sábado, 16 de novembro de 2019

O Segredo de Versálio. Jordi LLobregat. «Pai..., o que içámos para a barca? Tão certo como Cristo ser Deus, não faço a mais pequena ideia. De repente, o corpo da criatura foi iluminado…»

jdact

1888. Barcelona. Port Vell. Perto do cais de Lazareto
«(…) O rapaz correu pela coberta e puxou o pano que tapava a lanterna. A luz mostrou uma criatura que flutuava junto à caixa, agarrada às cordas para se manter à superfície. O rosto, onde dois buracos negros ocupavam o lugar dos olhos, contorceu-se numa careta grotesca quando tentou falar mas, em vez de palavras, da boca saiu um balbucio ininteligível, seguido por um gemido. Não parecia capaz de aguentar muito mais tempo o embate das ondas. Ao cabo de um instante de hesitação, o velho ordenou ao filho: mantém a caixa quieta. O rapaz não se mexeu. Lívido, não conseguia desviar os olhos do monstro. Nesse instante, uma nova onda voltou a afastá-los. Raios, filho! Pai, tem..., tem a certeza? A caixa começava a afundar-se. Vinga!
O rapaz tornou a pegar no croque e, cravando o gancho na madeira da caixa, segurou-a contra o costado da barca. Entretanto o pai, firmando as pernas debaixo do banco, agarrou com ambas as mãos o braço que a criatura lhe estendia. O contacto era frio e escorregadio. O velho fechou os olhos, encheu o peito de ar e puxou com força. A criatura rolou pela coberta até ficar deitada de costas. Em vez de uma cauda de peixe, como o velho esperava, tinha pernas. Estava nua, não tinha pêlos e a pele era tão branca que parecia transparente. No ventre destacavam-se os bordos enegrecidos de uma ferida terrível. Fez lembrar ao rapaz os peixes escamados no mercado. O velho aproximou-se com cuidado, inclinou-se e tacteou aquele torso, a tentar encontrar algum sinal de vida. Estremeceu ao reparar nas outras feridas que se cruzavam no peito. Pressionou ao de leve e a sua mão enterrou-se na carne como em manteiga. Um cheiro nauseabundo emanou do interior. O velho afastou-se aos tropeções até cair contra as caixas de tabaco, mal conseguindo controlar o horror. O filho apressou-se a ajudá-lo e, agarrados um ao outro, observaram a maltratada figura imóvel.
Pai..., o que içámos para a barca? Tão certo como Cristo ser Deus, não faço a mais pequena ideia. De repente, o corpo da criatura foi iluminado por um clarão que traçou por baixo da pele um desenho semelhante aos ramos de uma árvore. Depois de piscar por um instante, a luz desapareceu tal como tinha aparecido. Pai e filho benzeram-se ao mesmo tempo.

Regresso
É tudo, meus senhores.
O barulho dos bancos arrastados quebrou o silêncio da sala. Na tribuna, o jovem professor juntou os seus papéis e guardou-os na pasta enquanto observava o desfile dos estudantes a caminho da porta. Bem queria manter a seriedade, mas o sorriso traía-o. Acabava de concluir a sua segunda semana de aulas na universidade, a mesma onde se formara poucos meses antes. Aproximou-se de uma das grandes janelas. Lá fora, nuvens escuras cobriam o céu mas, ao contrário de outros dias, aquele manto cinzento não diminuiu a felicidade que sentia. Percorrera um longo e tortuoso caminho para chegar àquele púlpito e, por todos os deuses, merecera-o! Passou o olhar pelos edifícios do campus. Preparava-se para deixar escapar um suspiro de satisfação quando ouviu uma voz chamá-lo: professor Amat! Voltou-se. Um estudante esperava, à porta da sala. Sim? Desculpe, professor, sir Edward mandou-me chamá-lo. Vou já. Que bem soava. Professor. Professor e membro do Magdalene College, um dos mais prestigiados colégios da Universidade de Oxford.
A substituir o doutor Brown, infelizmente achacado pela gota, mas isso em nada diminuía a importância do facto. Não tardaria a conseguir o seu lugar. A oportunidade já se apresentara e não tencionava deixá-la escapar. Recolheu as suas coisas e saiu da sala onde passaria o trimestre a dar aulas de grego. No corredor, notou os olhares que o seguiam. Os alunos ainda o olhavam com curiosidade. Quando saiu do edifício ajustou a toga. A chuva, acompanhada por um vento gelado, varria o campus. Apesar de Abril chegar ao fim, os dias continuavam frios. Seguiu o caminho de terra com passos rápidos, consciente do rumor que vinha do interior das salas de aula e se espalhava por todo o college. O ano lectivo estava no seu apogeu. Deixou à direita a capela onde o coro ensaiava e passou pelo pórtico que dava acesso a um pátio rodeado por edifícios cobertos de hera. Sem hesitar virou para o caminho de saibro que atravessava o canteiro em diagonal. Estava a ficar encharcado, mas não se importou. Sentia-se tão bem que só tinha vontade de saltar.
Walter abriu-lhe a porta ao vê-lo aproximar-se. O velho era uma autêntica instituição no colégio. Os estudantes diziam que desempenhava as funções de porteiro desde a fundação da universidade, o que era muito improvável tendo em conta que isso acontecera quatrocentos anos antes. No entanto, aquele corpo engelhado como uma passa e o rosto deformado por inúmeras e fundas rugas faziam-no por vezes perguntar-se se o rumor não teria um fundo de verdade. O velho era bem conhecido pelas suas traficâncias; conseguia arranjar tabaco, bebidas ou fosse o que fosse, pelo preço adequado. Claro que o colégio proibia estas transacções, pelo que o negócio de Walter prosperava. Senhor Amat... Oh, perdão. O seu meio sorriso traiu-o. Profesor Amat... Daniel inclinou a cabeça e cumprimentou-o por sua vez. Sabia que apesar de o considerar um maldito estrangeiro, como lhe chamara da primeira vez que o vira, o velho gostava dele. Senhor Walter, como está esta manhã?» In Jordi LLobregat, O Segredo de Versálio, 2014/2015, Planeta Manuscrito, 2016, ISBN 978-989-657-874-9.

Cortesia de PlanetaManuscrito/JDACT