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1888. Barcelona. Port Vell. Perto do
cais de Lazareto
«(…) O rapaz correu pela coberta
e puxou o pano que tapava a lanterna. A luz mostrou uma criatura que flutuava
junto à caixa, agarrada às cordas para se manter à superfície. O rosto, onde
dois buracos negros ocupavam o lugar dos olhos, contorceu-se numa careta
grotesca quando tentou falar mas, em vez de palavras, da boca saiu um balbucio
ininteligível, seguido por um gemido. Não parecia capaz de aguentar muito mais
tempo o embate das ondas. Ao cabo de um instante de hesitação, o velho ordenou
ao filho: mantém a caixa quieta. O rapaz não se mexeu. Lívido, não conseguia
desviar os olhos do monstro. Nesse instante, uma nova onda voltou a afastá-los.
Raios, filho! Pai, tem..., tem a certeza? A caixa começava a afundar-se. Vinga!
O rapaz tornou a pegar no croque
e, cravando o gancho na madeira da caixa, segurou-a contra o costado da barca.
Entretanto o pai, firmando as pernas debaixo do banco, agarrou com ambas as mãos
o braço que a criatura lhe estendia. O contacto era frio e escorregadio. O
velho fechou os olhos, encheu o peito de ar e puxou com força. A criatura rolou
pela coberta até ficar deitada de costas. Em vez de uma cauda de peixe, como o
velho esperava, tinha pernas. Estava nua, não tinha pêlos e a pele era tão
branca que parecia transparente. No ventre destacavam-se os bordos enegrecidos
de uma ferida terrível. Fez lembrar ao rapaz os peixes escamados no mercado. O
velho aproximou-se com cuidado, inclinou-se e tacteou aquele torso, a tentar
encontrar algum sinal de vida. Estremeceu ao reparar nas outras feridas que se
cruzavam no peito. Pressionou ao de leve e a sua mão enterrou-se na carne como
em manteiga. Um cheiro nauseabundo emanou do interior. O velho afastou-se aos
tropeções até cair contra as caixas de tabaco, mal conseguindo controlar o horror.
O filho apressou-se a ajudá-lo e, agarrados um ao outro, observaram a
maltratada figura imóvel.
Pai..., o que içámos para a
barca? Tão certo como Cristo ser Deus, não faço a mais pequena ideia. De
repente, o corpo da criatura foi iluminado por um clarão que traçou por baixo
da pele um desenho semelhante aos ramos de uma árvore. Depois de piscar por um
instante, a luz desapareceu tal como tinha aparecido. Pai e filho benzeram-se
ao mesmo tempo.
Regresso
É tudo, meus senhores.
O barulho dos bancos arrastados
quebrou o silêncio da sala. Na tribuna, o jovem professor juntou os seus papéis
e guardou-os na pasta enquanto observava o desfile dos estudantes a caminho da
porta. Bem queria manter a seriedade, mas o sorriso traía-o. Acabava de
concluir a sua segunda semana de aulas na universidade, a mesma onde se formara
poucos meses antes. Aproximou-se de uma das grandes janelas. Lá fora, nuvens
escuras cobriam o céu mas, ao contrário de outros dias, aquele manto cinzento não
diminuiu a felicidade que sentia. Percorrera um longo e tortuoso caminho para
chegar àquele púlpito e, por todos os deuses, merecera-o! Passou o olhar pelos
edifícios do campus. Preparava-se para deixar escapar um suspiro de satisfação
quando ouviu uma voz chamá-lo: professor Amat! Voltou-se. Um estudante
esperava, à porta da sala. Sim? Desculpe, professor, sir Edward mandou-me
chamá-lo. Vou já. Que bem soava. Professor. Professor e membro do Magdalene
College, um dos mais prestigiados colégios da Universidade de Oxford.
A substituir o doutor Brown,
infelizmente achacado pela gota, mas isso em nada diminuía a importância do
facto. Não tardaria a conseguir o seu lugar. A oportunidade já se apresentara e
não tencionava deixá-la escapar. Recolheu as suas coisas e saiu da sala onde
passaria o trimestre a dar aulas de grego. No corredor, notou os olhares que o
seguiam. Os alunos ainda o olhavam com curiosidade. Quando saiu do edifício
ajustou a toga. A chuva, acompanhada por um vento gelado, varria o campus. Apesar
de Abril chegar ao fim, os dias continuavam frios. Seguiu o caminho de terra
com passos rápidos, consciente do rumor que vinha do interior das salas de aula
e se espalhava por todo o college. O ano lectivo estava no seu apogeu.
Deixou à direita a capela onde o coro ensaiava e passou pelo pórtico que dava
acesso a um pátio rodeado por edifícios cobertos de hera. Sem hesitar virou
para o caminho de saibro que atravessava o canteiro em diagonal. Estava a ficar
encharcado, mas não se importou. Sentia-se tão bem que só tinha vontade de
saltar.
Walter
abriu-lhe a porta ao vê-lo aproximar-se. O velho era uma autêntica instituição
no colégio. Os estudantes diziam que desempenhava as funções de porteiro desde
a fundação da universidade, o que era muito improvável tendo em conta que isso
acontecera quatrocentos anos antes. No entanto, aquele corpo engelhado como uma
passa e o rosto deformado por inúmeras e fundas rugas faziam-no por vezes
perguntar-se se o rumor não teria um fundo de verdade. O velho era bem
conhecido pelas suas traficâncias; conseguia arranjar tabaco, bebidas ou fosse
o que fosse, pelo preço adequado. Claro que o colégio proibia estas
transacções, pelo que o negócio de Walter prosperava. Senhor Amat... Oh, perdão.
O seu meio sorriso traiu-o. Profesor Amat... Daniel inclinou a cabeça e
cumprimentou-o por sua vez. Sabia que apesar de o considerar um maldito
estrangeiro, como lhe chamara da primeira vez que o vira, o velho gostava dele.
Senhor Walter, como está esta manhã?» In Jordi LLobregat, O Segredo de Versálio,
2014/2015, Planeta Manuscrito, 2016, ISBN 978-989-657-874-9.
Cortesia de
PlanetaManuscrito/JDACT