sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O Pavilhão Púrpura. José Rodrigues dos Santos. «Já na outra extremidade da Europa a ditadura pertencia ao proletariado, ou pelo menos era o que os ditadores comunistas alegavam. Lenine tinha morrido e Stalin preparava-se para pôr de lado…»

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«(…) Doutor Lobo, tenho de lhe dar os parabéns!, diz ele com um enorme sorriso na cara. O senhor está curado! Esta afirmação é feita no tom de quem celebra um golo de Portugal na final do Mundial, claro. Não sei como, por vezes milagres destes acontecem, mas o facto é que o tratamento funcionou melhor do que se esperava e a sua doença desapareceu! Está curado! Levanto-me e abraço-o, dou pinotes de alegria, estou curado!, estou curado!, a vida é bela e este hospital é maravilhoso! Os enfermeiros e os outros pacientes ouvem os gritos e vêm ter comigo, parabéns, doutor Lobo!, dizem uns, o senhor merece!, acrescentam outros, e eu a todos abraço e com todos festejo a boa nova: a doença desapareceu e estou enfim curado, Portugal pode não ter ganho o Mundial mas eu ganhei o meu campeonato. Depois saio dali e vou beber uns copos ao Hotel Lisboa. Se não fosse tão velho até ia ver as tailandesas do Jai Alai, e porque não ir vê-las mesmo com esta idade? No fim de contas estou a sonhar e nos sonhos permitimo-nos tudo, não é verdade? Ah, sonhos…
A realidade, todos o sabemos, não se compadece com os nossos desejos e quando estas fantasias reconfortantes acabam temos sempre de voltar a ela. As coisas são como são, não como queremos que sejam. Carrego esta doença comigo e ela não se irá embora só porque o quero ou por quaisquer artes mágicas. Apesar de todas as esperanças que os meus sonhos acalentam, sei no meu âmago que a doença me matará. Por isso a minha vida tornou-se uma dança estranha e desgastante entre sonho e realidade. Nuns momentos fantasio com a cura e noutros caio em mim, enfrento a realidade e assumo que estou a chegar ao fim da linha. A gangrena avança cá dentro e com ela me levará, não há nada que eu possa fazer a não ser resignar-me ao que o destino já me reservou. A terrível verdade, aquela que sempre soube sem na verdade o saber, é que não sou imortal. Hoje, porém, e depois de ouvir a notícia que o doutor Évora me deu, sinto-me aliviado. Não tenho um mês de vida pela frente, mas sete. Sei que em breve voltarei a sentir-me obcecado com este problema, que retomarei a terrível contagem decrescente, que o insuportável peso da morte me assentará de novo sobre os ombros e que no final a terrível realidade acabará mais uma vez por se impor ao doce sonho. Neste momento, contudo, quero sentir-me alegre e fruir a minha efémera felicidade. Vou viver mais do que esperava e isso, consideradas as minhas penosas circunstâncias, é uma bênção.
Além disso, sinto-me melhor. Não sei se foi da boa nova ou se é do tratamento, mas o facto é que a boa disposição regressou e voltei a ter forças e a sentir ânimo. É por isso que estou agora sentado à minha secretária a redigir estas palavras. Estive um mês parado, sem vontade nem alento para rabiscar uma linha que fosse. A história da Nadija, do Artur, da Lian-hua e do Fukui, queridos amigos que tanto me marcaram, flores de lótus que com gestos simples honraram a humanidade neste mundo conspurcado de lama, reduzir-se-ia à narrativa do que lhes aconteceu na primeira parte das suas vidas, que deixei inscrita nas páginas de As Flores de Lótus. As forças faltavam-me e a história estava condenada a ficar por aí.
O alento, todavia, voltou quando menos esperava. Acredito, não me perguntem como nem porquê, que a Providência me concedeu estes meses suplementares com um propósito definido. E que propósito poderá ser esse senão terminar o que em boa hora comecei? É por isso que aqui estou de novo, de cara lavada e ânimo renovado, animado pela determinação férrea de contar o que se passou com aquelas quatro pessoas que tão importantes foram para mim. É isso o que quero fazer e é isso o que farei. Recordará, que o livro precedente nos deixou em suspenso quando os acontecimentos cristalizaram um virar de página da história do século XX, numa altura em que, no rescaldo do desastre da Primeira Guerra Mundial, as grandes tendências ditatoriais da década de 1920 se começaram a definir. Na ponta ocidental da Europa a revolução do 28 de Maio de 1926 trouxera a ditadura para Portugal e o meu amigo Artur, então um jovem tenente a quem a mulher, Catarina, ainda não conseguira dar filhos, viu-se inesperadamente no epicentro dos acontecimentos. Coube-lhe a missão de convencer o doutor Oliveira Salazar a assumir a pasta das Finanças num período de absoluto descrédito da democracia e da República.
Já na outra extremidade da Europa a ditadura pertencia ao proletariado, ou pelo menos era o que os ditadores comunistas alegavam. Lenine tinha morrido e Stalin preparava-se para pôr de lado o breve regresso à economia de mercado encetado pela Nova Política Económica para avançar, ou recuar, para o comunismo puro e duro, com as requisições forçadas e a colectivização das terras. A minha Nadija era então apenas uma criança, mas a família regressara à Ucrânia para viver na pequena propriedade que o pai herdara. Como se iriam dar com a experiência política, social e económica então em curso? Poderia o comunismo funcionar?» In José Rodrigues dos Santos, O Pavilhão Púrpura, Gradiva, 2016, ISBN 978-989-616-709-7.

Cortesia de Gradiva/JDACT