sábado, 30 de novembro de 2019

Em Torno de Hilda Hilst. Nilze Maria A. R. S. Busato. «Não é de se espantar que o teatro hilstiano tenha chamado atenção de estudiosos no exterior, diante do facto de não ter encontrado ressonâncias, reconhecimento e abrangências…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Possessa e O Verdugo (Éder Rodrigues e Sara Rojo)
«(…) Porém, não se trata de um teatro facilmente determinado por correntes únicas de influências ou inserção. É um teatro que mistura os elementos, que equaciona, que esfacela a realidade e arquitecta outras esferas de tratamentos possíveis ao teatral. Hilst utiliza suas experiências como poeta e projecta novos formatos, outras maneiras de confabular códigos de comunicação, de desconstruir signos e estruturas. Nas palavras da própria autora, em entrevista concedida ao Diário de São Paulo de 29 de Abril de 1973:

As gentes, as pessoas em geral têm medo da ideia, da extensão metafísica de um texto, mas tanto minha prosa como a minha dramaturgia existem somente porque acredito que o próximo século será metafísico. Não me interesso pelas pequenas odisseias domésticas, interesso-me pela situação limite do homem. Não me peçam para pôr os pés na terra se o que pretendo é o fogo do espírito. O espírito é voraz e sofre tensão dolorosa e contínua. Eu sofro de intensidade e de paixão. E gostaria de ter as plantas dos pés sobre a esplêndida superfície da cabeça. (Viana, 1973)

Não é de se espantar que o teatro hilstiano tenha chamado atenção de estudiosos no exterior, diante do facto de não ter encontrado ressonâncias, reconhecimento e abrangências dentro do Brasil. O primeiro estudo completo configurado num livro solo sobre todas as peças da autora não foi realizado no Brasil. Alva Martínez Teixeiro publica em 2009 pelas Publicacións da Biblioteca-Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor, da Universidade da Corunha, na Espanha, a obra O herói incómodo - Utopia e pessimismo no teatro de Hilda Hilst. Trata-se do primeiro livro crítico que se debruça sobre a dramaturgia hilstiana e que analisa inúmeras questões e complexidades sobressalentes nas peças, sublinhando, sobretudo, as correlacções entre os prospectos utópicos e a linhagem pessimista das obras. Anteriormente, os textos que referenciaram o teatro de Hilst foram o de Anatol Rosenfeld, em 1969, o estudo mais abrangente de Elza Cunha de Vincenzo (no capítulo do livro Um teatro da mulher, de 1992) e o de Renata Pallottini, no capítulo sobre o teatro que integra a edição dos Cadernos de Literatura no volume dedicado à autora, em 1999. O teatro de Hilda Hilst só é publicado de forma completa em 2008, pela editora Globo, mais de 40 anos depois de escrita a primeira peça.
Nessa publicação, Alcir Pécora faz colocações pontuando o tom de embates e debates que a edição completa da dramaturgia hilstiana provoca. Com relação às obras, o crítico questiona: relidas como texto somente, funcionaria como teatro, hoje? (Pécora, 2008). Esta pergunta inquieta os autores do presente texto, pois percebemos que a resposta, sendo afirmativa, remete a questões do texto dramático, principalmente no facto de que a potência dramatúrgica não está apenas no que é dito (que no caso das obras de Hilst continua sendo pertinente), mas também na forma como o texto dramático amplia sua projecção espectacular, além da maneira lacunar com que se opera a instância política e a elevação da morte como um recurso trágico de transcendência do pensamento articulado em cena». In Nilze Maria Azevedo Reguera Susanna Busato, Em Torno de Hilda Hilst, Editora UNESP, 2015, ISBN 978-856-833-469-0.

Editora UNESP/JDACT

Os Sonetos. William Shakespeare. António Simões e M. Gomes Torre. «Que balanço aceitável podes tu deixar? Tua beleza não partilhada contigo vai para a cova. Mas se o for, em teu herdeiro se renova»

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[…]
IV
«Porque gastas, meu generoso esbanjador,
Só contigo, a herança da tua beleza?
Generosa, só dá a quem generoso for,
Apenas empresta, nada nos dá a natureza,
Assim, belo avarento, porque é que abusas
Da beleza a ti dada para ser transmitida?
Usurário sem lucros, porque é que usas
Tão grandes somas, mas renuncias à vida?
Por só contigo próprio negócios consentires.
E teu doce eu que estás a enganar;
Assim, ao dizer-te a Natureza que é hora de te ires.
Que balanço aceitável podes tu deixar?
Tua beleza não partilhada contigo vai para a cova.
Mas se o for, em teu herdeiro se renova.

V
«Essas horas que moldaram gentilmente
O belo rosto onde todo o olhar se demora.
Para o rosto serão um tirano inclemente,
Desfeando o que tudo em beleza excede agora.
Pois o Tempo, que não para, conduz o Verão
Ao terrível Inverno que o reduz a nada,
O frio congela a seiva, as folhas cairão,
A neve esconde a beleza da terra desolada.
Se a destilação do Verão não fosse feita.
Prisioneira líquida num frasco de vidro.
A acção da beleza seria desfeita.
A memória de tudo ter-se-ia perdido,
Flores destiladas sobrevivem ao Inverno:
No perfume que fica, seu ser vive eterno».
[…]
In William Shakespeare, Os Sonetos, 1609, tradução de António Simões e M. Gomes Torre, Relógio d’Água Editores, 2019, ISBN 978-989-641-926-4.

Cortesia de Relógiod’ÁguaEditores/JDACT

O Pecado e a Honra. Maria João Câmara. «A cerimónia deveria ser por volta do meio-dia e já passava da uma hora da tarde. Teria acontecido alguma coisa? Maria.Jácome, assim se chamava a noiva de dezanove anos, de boa cara…»

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«(…) Nesse dia, Rodrigo Figueira entrou na igreja, trajando o seu melhor fato. O excelente veludo de seda da sua capa brilhava, mesmo com a luz fosca das velas que iluminavam o templo. Vislumbrou ao fundo o padre Bartolomeu. O sacerdote, de estatura baixa e rosto muito redondo e avermelhado, abria os braços, como que a recebê-lo. Bom dia! Como está vossa mercê? De boa disposição?, e acompanhava as perguntas com gestos um tanto teatrais. O cumprimento foi retribuído pelo fidalgo como uma obrigação de cortesia, sem convicção. Oh, sim, sim..., de mui boa disposição, disse sem grande entusiasmo, quase distraído, mais concentrado no passo que ia dar nesse dia, nessa cerimónia. Tomai assento, pois que uma noiva nunca, e insistiu, mas nunca, chega no tempo marcado. Sabeis como são complicados os toucados e os fatos, e sabe Deus que mais!..., afirmou, imitando os gestos femininos com meneios das mãos, fingindo ter sobre a sua careca um elaborado penteado.
Rodrigo Figueira sorriu e aceitou a sugestão, aguardando serenamente a chegada da noiva. Os seus sapatos, de um negro impecavelmente brilhante, revirados na ponta, começavam a incomodar as frieiras que tinha desde que os primeiros ventos haviam trazido o frio do Norte. Estava-se em Fevereiro e o sol espreitava, destemido e transparente, de um céu azul-turquesa. Um bom dia para o seu casamento! Entretanto, celebravam-se alguns ofícios de defuntos nas capelas laterais. As suas ladainhas ouviam-se, ininterruptas e constantes, como zumbidos de abelhas em volta das flores na Primavera. Fazia-se tarde. Rodrigo tentava distrair-se com o povo que entrava na igreja, gente que se benzia, baixava e levantava a cabeça em largos gestos repetidos, bichanava orações frente às imagens de sua devoção, percorria o perímetro da nave da igreja e saía do mesmo modo, mas já com a certeza de que os santos a quem pedira teriam ouvido as suas preces.
A cerimónia deveria ser por volta do meio-dia e já passava da uma hora da tarde. Teria acontecido alguma coisa? Maria.Jácome, assim se chamava a noiva de dezanove anos, de boa cara, um pouco sofrida e pesada para a sua idade, tinha um sorriso simpático e era bastante calada, segundo Rodrigo se apercebera nas poucas vezes que estivera com ela. Mas, além de alguns sinais salientes que marcavam a maçã do rosto do lado direito, não havia na sua aparência nada que a tornasse verdadeiramente feia, embora nada a fizesse especialmente bonita. Era aquele tipo de mulher que geralmente passava despercebido. Todavia, debaixo de uma aparente bonomia, Maria tinha os seus quereres. Devia ser o seu sangue herdado de Inês Sousa, sua mãe, um sangue alentejano, moldado por planuras sem fim, crestadas pelo calor abrasador e seco ou vergastadas pelo vento gélido e solitário. O pai da noiva, Pedro Jácome, era fidalgo estimado da casa do infante Fernando, pai do futuro rei Manuel I, homem da sua guarda pessoal.
Quanto a Rodrigo Figueira, o noivo expectante, era filho de Brites Alves, herdeira da enorme fortuna de seu pai, consubstanciada numa vastidão de terras ao redor da cidade de Santarém, e de Henrique Figueira, escrivão da Fazenda de Afonso V e muito seu privado. Brites falecera havia alguns anos, deixando os filhos ricos o bastante. Os irmãos de Rodrigo, Aires e João Lourenço, aguardavam calmamente no adro da igreja onde uma chusma de curiosos começava a ajuntar-se. Talvez por causa do hábito da Ordem Militar de Malta, branco e negro com a cruz de oito pontas que Aires envergava... Os olhares desviavam-se quando ele passava e uma aura de respeito e admiração rodeava-o desde que chegara a Lisboa. Aires viera do mosteiro Flor da Rosa. onde professara. Pedira licença ao mestre para ir para um local onde pudesse ter mais acção como cavaleiro militar sendo então designado para ir para Rodes, onde ficava a sede da Ordem. Estava. Pois, prestes a partir para esta ilha onde eram necessários cavaleiros dispostos ao sacrifício, uma vez que era constantemente atacada pelo Turco. Ainda no ano anterior, Maomé II, imperador otomano, a havia assediado, tendo sido então rechaçado. A derrota foi tão afrontosa para aquele imperador que, quando morreu. mandou que se escrevesse na sua sepultura o seguinte epitáfio: desejo conquistar Rodes e a Itália. Sonhos vãos, os dos defuntos! Quanto a Aires, levaria com ele a coragem dos cavaleiros portugueses e contribuiria para a salvação da cristandade!» In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

O Pecado e a Honra. Maria João Câmara. «Quando Teresa começou a botar corpo, crescendo e desenvolvendo-se, mandava-a para a Quinta do Lagar, no termo da cidade, para que fugisse do ar pestilento…»

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«(…) Apesar de tudo, o filho mais novo de dona Beatriz, Manuel, recebeu a notícia com naturalidade. Fora também com naturalidade que deixara de se deslocar a Odivelas. Isabel escrevera-lhe mil cartas, mandou recados e mensagens, recordando-lhe os encontros apaixonados, as palavras trocadas, os momentos de puro êxtase. Porque não vinha ele? Porque não lhe respondia? Porque desaparecera da sua vida assim, tão de repente e tão absolutamente? Mas apenas obteve o silêncio. Tentou sair do convento disfarçada de criada, para encontrar o pai do seu filho, para lhe suplicar que a acolhesse, que não a abandonasse, mas não pôde sequer passar a porta da clausura porque a abadessa a tinha tão vigiada como presa de milhafre antes de ser caçada. Finalmente, Isabel, desperta perante a dura realidade de um amor perdido, do abandono e da sua prenhez, chorava convulsivamente, pedindo a Deus que a levasse na hora de parir, como fazia a tantas mulheres. Fosse Ele servido fazê-lo, que ela Lho agradeceria para todo o sempre. Assim nasceria Teresa.
E depressa, antes que a mãe pudesse ver o rosto do rechonchudo bebé, um criado levando na albarda de um burro uma alcofa tapada, o entregou nas casas de morada do infante Manuel. Abandonada e separada de uma filha que lhe nascera de tão grande amor, Isabel fechou-se no seu desgosto. Nunca a esqueceu, nunca abandonou as recordações do seu grande amor e nunca transpôs os muros do convento, como tinha prometido à abadessa. Para criar esta criança, o infante Manuel entregou-a, com a medalha de São Dinis presa numa fita verde, a um seu criado, Brás Correia, desembargador e seu muito leal servidor. Brás Correia, sem filhos que dessem continuidade ao seu sengue, a tomou e dela fez o seu bem mais precioso, a sua jóia, o seu arrebatamento. Afinal, era a filha de seu senhor. Imediatamente mandou vir duas amas do Bombarral, não faltasse o leite àquela criança abençoada que o retiraria da solidão em que sempre vivera. E para que crescesse em saúde e em graça, fez visitas ao boticário, mandou preparar xaropes para que nenhuma tosse a consumisse, mandou que a untassem de pomadas e que lhe fizessem abluções constantes, apesar das ligaduras que a enfaixavam. Encheu o seu peito de bentinhos e orações escritas em panos de linho fino. Quando Teresa começou a botar corpo, crescendo e desenvolvendo-se, mandava-a para a Quinta do Lagar, no termo da cidade, para que fugisse do ar pestilento que invadia Lisboa no estio, para que bebesse a água fresca das nascentes, para que comesse a fruta mais madura, a alface mais tenra, a galinha mais gorda. A criança medrava, de facto, e respondia ao amor de Brás Correia com enorme ternura. Enchia a casa com o seu riso e a sua tagarelice (chegada a idade da comoção, Brás Correia não recordaria estes tempos sem que uma lágrima lhe caísse e sem que a voz se lhe embargasse), encantava todos com a sua alegria. Cresceu saudável e bela como uma maçã orvalhada.
Quanto aos seus olhos azuis, estes faziam as pessoas embasbacarem a olhar para ela... E ao tomar formas de mulher, Teresa começou a perguntar-se sobre a vida. E quando uma pessoa se pergunta pela vida, quer respostas. E Brás Correia, sem ter a certeza do que dizia, não pôde evitar dizer-lhe mentiras: sua mãe morrera quando ainda era pequena. E como se chamava ela? Isabel». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Poesia. Matilde Campilho. «… em cada copo de minha cidade um dia você diz que me a… eu a…-te no dia seguinte a amendoeira se expande e floresce cinco folhas mais nesse dia reparo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Rio de Janeiro. Lisboa
«Um dia você
adora meus óculos
adoro os teus óculos
no dia seguinte
não quero que venhas na fazenda

três dias antes
você ia adorar este lugar
você quer vir até à fazenda?
um dia eu rasgo
o tecido celular do rosto
realizo um sorriso constante
que atravessa o morro
o ponto mágico do morro
rasgão alegre que fulmina
o veio mínimo da folha
de amendoeira
e pelo feixe de luz tropiquente
vai parar na cara de João
vendedor de suco no leblon
em ricochete João grita açaí!
qualquer dia eu vou e chego

No outro dia
a cidade se aborrece
desdignificada pela
gigante roleta
que se chama medo
o urubu fica empoleirado
na trave enferrujada
daquilo que já foi suporte
ao cartaz que anunciava
o novo mundo das piscinas

fosforescentes
o pássaro suspenso
olhando a via rápida
e catando caca
debaixo da unha
temendo o gira girar
da pequena roda
que circula sorte e azar
um dia você
escreve para seus pais
falando sobre o amor
quarenta dias depois
teus pais te escrevem
falando sobre redes de pesca
e o perigo das redes de pesca
um dia você me envia uma carta
depois a outra
o rasgão explode
recordando ainda outra carta
de alguns meses antes
o postal eterno que dizia
still crazy (after all
these years)
faço voto de silêncio
mas na sacralização
horária das avenidas
eu penso que você
sua mãe e seu pai
conversam muito
sobre peixes
e que isso mantém quieta
a roleta negra
e que isso mantém aparada
a unha do urubu

e que isso faz homenagem
a João e à fruta espessa
que brilha vermelha
em cada copo de minha cidade
um dia você diz que me a…
eu a…-te
no dia seguinte
a amendoeira se expande
e floresce cinco folhas mais
nesse dia reparo
que estamos contribuindo
você e eu
para o florestamento
da cidade
de duas cidades
faço voto de silêncio
mas na sacralização horária
da respiração eu penso
que apesar da sala de casino
abrigo da gigante roleta do medo
apesar dos golpes de gmt -3
apesar da fita de seda que fica
ondulando sua medida de 7 800 km
estamos dando utilidade ao amor
alargando os braços das amendoeiras
alargando os braços dos jacarandás
partindo as inúteis linhas de fronteira
e fazendo do mundo
a gigante floresta».

In Matilde Campilho, Jóquei, Coordenador da colecção Pedro Mexia, Lisboa, Edições Tinta-da-China, 2014, ISBN 978-989-671-213-6.

Cortesia de ETintadaChina/JDACT

O Tesouro do Templo. Eliette Abecassis. «O professor disse-me que um dos fragmentos falava de uma personagem do fim dos tempos, Melquisedec, que o deixara intrigado»

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«(…) Finalmente!, exclamou. Vai ser necessário seguires essa pista, se percebes onde quero chegar... De facto, começo a perceber... Também podes interrogar a filha do professor Ericson. Ela mora no bairro onde tu vivias. O professor Ericson não era judeu, interveio Jane, como se adivinhasse os meus pensamentos, mas a filha dele converteu-se ao judaísmo... Veio falar comigo, esta manhã. Bom, tenho de vos deixar, anunciou Shimon. Até breve, Ary. Avançou alguns passos, parou, voltou-se e acrescentou, com semblante carregado: penso que voltaremos a ver-nos, mais cedo do que julgas. Nesse mesmo instante, o homem que parecia dormitar, em frente da sua tenda, aproximou-se. Dei comigo a pensar se ele ouvira a nossa conversa e se não fingira dormir quando eu e Jane passámos por ele.
Ary, apresento-te Josef Koskka, arqueólogo. É horrível, exclamou Koskka, carregando nos erres e revelando, assim, a sua pronúncia polaca, horrível... Estamos todos... Fiquei muito abalado com o que aconteceu a Peter. Além de meu amigo, era um grande investigador, de renome internacional. Não é verdade, Jane? Ela sentara-se numa rocha. Sim, de facto, é horrível, concordou, num fio de voz. O professor Ericson tinha inimigos?, perguntei. Sem dúvida, respondeu Koskka. Ele recebera ameaças recentemente. Certa noite, foi mesmo vítima de uma emboscada. Quiseram assustá-lo, uns homens que usavam turbante, como os beduínos. E quem eram? Não sei, mas, durante a sua estada aqui, Peter tinha travado amizade com os padres samaritanos de Naplusa, porque desejava estudar a recitação que eles faziam de certas passagens bíblicas. Jane meneou a cabeça tristemente. Anteontem, ele foi até à minha tenda para me dizer que limpara, com a ajuda de um pincel e de uma trolha, algumas peças de cerâmica, que achara na copa de Khirbet Qumran. Entre essas peças havia um jarro, intacto, no interior do qual o professor encontrara fragmentos de um manuscrito. Estava eufórico, como se fosse tirar do jarro um homem, com mais de dois mil anos, que lhe revelaria todos os seus segredos em linguagem arcaica. Jane esboçou um ténue sorriso.
Nunca pensei que este tipo de investigação fosse tão difícil. As condições de sobrevivência são precárias: a água rareia, o calor é intenso e, na maior parte das vezes, não encontramos nada mais do que cacos. Depois, é preciso limpar cada fragmento, tentar reconstituir a peça a que pertence e tirar daí algumas conclusões. É como construir um quebra-cabeças ou deslindar um enigma... Mas dizia que o professor Ericson encontrou fragmentos de um manuscrito num jarro..., atalhou Koskka, mostrando-se, de súbito, muito interessado na conversa. Ah, sim, desculpe... Jane fez uma pausa. Fitei o seu rosto marcado pelo cansaço e pela emoção. Josef Koskka tirou o chapéu e enxugou a testa com um lenço. Gotículas de suor escorriam e seguiam pelos pequenos sulcos abertos pelas rugas que lhe marcavam o rosto. Contei-as: uma, duas, três, dispostas na forma de ZI, tau, a última letra do alfabeto, a da verdade, mas também da morte. Tau representa o fim de uma acção, o futuro tornado presente. É estranho..., comentou Jane. O professor disse-me que um dos fragmentos falava de uma personagem do fim dos tempos, Melquisedec, que o deixara intrigado. Naquela altura, pensei que não era importante, mas, agora... E depois de tudo o que se passou aqui, há tantos anos... Está a referir-se à época em que Jesus viveu perguntou Koskka. Sim... Depois, houve aquelas discórdias, perfeitamente estúpidas, em torno de Jesus e do Mestre de justiça dos essénios...
Mas nós nada temos a ver com isso, rematou Koskka. Procuramos o tesouro do Rolo de Cobre, não o Messias dos essénios. Julgamos, acrescentou Jane, que a soma da prata e do ouro mencionada no rolo ultrapassa os seis mil talentos... É uma quantia astronómica, sem igual, comparada com as riquezas da Palestina daquela época... O equivalente, hoje em dia, a muitos milhões de dólares. Por isso mesmo, esses fragmentos do manuscrito não se volatilizaram!, concluí. Após um breve silêncio, acrescentei: Jane, gostaria de visitar a tenda do professor Ericson. Eu conduzo-te até lá. A tenda era contígua a outra, maior, que servia de refeitório. Tinha apenas uma cama, onde se achavam espalhados alguns dos seus pertences, e uma mesa desdobrável. Havia ainda várias peças de roupa, livros e utensílios diversos dispersos pela tenda, que já devia ter sido revistada pela polícia. Jane avançou com passos hesitantes. Quanto a mim, reparei na reprodução de um fragmento aramaico, em cima da mesa desdobrável. Deve ser este fragmento que o professor Ericson encontrou, murmurou Jane. De que se trata?» In Eliette Abecassis, O Tesouro do Templo, 2001, Círculo de Leitores, ISBN 972-423-086-4, Editora Livros do Brasil, colecção Suores Frios, 2003, ISBN 978-972-382-671-5.

Cortesia de CLeitores/ELBrasil/JDACT

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Coitados. Não viam o bem que esse homem fez ao mundo, um beneficio ainda sentido nos dias de hoje e nos que virão»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Viena vivia os primeiros dias de frio. Os aquecimentos ligavam-se para confortar os corações, tirava-se a roupa quente dos armários, compravam-se os novos agasalhos da moda. Hans gostava de dar os seus passeios diários pela Ringstrasse, alheio à chuva gelada e ao frio cortante, corrompendo o ar com baforadas de vapor quente. Fechava os olhos e sentia a respiração, durante alguns instantes. Deambulava sem destino certo, como a vida. Dizia-se que Freud também os dava e não lhe era difícil compreender a razão. A vida pululava indiferente. Os sorrisos, os gritos, alguém a chamar o nome de alguém, as lojas iluminadas e apelativas. Por vezes passava no Café Schwartzenberg para tomar um café quente e era obrigatório, a certa altura, ir folhear os livros à Thalia e os jornais, se ainda não os tivesse lido. Não encontrou qualquer menção ao seu caso. Não era de admirar, a congregação não publicitava o seu trabalho. Já chegava toda a atenção de que era vítima nas aulas de História, por esse mundo fora, bem como os ataques cerrados de certos historiadores que, de tempos a tempos, se lembravam da chacina, como lhe chamavam, dos massacres dispensáveis, de uma limpeza muito bem planeada. Alguns até embandeiravam em arco exigindo que se retirasse São Domingos da lista oficial dos santos católicos. Coitados. Não viam o bem que esse homem fez ao mundo, um beneficio ainda sentido nos dias de hoje e nos que virão. Endemoninhar o homem que viu mais além e que não se coibiu de mais nada a não ser olhar pelo bem-estar da Santa Madre Igreja e repelir as ameaças. Bem falta fazia nos tempos que correm.
Hans não era tão obtuso. São Paulo, São Tomás de Aquino. Santo Agostinho deviam ser todos despromovidos, juntamente com São Domingos. Cogitava, mas não dizia em voz alta, embora dissesse outras coisas. Era por causa de pessoas assim como São Domingos, que o padre, Hans Schmidt iria ser julgado no Vaticano. Apesar de ter visto as suas funções suspensas, há quase um ano, padre ainda era o termo correcto. É certo que a ele não incomodava que o tratassem por senhor Schmidt em vez de padre Schmidt. A intimação trazia o seu nome completo, Hans Matthaus Schmidt, antecedido pela menção de oficio. A congregação não tinha por hábito eliminar os epítetos anteriores dos acusados. Inocentes até prova em contrário. Apesar de não oficialmente condenado sentia-se como no purgatório onde ainda não sabia se lhe calharia o Céu ou o Inferno. No entanto, sabia que a congregação já escolhera. Nas palavras de alguns historiadores anódinos, em caso de dúvida mandava-se queimar. E hoje em dia havia muitas maneiras de queimar sem fogo, Hans Schmidt fora avisado por familiares e amigos chegados. Cuidado com o que dizes e escreves. Isso pode ter um preço. Candidamente, foram-se afastando, aos poucos, com os seus conselhos evitando a sua presença. Persona non grata talvez fosse um termo demasiado duro, mas o que dizer de alguém que deixou de ser convidado para os círculos sociais e familiares?

A mãe haveria de concordar com ele se fosse viva. Do pai não rezava a história, pelo menos no seu livro. Cresceu sem uma voz masculina permanente nos arredores da capital, em Essling, em plena Segunda Guerra Mundial. Havia desculpa para tudo nessa altura. Não se lembrava desses tempos, ainda bem, mas lembrava-se do Landtmann e de quando o viu com a esposa e os três filhos petizes, num dia em que regressava do seminário, já a guerra ia longe. Que pai dedicado. Não dispensou um único olhar a Hans ou não o conheceu. Limpava os lábios da menina mais nova com ternura, ignorando o mais velho ali, a olhar para ele, fruto de uma outra vida. Já não se recordava como soube que era ele. A mãe haveria de concordar com o que Hans dizia e escrevia, ainda que fosse profundamente católica e devota do bom papa João, que Deus o guardasse e guardava. A Ringstrasse parecia-lhe diferente neste dia. Repleta de vidas, como sempre, mas com nuances diferentes. Ou então seria impressão sua. Passou na frente do Landtmann e deu por si a olhar para o interior como nesse dia longínquo em que viu o pai. Quiçá não estaria ali agora, decrépito, engelhado pelos anos? Nunca mais o viu desde esse regresso do seminário. Também não seria hoje. As mesas estavam quase todas ocupadas, mas ninguém preenchia o requisito. Porventura já dormiria em paz num qualquer cemitério de Viena. Freud haveria de gostar de Hans. Freud haveria de gostar de o analisar, ali, numa das mesas do Landtmann, que frequentava». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

O Triângulo Secreto. Didier Convard. « Vamos sair deste túmulo. Podeis ir na frente, agora? Meus braços estão ocupados com este pacote colado ao meu peito. Naturalmente, você é o soldado que leva a carga, é isso?»

Cortesia de wikipedia e jdact

As Lágrimas do Papa
Os Três Rolos
«(…) Não passo de um modesto peão, Majestade. Um peão no tabuleiro em que reinais. Não precisais vos sobrecarregar com essas pesadas cargas, pois alguns de nós as carregamos por vós. No xadrez, o peão tem de se sacrificar para preservar o rei. E o soldado quem carrega a bagagem, Sire... O soldado! Não o soberano. A lâmina de Renaud desfez todo o cimento que mantinha a pedra na parede. O templário pôde enfiar os dedos nos interstícios e tirar a pedra do lugar em que estava alojada. Afastai-vos, Sire... A pedra caiu no solo lamacento que salpicou as pernas do rei. Renaud mergulhou o braço no buraco que havia feito. Tirou um primeiro rolo de couro costurado com pontos grandes. Eis um deles, murmurou, enfiando novamente o braço e, depois, inclinando-se, revistou o cofre escuro, com repentina agitação. Iluminai-me, Filipe! O rei se inclinou, esticou o braço que segurava a tocha, tentou ver pela abertura da parede. E então?, impacientou-se o soberano. Peguei-os... Sim, eis os outros dois! Nos estojos de couro; sem dúvida, não sofreram com o tempo. Não quer certificar-se?, propôs Filipe. Não é hora nem lugar, Majestade. Seria correr um grande risco retirar esses pergaminhos dos estojos. Devemos fazê-lo conforme as regras, quando retornarmos à França. Conheço quem tem mãos peritas que saberão tratá-los com cuidado.
O rei Filipe não escondeu a decepção: pelo amor de Deus, ter percorrido todo esse caminho e matado essas pobres pessoas para voltar sem ter visto o que contêm estes rolos! Imaginemos que eu morra dessa doença do suor... Não morrereis, Sire. Eu vos disse, nós vos curaremos. Vamos sair deste túmulo. Podeis ir na frente, agora? Meus braços estão ocupados com este pacote colado ao meu peito. Naturalmente, você é o soldado que leva a carga, é isso? E vós sois o meu rei que, agora, segura a luz, Filipe. Isso não é uma parábola que, supostamente, deveria me ensinar? Renaud não respondeu. Limitou-se a sorrir interiormente, apertando contra si os três rolos que havia escondido por baixo da túnica. Ele pensou no homem que encheu os pergaminhos com a sua escrita. Dirigiu a ele uma oração de gratidão, como a um irmão mais velho.

A Doença de Filipe
Durante toda a semana seguinte, o rei Filipe permaneceu na tenda cujas abas de tecido foram cuidadosamente abaixadas; ali, a sombra lutava contra o calor húmido. Os cavaleiros Benoit e Henri guardavam a entrada como simples escudeiros. Ao longo do dia, ficavam sentados no chão e quase não conversavam; à noite, enrolavam-se em grossas cobertas e mal dormiam. Cães fiéis, amigos devotados, sofriam por saber que o mestre estava muito doente, espreitando o menor estertor, todo o tempo questionando Renaud, que administrava a medicação de manhã, à tarde e à noite, auxiliado pelo boticário e por um abade.
O rei Ricardo ficou preocupado com a saúde do monarca francês. No fim da semana, Renaud foi pessoalmente ao acampamento dele dar as informações. Pois bem, me traz boas notícias? Não, Sire! Meu rei emagreceu, perdeu o cabelo e as unhas, bem como o olho direito. Além disso, a pele dele está rachando. Dá muita pena vê-lo nesse estado! Ricardo pareceu sinceramente contrariado. Renaud acrescentou: confesso a minha impotência diante dessa doença e só posso amenizar os sofrimentos com a ajuda de drogas que o fazem adormecer mais do que o curam. Ele fica mais fraco de hora em hora. Às vezes, até delira e fala da defunta esposa e dos gémeos mortos. Se compreendi bem, cavaleiro Renaud, você veio preparar-me... Percebi as suas intenções: ele vai me pedir permissão para voltar para a França? Concordando com um movimento de cabeça, Renaud reforçou: seria, de facto, a melhor decisão a tomar, Sire. Ricardo saiu impetuosamente da tenda. Quero ver por mim mesmo o estado dele. Renaud e o rei Ricardo atravessaram o acampamento em grandes passadas, pulando os corpos dos cruzados que descansavam esticados no chão, entorpecidos pelo calor, esgotados pela recente batalha e pela comida que se seguiu». In Didier Convard, O Triângulo Secreto, As Lágrimas do Papa, Editora Bertrand Brasil, 2012, ISBN 978-852-861-550-0.

Cortesia de EBertrandBrasil/JDACT

A Diplomacia Portuguesa no Reinado de D. Afonso V (1448-1481). Douglas M. Xavier Lima. «Acrescenta-se que o meio académico brasileiro, caracterizado pelo exponencial crescimento da oferta de cursos de graduação e pós-graduação em relações internacionais…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Com a devida vénia ao Doutor Douglas Xavier Lima

«(…) Como ponto de partida, observa-se que a antiguidade e o mundo moderno, tal como o medievo, também constituem temporalidades pouco privilegiadas pelas pesquisas da área, ocupando apenas um lugar introdutório na composição da História da Diplomacia e da formação das Relações Internacionais. Lucien Bély, ao analisar o cenário académico francês, discute a desconfiança lançada sobre aqueles que se inclinam a estudar as relações internacionais entre os séculos XV e XVII, assim como o lugar modesto ocupado pelos estudos. Acredita-se que tal facto ocorre por duas vias, tanto pela orientação das relações internacionais para o cenário contemporâneo, como pelo afastamento dos historiadores da temática. Acrescenta-se que o meio académico brasileiro, caracterizado pelo exponencial crescimento da oferta de cursos de graduação e pós-graduação em relações internacionais, tem contribuído para esse quadro que concentra a área nos desafios da contemporaneidade. A fim de caracterizar os caminhos que levaram às vias indicadas, passa-se a algumas considerações acerca do desenvolvimento da produção na área, destacando, em primeiro lugar, a constituição das Relações Internacionais. A formação do campo de estudos da História Diplomática, área preocupada com a exposição e a explicação das relações entre Estados mediante a sua expressão política, tem as suas raízes nos séculos XVIII e XIX, o que não exclui a importância de obras anteriores ligadas à delimitação dos grandes feitos externos e militares dos reinos. No entanto, foi na sociedade oitocentista que se observou a ampliação dos interesses de reconstituição das histórias nacionais. Esse processo também se observa na História com a história metódica, pois a produção historiográfica do período foi marcada pela construção do Estado-nação e pelo estabelecimento das tradições nacionais. Paralelas à constituição da própria disciplina, tais inclinações colocaram a área na busca de critérios de cientificidade, e nesse processo o foco dos historiadores direccionou-se ao estabelecimento de factos, cronologias e no levantamento de documentos seguros que pudessem compor a história nacional, ou mesmo a recomposição de grandes batalhas, tratados e estadistas.
Em meio a essas orientações e fundando-se no conhecimento amplo de textos e fontes oficiais, assim como na publicação de colecções documentais, o campo da História Diplomática consolidou-se com o pioneiro trabalho de Gaëtan Flassan, Histoire générale et raisonnée de la diplomatie française depuis la fondation de la Monarchie jusqu' à la fin du règime de Louis XVI, publicado em sete volumes no início do século XVIII. Do mesmo período destacam-se ainda as obras: Foedera, conventiones, literae et cujuscumque generis acta publica inter reges Anglae et alios quosvis imperatores, reges, pontífices, principes, vel communitates, de Thomas Rymer, publicada entre 1704 e 1717; e Recueil des principaux traités d’alliance, de paix, de trêve, de neutralité, de commerce, de limites, l’Echange etc., conclus par les puissances de l’Europe tant entre eles qu’avec les puissances et États dans d’autres parties du monde depuis de 1761 jusqu’à présent, do jurista Georg Friedrich von Martens, publicada entre 1791 e 1801. Não obstante, como argumenta Jean Thobie, foi com a Revue d'Histoire diplomatique, fundada em 1887 e ligada à Sociedade de História Diplomática, que se formou a História Diplomática científica. No bojo desse movimento se inserem as obras Quadro Elementar das Relações Políticas e Diplomáticas de Portugal com as diversas potencias do mundo desde o principio da Monarchia portugueza até os nossos dias, de visconde de Santarém, redigida em Paris em meados do século XIX; Collecção dos tratados, convenções, contratos e actos públicos celebrados entre a coroa de Portugal e as mais potencias desde 1640 até o presente, coordenada por José Ferreira Borges Castro; e Corpo diplomático português contendo os actos e relações políticas e diplomáticas com as diversas potências do mundo, desde o século XVI até os nossos dias, de Luís Augusto Rebelo Silva, publicada em 15 volumes entre 1862 e 1936. Elas expressam as preocupações historiográficas do período e permanecem um marco na academia portuguesa, constituindo um relevante fundo documental para os medievalistas e modernistas do século XXI. Porém, mesmo com a destacada importância essas obras monumentais não deixaram de ser alvo de críticas coetâneas e, como sublinha José Amado Mendes, historiadores portugueses como António Ferrão discutiam a falta de explicações teórico-interpretativas e de abordagens temáticas em tais obras». In Douglas M. Xavier Lima, A Diplomacia Portuguesa no Reinado de D. Afonso V (1448-1481), Tese de Doutoramento História Medieval, Universidade Federal Fluminense, Departamento de História, Niterói, 2016.

Cortesia de UFFluminense/DHistória/JDACT

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Poesia. Matilde Campilho. «Aquele que pinta a natureza, o ladrão de ossos, sabe que deve empreender seu trabalho em posição horizontal, de corpo muito junto ao chão»

Cortesia e wikipedia e jdact

Explicação do sopro
«Século XXI. Certos homens se fecham em quartos de hotel
porque nos lugares anónimos é muito possível ficar encosta-
do numa parede branca vendo a água correr no chão do chu-
veiro. Dois rapazinhos pegam as bicicletas e pedalam quatro-
centos e vinte quilómetros até achar a costa. Ao alcançá-la,
tiram suas roupas e não mergulham: só encostam a zona lom-
bar na areia e repetem até ao infinito a ladainha da tabuada
do sete. Um bombeiro termina seu turno de vinte e quatro
horas e entra no boteco junto à estátua de São Tarso. Pede um
conjunto de sete pães de queijo e nos espaços entre cada um
dos pães ele fica procurando por algum pedaço da túnica de
Deus. O motorista do ônibus sabe perfeitamente que dentro
da mala da senhora de rosto limpo tem uma caixa de jóias
que contém uma caixa de medicamentos que contém uma
caixa de anel que contém uma bala. O tocador de kalimba
está muito consciente de que hoje o mantra nasce da mistura
de um cântico de procissão com o latir do cachorro, e está
consciente também de que todo o desenho acha sua acústica
perfeita nas pequenas eremitas. Aquele que pinta a natureza,
o ladrão de ossos, sabe que deve empreender seu trabalho em
posição horizontal, de corpo muito junto ao chão. E se por
acaso o observarmos no processo por mais de sete minutos,
podemos reparar que sua caixa torácica constantemente toca
a tela, sempre na mesma cadência. A moça de vinte e sete
anos ainda está sentada ao toucador, de frente para o próprio
rosto, absolutamente indecisa sobre qual dos objetos esco-
lher. Entre o batom alaranjado, a carabina calibre 12, o pó
de arroz e o crucifixo em miniatura vai uma distância de dois
passos a galope».

In Matilde Campilho, Jóquei, Coordenador da colecção Pedro Mexia, Lisboa, Edições Tinta-da-China, 2014, ISBN 978-989-671-213-6.

Cortesia de ETintadaChina/JDACT