sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

A Revolução da Mulher das Pevides. Isabel Ricardo. «Napoleão Bonaparte sabia bem tocar nas feridas e influenciar quem desejava. Fora só sugerir o plano implacável de retalhar Portugal em três partes…»

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«(…) Ainda antes mesmo de receber a resposta definitiva do príncipe regente de Portugal, a invasão já fora decidida há muito tempo. O seu comandante, o general Junot, em 5 de Setembro, já ultimava os derradeiros preparativos. Muito bem. Amanhã mesmo, 18, partirão. Os olhos de Jean-Andoche Junot brilharam de entusiasmo e emoção. O imperador fitou três dos homens que estavam diante de si, um a um, como se os avaliasse mentalmente. A primeira divisão do exército da Gironda terá o seu comando, Delaborde, com 9609 homens e 812 cavalos. Henri-François Delaborde, um homem de 42 anos, alto, aspecto distinto e olhos brilhantes, bateu com os tacões das botas em sentido, ao mesmo tempo que fazia uma vénia. Agradeço a confiança, Vossa Majestade. Napoleão fixou um homem de 36 anos, sem o braço esquerdo, cuja manga do casaco estava dobrada. Este tinha um aspecto sinistro e ameaçador. De cabelos escuros encaracolados e longas patilhas no rosto antipático de feições vincadas, nariz comprido e fino, os olhos pequenos e vivos de expressão cruel, reforçada pelos lábios muito finos que quase desapareciam numa linha. Uma personagem perigosa, talvez a pior daquele grupo de militares.
Loison comandará a segunda divisão, consistindo esta em 4984 homens e 109 cavalos. O general Henri-Louis Loison fez um leve aceno de cabeça, mantendo-se imperturbável. A terceira pertencerá a Travot, com 8389 homens e 620 cavalos. Jean-Pierre Travot, de 40 anos de idade, pôs-se em sentido, muito sério, agradecendo. Possuía um rosto mais sereno, quase o oposto de Loison. O general Kellerman comandará a cavalaria, a engenharia pertencerá ao coronel Vincent e a artilharia ao general de brigada Traviel. Junot será o comandante-em-chefe do exército. Três outros homens ainda não tinham falado, esperando ordens. E os espanhóis, Majestade?, inquiriu Junot, com a familiaridade da amizade de muitos anos com Bonaparte, quando era seu ajudante-de-campo, ainda ele não era o imperador temido e sim um oficial, de origens humildes. Podemos contar com eles como prometeram, com homens e mantimentos? Um sorriso astucioso surgiu no rosto de Napoleão Bonaparte. Claro. A Espanha caiu ingenuamente na minha armadilha, habilmente montada, vítima do rancor e ódio cegos que ainda vota a Portugal. Foi facilmente manobrada, brilhantemente aliciada para o meu lado. Foi só espicaçar-lhe a cobiça com um apetitoso isco. Aquele território que um dia lhe pertenceu e que jamais deixou de cobiçar.
Napoleão pegou num documento que se encontrava sobre a enorme secretária e mostrou-lhes, com um risinho malicioso. O Tratado de Fontainebleau (assinado por Michel Duroc e E. Izquierdo, em representação de França e Espanha, dividia Portugal em três fatias: Lusitânia Setentrional, região entre o rio Minho e o rio Douro, um principado que seria governado pela rainha do extinto reino da Etrúria, uma filha do rei de Espanha; Algarves, compreendendo Alentejo e Algarve, território a partir do sul do Tejo, futuramente governado por Manuel Godoy, com o título de rei; Resto de Portugal, compreendendo as províncias da Estremadura, Beira e Trás-os-Montes, território importante estrategicamente devido aos seus portos, devia ser governado directamente pela França. As colónias portuguesas seriam divididas depois entre a Franca e a Espanha) que brevemente será assinado...
Napoleão Bonaparte sabia bem tocar nas feridas e influenciar quem desejava. Fora só sugerir o plano implacável de retalhar Portugal em três partes, uma delas para França, outra para Castela e a restante para Manuel Godoy, o primeiro-ministro do rei de Espanha, para conseguir aliciar o reino espanhol para o seu lado. Isso fora relativamente fácil. Espanha traía de novo o seu vizinho mais chegado, unido a ele por tantos laços histórios e familiares. Um hermano como por vezes lhe chamava, quando lhe era conveniente… Já anos antes, quando tropas portuguesas (campanha do Rossilhão) se tinham juntado às espanholas, integradas na primeira aliança, chefiada pelos ingleses, para deter a revolucionária França, a Espanha, súbita e sub-repticiamente, fizera a paz (Tratado de Basileia, em22 de Julho de 1795, assinado por Manuel Godoy, vindo-lhe daí o título de Príncipe da Paz) com a inimiga França e atraiçoara Portugal e Inglaterra, esquecendo os motivos para se ter integrado na aliança, vendo somente a contrapartida oferecida pelos franceses. O reino de Portugal há muito cobiçado, não só pela excelente posição geográfica que ocupava, mas também pelo vasto e apetecível império ultramarino, perdendo-se na altura Olivença (curto conflito militar entre Portugal e Espanha, em 1801, conhecido jocosamente como Guerra das Laranjas, onde se criou o problema de Olivença) para a paz se fazer entre os dois reinos». In Isabel Ricardo, A Revolução da Mulher das Pevides, 2015, Edições Saída de Emergência, 2015, ISBN 978-989-637-855-4.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT