quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Claraboia. José Saramago. «Não façam barulho. Bem sabem que não gosto de perturbar o sono da vizinhança, murmurou Anselmo. Subia a escada, levando atrás de si a mulher e a filha, e iluminava o caminho acendendo fósforos»

jdact

«(…) Agora sim. Fechava como devia, com uma esperança, com uma pequena alegria. Fazia questão de não ser completamente sincera no seu diário, quando os acontecimentos do dia a levassem ao desânimo e à tristeza. Releu o que escrevera e fechou o caderno. Trouxera do quarto a camisa de dormir, uma camisa branca, afogada, sem decote, com as mangas compridas, porque as noites ainda estavam frescas. Despiu-se rapidamente. O seu corpo deselegante, liberto do constrangimento do vestuário, soltou-se e ficou mais pesado e irregular. O soutien-gorge vincava-lhe as costas. Quando o tirou, um vergão vermelho ficou a rodear-lhe o corpo como a marca de uma chicotada. Enfiou a camisa e, depois de completar o arranjo nocturno, foi para o quarto. Isaura não largava o livro. Tinha o braço livre curvado sobre a cabeça, e a posição deixava-lhe visível a axila enegrecida e o começo dos seios. Absorta na leitura, nem se mexeu quando a irmã se deitou. Já é tarde, Isaura. Deixa isso, murmurou Adriana. Já vai!, respondeu, impaciente. Não tenho culpa de que não gostes de ler. Adriana encolheu os ombros, num movimento que lhe era peculiar. Voltou as costas à irmã, puxou a roupa para cima de modo a evitar que a luz lhe batesse nos olhos e daí a pouco adormecia. Isaura continuou a ler. Tinha que acabar o livro nessa noite porque o prazo do aluguer acabava no dia seguinte. Era perto da uma hora quando chegou ao fim. Ardiam-lhe os olhos e tinha o cérebro excitado. Pôs o livro na mesa de cabeceira e apagou a luz. A irmã dormia. Ouvia-lhe a respiração ritmada e regular, e teve um movimento de mau humor. No seu entender, Adriana era de gelo, e aquele diário uma criancice para fazer acreditar que tinha mistérios na sua vida. No quarto havia uma ténue luminosidade proveniente de um candeeiro da rua. Ouvia-se no escuro o roer de um inseto da madeira. Do quarto ao lado vieram vozes abafadas: tia Amélia sonhava alto. Todo o prédio dormia. De olhos abertos para a noite, as mãos cruzadas atrás da cabeça, Isaura pensava.

Não façam barulho. Bem sabem que não gosto de perturbar o sono da vizinhança, murmurou Anselmo. Subia a escada, levando atrás de si a mulher e a filha, e iluminava o caminho acendendo fósforos. Distraído com as recomendações, deixou-se queimar. Soltou uma interjeição involuntária e riscou novo fósforo. Maria Cláudia sufocava de riso. A mãe ralhou em voz baixa: então, menina, que propósitos são esses? Chegavam a casa. Entraram com cautela, como gatunos. Mal chegaram à cozinha, Rosália sentou-se num banco: ai, que cansada! Descalçou os sapatos e as meias e mostrou os pés inchados: olhem para isto!... Tens albumina, é o que é, declarou o marido. Credo!, sorriu Maria Cláudia. O pai não faz a coisa por menos. Se o teu pai diz que tenho albumina, é porque é verdade, replicou a mãe. Anselmo acenou a cabeça com gravidade. Fixava atentamente os pés da mulher e da observação tirava novas razões para o diagnóstico: é o que eu digo...
O pequeno rosto de Maria Cláudia franziu-se de desgosto. Aquele espectáculo dos pés da mãe, a possível doença aborreciam-na. Tudo que fosse feio a aborrecia. Mais para se furtar à conversa do que por amor do trabalho, tirou três chávenas do armário e encheu-as de chá. Deixavam sempre o termo cheio, para o regresso. Aqueles cinco minutos dedicados à pequena refeição davam-lhes uma sensação toda particular, como se de repente tivessem deixado a mediocridade da sua vida para subir uns furos na escala do bem-estar económico». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.
                                                                                                                             
Cortesia ECaminho/JDACT