. Dizia-me o criado
que então se perguntou porque lhe faltara a coragem de procurar Sua Senhoria.
Em vez de estar morto o sentimento antigo, ainda o sentia estremecer, parecia
crescer de culpa feito, pesava
tanto
como o remorso. Mas culpa, porquê? Remorso porquê? Porque se havia de lembrar
de ambos?
Ainda
não sei destes particulares ao tempo que lhe espio o rosto, cheio de aflição.
Quase nem dou pela cerimónia terminar, absorto numa história que me devia ser
alheia. Arquivo apenas o sussurro de vozes, muita gente a sair e a entrar
ordeiramente, depois da rainha ter ido embora, em rendição constante para uns
minutos de recolhimento. A certa altura informam as pessoas excedentes que nem
todas poderão entrar o melhor é voltarem no dia seguinte. E chego a sentir
injusta a minha presença, com pena dos que choram copiosamente, eu que me sinto
incapaz de verter mais lágrimas sabendo contudo como se atropelam na torrente de
tristeza. Com o espaço mais vazio e o criado logo atrás, o poeta aproxima-se,
em passos incertos. Começa por depor no féretro a rosa murcha, colhida no dia
anterior, eu fingindo não ver para não lhe causar constrangimento. Mas estou
perto o bastante para lhe ofender a intimidade. Recuo então alguns passos, sem
nunca o encarar, para me quedar ligeiramente atrás de António, sempre suspenso
dos gestos de seu amo. Quando ele ajoelha chega mais perto, a mão pronta para lhe
servir de arrimo.
Ninguém
dedicou a Camões afecto mais verdadeiro do que aquele que lhe fez mercê a
Senhora Infanta. As vozes maviosas de outras damas fazem-lhe falta, mas tamanho
bem-querer vindo de tão alta Senhoria era o maior privilégio, a chave da
liberdade que não chegou plenamente. E no entanto jamais alguém foi tão livre
na agilidade das rimas, livre nos pensamentos, com igual engenho para colher do
mal o maior bem. Pensa agora nas mercês que ela lhe concedeu, no mal que lhe
devem ter feito por sua causa. Decerto amargaram-lhe a vida por ter descido o olhar,
o afecto, até alguém tão humilde, deve ter recebido avisos, sugestões, ameaças
subtis para decidir em contrário ao que seu coração determinava. Muita dor até
ver-se condenada a esconder para o resto da vida o que sentia, sob pena de ser
ele a sofrer maior castigo...
Tudo
tão claro, neste vazio escuro. Devia ter rogado uma última audiência com ela
para esclarecer momentos menos transparentes ainda no reino, coisas passadas
durante a ausência no Oriente. Tempo não lhe faltou para dizer a muita gratidão
que no íntimo sentia pela carta de perdão de João III, antes de partir para a
Índia, pelas intercessões junto do Inquisidor mor até à edição de Os
Lusíadas, um feito que no termo da vida lhe trouxe um quinhão do
respeito que tanto procurou. Tempo não lhe faltou, faltou coragem, já muito
esbanjada durante a mocidade. Tarde de mais. Agora de pouco vale lembrar
momentos que não voltam, ali onde os restos mortais de Sua Senhoria nada mais
esperam que a paz completa negada em vida.
Estamos
só os três, perto do corpo. Por ordem do padre-mestre um menino de caracóis
escuros vem pedir para nos afastarmos um pouco mais para trás. Querem queimar
incenso e derramar bálsamos, depois do ar quase irrespirável. António guarda as
costas de seu amo, ainda ajoelhado, a desfiar murmúrios em respiração mais
forte. Sem afastar os brandos modos nega-se a cumprir as ordens implícitas nos
gestos dele, preferindo ficar fielmente à espera de ajudar se acaso o poeta não
conseguir controlar a emoção. Com as mãos no rosto, estrutura quase a ruir,
Camões soluça, o jau agora a segurar-lhe os ombros sem lograr acalmá-lo. Vira a
cabeça na minha direcção, ligeiramente perturbado, entendo que à procura de auxilio.
Em nome de Sua Senhoria dou um passo em frente, coloco-lhe as mãos sob os
braços para forçá-lo a levantar. Tem de ser genuína a sua mágoa, as palavras
atormentadas que vai desabafando: deixei tanta confusão, Senhora, acercar-se
de vosso coração. Nas outras damas todas via Vossa Senhoria, mas nunca em Vossa
Senhoria vi nenhuma delas, nenhuma…». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões,
Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.
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