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O
Naufrágio
«(…) Que distantes se esfumaram os
lanços da meninice, os prazeres da mocidade, os deleites nos jardins de Alcântara,
as cortes de Portugal e Castela, a assistência dos teatros, os dias gastos em
passeios, em doces conversas, as noites em primores de músicas, em agudezas de
academias elegantes! Agora, cá do longe da vida, tudo parece inutilidade, diria
escandalosa, ante as verdades que presentemente me ocupam o espírito. Há dias que
vivo entre dois mares, na ponta da praia, à entrada do golfo de São Salvador. E
o fluxo e refluxo das ondas, esta obstinada inquietação das águas, me estão sempre
espelhando a minha agitação interior, nas imagens da dolorosa separação, da decisão
de me embarcar à aventura, do trágico sucesso marítimo da minha primeira
viagem, do naufrágio da minha vida até o dia de hoje. Tempestades é o que poderei
relatar. As que de presente padeço não me permitem imaginação mais serena. De
maior perigo são as injúrias do ânimo que as mazelas do corpo. Que há-de
escrever um afligido senão aflições? Não sei se para mitigar ou agravar os trabalhos
presentes, me está agora a memória pungindo com tão cruel viveza os passados, como
se agora os esteja a viver…
Alto, largo arcaboiço, os cabelos
e a barba brancos ao vento as faces vincadas de rugas de aspecto severo, curtidas
da maresia, aqui está, de pé como a estátua de um herói, na ponte do galeão.
General Manuel Meneses, nas ciências e valor militar homem de maior disciplina que
prudência cívica. Daí o tratar, amiúde, os negócios e as pessoas com mais secura
e despejo do que pede a cortesania. Entendido em genealogia, matemáticas, música,
em história, que é cronista-mor do reino, é mais sábio nas matérias náuticas
que todos os que neste tempo servem em Portugal e Castela. Será ousado confrontá-lo.
Mas peito humano e justo, defensor e amigo dos seus subordinados. Antes de a velhice
chegar, serviu na armada inglesa de apoio ao Prior do Crato. O loiro dos
cabelos e a claridade dos olhos levaram, um dia, a que lhe dessem o apelido de Flamengo,
nome por que são conhecidos os nórdicos. Os seus antecedentes de patriota não
impedem Castela de fiar dele os mais altos cargos. Sabe que, se ele aceitar cumprir
um serviço, a fidelidade à palavra dada e o espírito de disciplina nunca lhe
permitirão trair. Da subjugação da pátria afirma frontalmente o seu desacordo.
Os cargos que aceita, sempre alguma coisa respeita, à defesa dos interesses
portugueses. Quatro vezes capitão das naus da Índia, combateu os Ingleses no alto
mar foi general da armada que reconquistou a Baía em mil e seiscentos e vinte e
cinco e agora aqui está ele em seu alto posto a defender as frotas portuguesas
do Oriente e do Ocidente.
Homem de granito, ninguém
suspeitaria que o coração se lhe move. Testemunho-o eu, que, sabendo ele de mim
mais do que eu suporia e vendo minha quase puerícia, me chamou a seu serviço particular,
como se eu lhe fora pajem. Mal começa a soprar uma aragem, logo se trata de desfraldar
as velas e a esperança. Patrão Joaquim olha os ares, insatisfeito. É já terceira
vez que em vão intentamos largar, mestre, digo-lhe. Não sopra uma aragem, quanto
mais de feição. De mau presságio, este repetido impedimento. Por…, amigo!, arremeda
um esgar na sua linguagem rude. Pra longe vá o agoiro». In Fernando Campos, O Prisioneiro
da Torre Velha, Quare?, 2003, Difel SA, 2003, ISBN 972-290-669-0.
Cortesia de Difel/JDACT