sábado, 30 de novembro de 2019

O Pecado e a Honra. Maria João Câmara. «Quando Teresa começou a botar corpo, crescendo e desenvolvendo-se, mandava-a para a Quinta do Lagar, no termo da cidade, para que fugisse do ar pestilento…»

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«(…) Apesar de tudo, o filho mais novo de dona Beatriz, Manuel, recebeu a notícia com naturalidade. Fora também com naturalidade que deixara de se deslocar a Odivelas. Isabel escrevera-lhe mil cartas, mandou recados e mensagens, recordando-lhe os encontros apaixonados, as palavras trocadas, os momentos de puro êxtase. Porque não vinha ele? Porque não lhe respondia? Porque desaparecera da sua vida assim, tão de repente e tão absolutamente? Mas apenas obteve o silêncio. Tentou sair do convento disfarçada de criada, para encontrar o pai do seu filho, para lhe suplicar que a acolhesse, que não a abandonasse, mas não pôde sequer passar a porta da clausura porque a abadessa a tinha tão vigiada como presa de milhafre antes de ser caçada. Finalmente, Isabel, desperta perante a dura realidade de um amor perdido, do abandono e da sua prenhez, chorava convulsivamente, pedindo a Deus que a levasse na hora de parir, como fazia a tantas mulheres. Fosse Ele servido fazê-lo, que ela Lho agradeceria para todo o sempre. Assim nasceria Teresa.
E depressa, antes que a mãe pudesse ver o rosto do rechonchudo bebé, um criado levando na albarda de um burro uma alcofa tapada, o entregou nas casas de morada do infante Manuel. Abandonada e separada de uma filha que lhe nascera de tão grande amor, Isabel fechou-se no seu desgosto. Nunca a esqueceu, nunca abandonou as recordações do seu grande amor e nunca transpôs os muros do convento, como tinha prometido à abadessa. Para criar esta criança, o infante Manuel entregou-a, com a medalha de São Dinis presa numa fita verde, a um seu criado, Brás Correia, desembargador e seu muito leal servidor. Brás Correia, sem filhos que dessem continuidade ao seu sengue, a tomou e dela fez o seu bem mais precioso, a sua jóia, o seu arrebatamento. Afinal, era a filha de seu senhor. Imediatamente mandou vir duas amas do Bombarral, não faltasse o leite àquela criança abençoada que o retiraria da solidão em que sempre vivera. E para que crescesse em saúde e em graça, fez visitas ao boticário, mandou preparar xaropes para que nenhuma tosse a consumisse, mandou que a untassem de pomadas e que lhe fizessem abluções constantes, apesar das ligaduras que a enfaixavam. Encheu o seu peito de bentinhos e orações escritas em panos de linho fino. Quando Teresa começou a botar corpo, crescendo e desenvolvendo-se, mandava-a para a Quinta do Lagar, no termo da cidade, para que fugisse do ar pestilento que invadia Lisboa no estio, para que bebesse a água fresca das nascentes, para que comesse a fruta mais madura, a alface mais tenra, a galinha mais gorda. A criança medrava, de facto, e respondia ao amor de Brás Correia com enorme ternura. Enchia a casa com o seu riso e a sua tagarelice (chegada a idade da comoção, Brás Correia não recordaria estes tempos sem que uma lágrima lhe caísse e sem que a voz se lhe embargasse), encantava todos com a sua alegria. Cresceu saudável e bela como uma maçã orvalhada.
Quanto aos seus olhos azuis, estes faziam as pessoas embasbacarem a olhar para ela... E ao tomar formas de mulher, Teresa começou a perguntar-se sobre a vida. E quando uma pessoa se pergunta pela vida, quer respostas. E Brás Correia, sem ter a certeza do que dizia, não pôde evitar dizer-lhe mentiras: sua mãe morrera quando ainda era pequena. E como se chamava ela? Isabel». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.

Cortesia de OdoLivro/JDACT