quarta-feira, 13 de novembro de 2019

A Rosa dos Ventos. Materiais para uma Opereta sem Música. Gonzalo Torrente. «… pressagiam alterações e prodígios, são como os rumores da terra que precedem o terramoto, segundo dizem, eu nunca os vi nem os ouvi»

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«(…) O que vos quero dizer, porque o descobri, é que o mundo dos vossos mortos está alterado, estão inquietos e celebram assembleias e todo o tipo de reuniões, mas ignoro ainda por que motivos e com que fim. Há dois meses que venho escutando as tumbas dos vossos antepassados, tanto os sepulcros novos das catedrais como os velhos e vazios do destruído Mosteiro de Santo Mauro e posso assegurar-vos que, na sua inquietação de mortos sérios, se remexem que, através do silêncio e da distância, se falam, há vozes que se ouvem como colóquios remotos e não se pode entender o que dizem, de tão distantes, de tão fundo. As vozes dos mortos pressagiam alterações e prodígios, são como os rumores da terra que precedem o terramoto, segundo dizem, eu nunca os vi nem os ouvi.
Sereníssima Alteza, sonhei que a Torre de Menagem caía e recobrava em seguida o seu aprumo e sonhei que um barco se afundava e emergia meia milha mais adiante, sem que parecesse ter-se afogado ninguém da tripulação, sem que os guardas da Torre tenham sofrido qualquer dano. São avisos, senhor, estes sonhos, não sei se do Inferno, isso não está esclarecido. Sereníssima Alteza, isto não é tudo, é só o princípio. O mundo da Verdade dormia. Agora, de repente, desperta e estes são alguns sintomas. Porque será, senhor? Os avisos que meu avô revelou ao vosso precederam a chegada de Napoleão. Que anunciam agora as vozes, as sacudidelas, os alvoroços dos mortos? Espero que, daqui a algum tempo, ambos cheguemos a sabê-lo. Vesti a horrorosa sobrecasaca cor de tabaco para assistir no domingo aos ofícios: de bom grado lhe teria acrescentado um cartaz nas costas no qual, com letras bem visíveis, teria escrito:

Para mim não é segredo, meu amigo.
O que vai acontecer é que o meu primo me vai derrubar do trono, nem mais, nem menos.

Não seria decoroso, ainda que conveniente. Quanto à sobrecasaca, vesti-a, contudo, porque, assim, o misterioso informador ia-me mantendo a par de todos os prodígios que via por sua conta e deixava-me tempo livre para as minhas vulgaridades. Admirável servidor, espelho de súbditos leais e de videntes! Foi pena a sua insistência no anonimato. Foi assim que fiquei a saber, quando ainda era grão-duque, das cavalgadas nocturnas dos meus mortos. Agora que estou destronado, vejo os que regressam do mar. E falarei deles.

Será conveniente que apresente, também, ao comandante dos meus exércitos, o meu amigo Fritz, barão de Cronstadt por concessão do czar Pedro I a um antepassado seu. Não sei qual dos meus avós autorizou a família dele a usar o título no meu país. Em sociedade, chamavam-lhe Cronstadt; no quartel, comandante; no meu palácio, simplesmente, Fritz». In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.

Cortesia de Difel/JDACT