segunda-feira, 11 de novembro de 2019

A Obra Poética. Dom Francisco Manuel de Melo. José Pina Martins. «Dos seus quatro Apólogos Dialogais (só publicados em 1721), figuram breves excertos que permitem entrar no ambiente de cada um dos textos»


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(excerto)
«(…) Não raro, as fontes clássicas insinuam na palavra poética o recurso a uma erudição profundamente assimilada, mas porque o poeta sabe colocá-la no seu verdadeiro plano de arte ou de artifício, nunca a cultura abafa a experiência, e por isso nunca o artifício sábio ou técnico se sobrepõe à arte. Mas estamos em crer que os sonetos mais artisticamente valiosos de Francisco Manuel Melo são os de tema predominantemente religioso, como Antes da Confissão. Já num outro estudo tivemos oportunidade para relevar os elementos essenciais de valorização estética desta composição e não vamos aqui repetir-nos. A palavra poética, nesta parte de As Segundas Três Musas, assume, como na Retórica renascentista, a plenitude de um valor directamente ligado ao humano. Não há dúvida de que uma tal poesia exprime, na arte, o próprio homem.

As Éclogas
A Sanfonha de Euterpe, segunda parte de As Segundas Três Musas, é formada por éclogas e cartas. Já se observou que falta às primeiras o ambiente genuinamente pastoril que deveria caracterizar o género, mas nisto, como aliás na própria substância doutrinal, o Melodino segue a lição e o exemplo de Sá Miranda, seu modelo também nas cartas. A écloga Casamento, que integra o capítulo II de PEM, é talvez, neste domínio, o exemplo mais representativo. O tema era muito do agrado do nosso autor, que o tratou também na Carta de Guia de Casados. Os dois pastores do diálogo discordam de critério, quanto às virtudes a preferir na mulher, já que um opta pela beleza e outro mais solidamente pelos bens materiais. O cura, discreto e avisado segundo o cânone do ideal normativo da época, concilia as duas opiniões de acordo com um ideal de equilíbrio e moderação. A lição do meio termo é igualmente preconizada nas éclogas Temperança e Rústica. Mediano, aliás, é o nome de um dos interlocutores de Temperança, cujo conselho, de resto, pode resumir-se nos dois versos que, com outros, se encontravam gravados no templo aonde os dois pescadores (Afouto e Medroso) são levados por Mediano:

caminha sempre a um justo fim direito,
fugindo todo extremo perigoso.

E assim como, em Basto, Gil exprime as ideias de Sá Miranda, na écloga Rústica, por exemplo, Cremente tem palavras cujo tom de pessimismo profundo e sentido reflecte a experiência dolorosa de Francisco Manuel Melo. A lição de moralidade, que informa o suco didáctico das éclogas, não apagou o sinete autêntico de transposição da vida vivida na palavra poética. Mas as cartas são, a este respeito, ainda mais interessantes.
[…]

«Dos seus quatro Apólogos Dialogais (só publicados em 1721), figuram breves excertos que permitem entrar no ambiente de cada um dos textos. São eles:

Relógios falantes;
O Escritório avarento;
A Visita das fontes;
O Hospital das letras.
(existe ainda um quinto diálogo, ou melhor, um esboço apenas, intitulado A Feira dos Anexins, publicado apenas em 1875).

Trata-se de diálogos encenados, na tradição da Corte na Aldeia, de Rodrigues Lobo e onde é patente a presença, sempre reinventada, de Quevedo. Por exemplo, no primeiro diálogo, entre relógios diferentes, da cidade e da aldeia, vão sendo comentados os costumes de uma época, numa reflexão cheia de humor sobre a vida e a morte, a condição dos humanos; ou, na Visita das Fontes, uma conversa entre fontes, a velha e a nova, que comenta quem delas se aproxima e distancia, proporcionando um retrato da vida e costumes de uma época e de um lugar; por sua vez, Hospital das letras centra-se numa reflexão sobre livros e literatura. Este e os outros diálogos inscrevem pois uma posição reflexiva e crítica, de grande ironia, por vezes sarcástica, perante a sociedade e os seus mecanismos e instituições (a Justiça, sobretudo), numa espécie de construção alegórica da sociedade, da vida humana com seus vícios e virtudes. Aparentemente, também aqui ficam inscritos elementos da experiência de vida do seu Autor». In Isabel Allegro Magalhães.

In José Pina Martins, A Obra Poética, Dom Francisco Manuel de Melo, Excerto, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVII, nº 31, FCG, HALP, 2004, ISSN 1645-5169.

Cortesia da FCG/JDACT