terça-feira, 12 de novembro de 2019

Amantes de Buenos Aires. Alberto S. Santos. «Já... Quer dizer, ainda não. Não consegui falar com o Marcílio. Só chega amanhã de Rosário. Sabes que não devo tomar a decisão sem falar com ele»

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Buenos Aires, 2009
«(…) Não posso acreditar é a mesma página! Será o cigano Melquíades a fazer das suas?, murmurava para si, antes de ler o mesmo parágrafo final que lhe saíra na sorte, anos antes, com a avó. Sentou-se junto à janela. Lá fora, os condutores da Avenida Santa Fé buzinavam, ansiosos para que a fila avançasse, urgentes de chegar a algum lugar. A telefonia em cima da mesa informava que estavam impedidos por um acidente de moto, que demorava a resolver-se e que vitimara um dos apressados motociclistas, alguns quarteirões adiante, no cruzamento com a movimentada Pueyrredón. Desligou o aparelho e leu, sem pressa:

Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilónia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.

Aquele personagem tanto a amedrontara como a fascinara. Melquíades carregava uma terrível previsão sobre as gerações dos Buendía, que só seria decifrada um século depois, no momento em que um membro da família conseguisse interpretar os seus famigerados pergaminhos. E assim aconteceu, quando Aureliano Babilónia, da sexta geração, descobriu a maldição: a de que duas outras pessoas dessa mesma família não poderiam ter filhos juntas, pois nasceriam com alguma deformidade. Ora, os fundadores da família eram primos e a consanguinidade não mais se poderia repetir. Raquel recordava, tão triste como maravilhada, a imaginação do criador do personagem Aureliano Babilónia, que teve um filho com Meme sem saber que era sua tia legítima. Tendo-se repetido a consanguinidade, cumpriu-se a previsão do cigano: o filho da sétima geração nasceu com um rabo de porco e morreu devorado por formigas, acabando para sempre com a árvore genealógica da família.
Pouco tempo depois daquela conversa, a avó morreu, a transbordar de uma saúde tardia, a escassos dias de cumprir cem anos, uma mistura de bênção e maldição. Raquel só se lembrou do presente da avó Cleide depois de a anciã partir. O título e a dedicatória atormentavam-lhe o sono e, por isso, apressou-se, voraz, a ler a história dos Buendía nos dias que se seguiram ao funeral. Ninguém mais lhe tirava da cabeça que a avó não quis viver mais de cem anos, evitando uma qualquer desconhecida danação. E que a oferta daquele livro, com as palavras dedicadas à avó escritas pelo autor, com aquela precisão, não fora absolutamente inocente.
Com uma lágrima arredia de saudade a salgar-lhe as memórias, encostou Cem Anos de Solidão ao peito e sentiu o coração acelerado esmurrar-lhe a capa, a ponto de o confundir com as pancadas que, percebeu subitamente, vinham da porta do gabinete. Raquel, podemos falar? A rapariga suspirou, retirou lentamente o volume do peito e colocou-o delicadamente no centro da mesa. Olhou para a chefe, ainda perturbada pelas memórias. A directora da livraria entrou sem esperar e só parou ao seu lado. Era uma mulher magra, de rosto fino e delicado, cabelo cingido formando um puxo, olhos castanhos enormes e tristes. Deteve-se momentaneamente a olhar, em silêncio, para o livro acabado de desembrulhar pela adjunta. Fora ela quem encomendara cem exemplares, assim que soubera da reimpressão da primeira edição. Desculpa, Carmela. Estava distraída. Não faz mal. Já pensaste no assunto?, insistiu, com olhar vago e semblante desconsolado.
Já... Quer dizer, ainda não. Não consegui falar com o Marcílio. Só chega amanhã de Rosário. Sabes que não devo tomar a decisão sem falar com ele. Carmela respirou fundo. Raquel olhou-a de relance e viu-se cúmplice da sua tristeza. Com pouco mais de sessenta anos, era uma mulher respeitada nos círculos culturais bonaerenses, mas que se via obrigada a abandonar a carreira de directora da livraria El Ateneo para cuidar da mãe, de quem era a única família, acamada com uma doença neurológica, numa distante aldeia da Patagónia.
O mal da mãe de Carmela e a obrigação familiar de lhe acudir confabularam a oportunidade de Raquel. Todos a viam com aquele futuro e, na verdade, ela nunca escondera que gostaria, um dia, de ser a directora da fantástica livraria que o insuspeito The Guardian elegera, no ano anterior, a segunda mais bela do mundo. Para tirar as teimas, ainda haveria de visitar a livraria holandesa que o jornal escolhera como a mais recomendável. E, quem sabe, a portuguesa que ficara logo atrás. Mas nunca imaginara tornar-se directora da El Ateneo tão cedo, com vinte e nove anos mal acabados de celebrar. Saio no final do mês, como sabes, continuou Carmela, pegando no exemplar pousado sobre a mesa e folheando-o ao acaso. Os proprietários deram-me carta-branca para escolher quem me vai substituir. Para além da indemnização pelos anos de trabalho, foi a única coisa que lhes pedi. A pensar em ti, claro». In Alberto S. Santos, Amantes de Buenos Aires, Porto Editora, 2019, ISBN 978-972-003-177-8.

Cortesia de PortoE/JDACT