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E a mulata arrastava-se, com um sorriso em que havia alta percentagem de amargura,
aspecto chato e esmagado, como saco vazio de roupa velha. E o seu crânio
pequenino de estúpida, de grande bestiaga, tinha a calva depressão idiota de
uma cabaça oca. Quando ficaram sós, a senhora Marcelina, abaixando um pouco a
voz, disse à filha do coveiro: tenho uma coisita para lhe dizer, seu interesse.
Sim?, fez Carolina. Não é coisa nenhuma má, não senhor. O seu ao seu dono! O
que é então? Não se zanga, não? Por que havia de zangar-me? Mas diga. Há aí um
rapazola que dá um cavacão pela menina. Um cavacão, c’os diabos; um cavacão! Carolina
teve um sobressalto. O coeficiente das suas orgulhosas alegrias traduziu-se num
sorriso. Está a gozar, disse. Palavrinha, é coisa séria. Ele falou-me nisso. Para
quê?, disse ela, trémula, penetrada. Ora! Namoricos; não sabe como as coisas
são? Rapaziadas. Todos nós temos disso. Enfim, falar não ofende. Carolina
estava pálida, sentia-se vagamente num deleite, curiosa e cheia de excitações. A
senhora Marcelina, de olhos no chão, mordia o lábio inferior, como quem reflecte.
Com que então, disse Marcelina, gosta? Hi!... E, passado um momento: um rapaz
com umas casas, forte, loiraço e bom trabalhador. Hem? Sua sonsinha... Hem? E,
insinuando-se, velha toupeira: tendo juízo, minha riquinha, é uma mina. Nada de
cair antes de tempo, percebes? Carolina estava rubra, com palpitações doidas.
E quem é?
Como se chama? Isso queria você saber, isso queria você saber! Não, sério, diga.
E, mais resoluta: há-de dizer! Aqui, em frente do beco, há uma loja de
marceneiro. Sabe. A do Ferreira, um de óculos. Ah!, fez Carolina. Já sei. Há um
oficial, o João, bonitote, muito claro. É esse. É esse então? Pois senhores... Um
belo moço! É vê-lo além na loja, a camisa arregaçada; que braços, hem! Carolina
adivinhava-o, sentindo-o na sua imaginação com um vigor de pintura. E depois?,
disse ela. E ele pediu-me que arranjasse a coisa, que lhe falasse; tinha
vergonha de vir ele mesmo... Ganha seis tostões, vive só; bom rapaz no fundo. E
o meu pai? Ora! Nem o adivinha. Vive sempre lá em cascos de rolhas. Quer lá
saber... É vinho e deixa andar. Nem sei, nem sei... Isso, o resto arranja-se.
Amanhã há festa nos Prazeres, percebes? Ele vai por ali. Tu vais comigo.
Entendam-se lá como quiserem. Gostas dele? Sei lá, sei lá! Não é feio... Entendo.
Amanhã vamos ao arraial. O dia deve estar bonito. Olhe, vou de manhã. Lá a
espero de tarde. Vá feito. Valeu. Faço os meus arranjos e vou depois. Adeusinho,
adeusinho. Desceu a escada. No portal gritou para cima: e obrigada por tudo,
obrigadinha por tudo.
Não
dormiu toda a noite. Uma turbulência de ideias desencontradas agitava-a. Havia
dentro dela alguma coisa explosiva que rebentava, que se dilatava com um volume
maior que o do seu cérebro e do seu coração. Tinha projectos, predilecções, vaidades. Iria comer
petisqueiras de truz na frescura dos retiros, sob parreiras verdes, enquanto,
na encosta, lavadeiras batem roupa. Teria vestidos azuis, de merino, ricos
lenços de seda com ramos, uma sombrinha e anéis, alguma coisa como uma
opulência. A tia Palma não a reconheceria tão liró, feita uma rainha de Nantes,
com botas de biqueira. E mirava-se no espelho, embevecida, desvanecimento
pelintra, a admiração de si mesma. Surpreendia-se a murmurar baixinho. O meu
João». In Fialho de
Almeida, A Ruiva e Outras Histórias, 1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de
Ler, ISBN 978-972-370-963-6.
Cortesia
de LLivros/JDACT