quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Os Cadernos de dom Rigoberto. Mario Vargas Llosa. «Mas nem sequer agora arrebatou a Fonchito os afilados dedos que ele, estremecido pelos soluços, continuava beijando. O senhor tem de ir embora, menino Alfonso, disse a empregada»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Retorno de Fonchito
«Chamaram à porta, dona Lucrécia foi abrir e viu emoldurada no vão, sobre o fundo das árvores retorcidas e grisalhas do Olivar de San Isidro, a cabeça de cachos dourados e os olhos azuis de Fonchito. Tudo começou a girar. Estava com muita saudade, madrasta, entoou a voz que ela recordava tão bem. Continua aborrecida comigo? Vim pedir perdão. Me perdoa? Você, você? Agarrada à maçaneta, dona Lucrécia buscava apoio na parede. Não tem vergonha de se apresentar aqui? Escapuli da academia, insistiu o menino, mostrando o seu caderno de desenho e os seus lápis de cor. Estava com muita saudade, sério. Por que você ficou tão pálida? Meu Deus, meu Deus, cambaleou dona Lucrécia, deixando-se cair no banco imitação de colonial, contíguo à porta. Cobria os olhos, branca como um papel. Não morra!, gritou o menino, assustado. E dona Lucrécia, sentindo-se desfalecer, viu a figurinha infantil transpor o umbral, fechar a porta, cair de joelhos aos seus pés, pegar as suas mãos e massajá-las, com expressão aturdida: não morra, não desmaie, por favor. Fez um esforço para se dominar e recuperar o controle. Respirou fundo, antes de falar. E o fez devagar, sentindo que a qualquer momento a sua voz se embargaria: não foi nada, já estou bem. Vê-lo aqui era a última coisa que eu esperava. Como se atreve? Não tem remorso? Sempre de joelhos, Fonchito tentava  beijar-lhe a mão. Diga que me perdoa, madrasta, implorou. Diga, diga. A casa não é mais a mesma desde que você foi embora. Vim espiá-la um monte de vezes, na saída da aula. Queria tocar, mas não me atrevia. Nunca me vai perdoar? Nunca, respondeu ela, com firmeza. Nunca perdoarei o que você fez, malvado. Mas, contradizendo as próprias palavras, os seus grandes olhos escuros reconheciam com curiosidade e certa complacência, talvez até com ternura, a encaracolada desordem daquela cabeleira, as veiazinhas azuis do pescoço, as bordas das orelhas assomando entre as mechas louras, o corpinho gracioso, embutido no casaco azul e na calça cinza do uniforme. As suas narinas aspiravam aquele odor adolescente de partidas de futebol, de caramelos frutados e sorvetes d’Onofrio, e seus ouvidos reconheciam aqueles guinchos agudos e as mudanças de voz, que ressoavam também na sua memória. As mãos de dona Lucrécia se resignaram aos molhados beijos de passarinho daquela boquinha: gosto muito de você, madrasta, disse Fonchito, fazendo beicinho. E, mesmo que você não acredite, o pai também. Nisto apareceu Justiniana, ágil silhueta cor de canela envolta num avental florido, lenço na cabeça e espanador na mão. Ficou petrificada no corredor que levava à cozinha. Menino Alfonso, murmurou, incrédula. Fonchito! Não posso acreditar! Imagine, imagine!, exclamou dona Lucrécia, empenhada em mostrar uma indignação superior à que sentia. Atreve-se a vir a esta casa. Depois de arruinar a minha vida, de dar aquela punhalada em Rigoberto. Pedindo que eu o perdoe, derramando lágrimas de crocodilo. Já viu desfaçatez igual, Justiniana?
Mas nem sequer agora arrebatou a Fonchito os afilados dedos que ele, estremecido pelos soluços, continuava beijando. O senhor tem de ir embora, menino Alfonso, disse a empregada, tão confusa que, sem perceber, mudou o tratamento habitual: você não vê como deixou a patroa amofinada? Saia, vá, Fonchito. Eu vou se ela disser que me perdoa, rogou o menino, entre suspiros, a cara nas mãos de dona Lucrécia. Nem sequer me cumprimenta e já começa me insultando, Justita? O que eu lhe fiz? Pois se eu também gosto muito de você, se chorei a noite inteira no dia em que você foi embora lá de casa! Cale a boca, mentiroso, não acredito nem um tiquinho. Justiniana alisava os cabelos de dona Lucrécia. Trago um lencinho com álcool, patroa? Prefiro um copo d’água. Não se preocupe, já estou melhor. Ver este melequento aqui me transtornou toda. E por fim, sem brusquidão, retirou as suas mãos das de Fonchito. O menino continuava aos seus pés, já sem chorar, contendo a duras penas novos beicinhos. Tinha os olhos vermelhos e as lágrimas lhe haviam marcado sulcos nas bochechas. Um fio de saliva pendia da sua boca. Através da neblina que lhe velava os olhos, dona Lucrécia espiou o nariz de linhas finas, os lábios bem desenhados, o queixinho altivo e a sua covinha, os dentes tão brancos. Teve vontade de o esbofetear, de agadanhar aquela carinha de Menino Jesus. Hipócrita! Judas! E até de mordê-lo no pescoço e de lhe chupar o sangue, como um vampiro. Seu pai sabe que veio aqui? Que ideia, madrasta, respondeu no acto o menino, num tonzinho confidencial. Sabe lá o que ele me faria? Nunca fala de você, mas eu sei muito bem que tem saudade. Não pensa noutra coisa, dia e noite, juro. Vim escondido, escapuli da academia. Vou três vezes por semana, depois do colégio. Quer que eu lhe mostre osmeus desenhos? Diga que me perdoa, madrasta». In Mario Vargas Llosa, Os Cadernos de dom Rigoberto, 1997, Edição dom Quixote, 2010, ISBN 978-972-204-385-4.

Cortesia EdQuixote/JDACT