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«(…) Apesar de tudo, o filho mais
novo de dona Beatriz, Manuel, recebeu a notícia com naturalidade. Fora também
com naturalidade que deixara de se deslocar a Odivelas. Isabel escrevera-lhe mil
cartas, mandou recados e mensagens, recordando-lhe os encontros apaixonados, as
palavras trocadas, os momentos de puro êxtase. Porque não vinha ele? Porque não
lhe respondia? Porque desaparecera da sua vida assim, tão de repente e tão absolutamente?
Mas apenas obteve o silêncio. Tentou sair do convento disfarçada de criada,
para encontrar o pai do seu filho, para lhe suplicar que a acolhesse, que não a
abandonasse, mas não pôde sequer passar a porta da clausura porque a abadessa a
tinha tão vigiada como presa de milhafre antes de ser caçada. Finalmente, Isabel,
desperta perante a dura realidade de um amor perdido, do abandono e da sua
prenhez, chorava convulsivamente, pedindo a Deus que a levasse na hora de parir,
como fazia a tantas mulheres. Fosse Ele servido fazê-lo, que ela Lho agradeceria
para todo o sempre. Assim nasceria Teresa.
E depressa, antes que a mãe pudesse
ver o rosto do rechonchudo bebé, um criado levando na albarda de um burro uma
alcofa tapada, o entregou nas casas de morada do infante Manuel. Abandonada e separada
de uma filha que lhe nascera de tão grande amor, Isabel fechou-se no seu desgosto.
Nunca a esqueceu, nunca abandonou as recordações do seu grande amor e nunca transpôs
os muros do convento, como tinha prometido à abadessa. Para criar esta criança,
o infante Manuel entregou-a, com a medalha de São Dinis presa numa fita verde, a
um seu criado, Brás Correia, desembargador e seu muito leal servidor. Brás Correia,
sem filhos que dessem continuidade ao seu sengue, a tomou e dela fez o seu bem
mais precioso, a sua jóia, o seu arrebatamento. Afinal, era a filha de seu senhor.
Imediatamente mandou vir duas amas do Bombarral, não faltasse o leite àquela criança
abençoada que o retiraria da solidão em que sempre vivera. E para que crescesse
em saúde e em graça, fez visitas ao boticário, mandou preparar xaropes para que
nenhuma tosse a consumisse, mandou que a untassem de pomadas e que lhe fizessem
abluções constantes, apesar das ligaduras que a enfaixavam. Encheu o seu peito de
bentinhos e orações escritas em panos de linho fino. Quando Teresa começou a botar
corpo, crescendo e desenvolvendo-se, mandava-a para a Quinta do Lagar, no termo
da cidade, para que fugisse do ar pestilento que invadia Lisboa no estio, para que
bebesse a água fresca das nascentes, para que comesse a fruta mais madura, a alface
mais tenra, a galinha mais gorda. A criança medrava, de facto, e respondia ao
amor de Brás Correia com enorme ternura. Enchia a casa com o seu riso e a sua tagarelice
(chegada a idade da comoção, Brás Correia não recordaria estes tempos sem que uma
lágrima lhe caísse e sem que a voz se lhe embargasse), encantava todos com a
sua alegria. Cresceu saudável e bela como uma maçã orvalhada.
Quanto aos seus olhos azuis, estes
faziam as pessoas embasbacarem a olhar para ela... E ao tomar formas de mulher,
Teresa começou a perguntar-se sobre a vida. E quando uma pessoa se pergunta pela
vida, quer respostas. E Brás Correia, sem ter a certeza do que dizia, não pôde evitar
dizer-lhe mentiras: sua mãe morrera quando ainda era pequena. E como se chamava
ela? Isabel». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012,
ISBN 978-989-555-830-8.
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