domingo, 10 de novembro de 2019

A Obra Poética. Dom Francisco Manuel de Melo. José Pina Martins. «Quer tratando o tema da liberdade individual, ele que se encontrava prisioneiro na Torre e bem conhecia os grilhões da vida cortesã…»

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(excerto)
«Dom Francisco Manuel Melo (1608-1666) ocupa de há muito tempo, como prosador, um lugar eminente na história da literatura portuguesa. São poucos, porém, os críticos que tenham consagrado à sua obra poética a atenção que ela merece. Já alhures escrevemos que a minimização do valor poético de Francisco Manuel Melo é, não raro, o resultado de posições apriorísticas ou ideias preconcebidas. Os estudiosos mais sérios da nossa terra insistem em ver em As Segundas Três Musas de Melodino, insertas na segunda parte do grosso volume das Obras Métricas (Lyon, 1665), mais um produto do talento multiforme do autor, do que a expressão literária autêntica de uma experiência humana profundamente sentida e vivida. Estamos em crer que, salvo poucas e honrosas excepções, podem contar-se pelos dedos aqueles que algum dia tenham contactado, em convívio diuturno, o mundo poético do Melodino, pois, de contrário, ter-se-iam logo apercebido do valor estético ímpar de algumas composições. Entre aqueles que, entre nós, estudaram a poesia de Francisco Manuel, merecem ser distinguidos José Pereira Tavares que, em 1921, nos deu uma edição antológica das suas Rimas Portuguesas e Orações Académicas, e, mais recentemente, António Correia de A. Oliveira, que ao nosso autor consagrou vários estudos de valor excepcional. Outros investidores se têm ocupado do Melodino, nomeadamente Hernâni Cidade e Maria de Lourdes Belchior, com invulgar argúcia e erudição: mas não em trabalhos monográficos, ex professo dedicados à sua poesia. Não nos cabe, neste prefácio, estudar mais ou menos detidamente As Segundas Três Musas, mas só dedicar-lhes um antelóquio superficial: a poesia apresentar-se-á por si mesma, no valor genuíno da sua significação humana e estética. Seja-nos, contudo, lícito pôr em relevo um ou outro aspecto temático e de técnica formal mais digno de realce, principalmente numa perspectiva de pesquisa dos valores de fidelidade artística da palavra significante à sua carga vital de significado. Corresponde, então, a poesia do Melodino às dores da experiência vivencial expressa poeticamente? Cumpre-nos aqui observar, in limine, que o prisioneiro da Torre Velha fez da sua vida um poema, ou melhor, a sua vida está toda ela, com o sinete de uma experiência dolorosa, nalguns dos seus poemas. Documentá-lo é, porventura, mais fácil do que enunciá-lo.

Os Sonetos
A primeira parte de As Segundas Três Musas é formada por 100 sonetos, alguns deles documentos interessantes de engenhoso conceptismo, com profusão de imagens requintadas e metáforas de elaboração aguda. Nascem, assim, obscuridades e ambiguidades intencionais, bem de acordo com os preceitos da doutrina barroca. Não obstante tudo isso, que é afinal o tributo pago pelo autor à moda do tempo, já um crítico de grande autoridade foi levado a escrever que o nosso poeta preanuncia, nesta parte da sua obra, a lira anteriana. Quer tratando o tema da liberdade individual, ele que se encontrava prisioneiro na Torre e bem conhecia os grilhões da vida cortesã, quer repetindo alguns tópicos do petrarquismo numa poesia amorosa que, apesar da imitação, ostenta o sinete de uma visível originalidade, Francisco Manuel consegue superar os esquemas artificiais de uma arte toda voltada para a quinta essência do jogo dialéctico e do brinco subtil.
Não raro o tom vagamente preceptivo e normativo identifica-se com o epigramático: aliás o poeta hauria a lição em fontes autênticas, como são as da sabedoria popular que exprime o mais saboroso do seu suco em provérbios e ditos exemplarmente concisos. Também a consciência do tempo breve, da fugacidade da vida, da efemeridade das coisas, na certeza de que viver é peregrinar na terra do exílio, tem em Francisco Manuel um intérprete inspirado, a despeito da dificuldade de um tal tratamento poético, já então exemplarmente fixado em obras-primas consagradas como as de Sá Miranda e Camões, para só referirmos dois nomes da literatura portuguesa que lhe serviram de modelos e de mestres. Pessimismo antropológico e cosmológico até, mas nem sempre expresso através das formas literárias consuetas, dos achadilhos conceituosos da tese e da antítese, como em Petrarca e nos petrarquistas, da afirmação e da negação, da dúvida e da fé, da ilusão e da sua consciência lúcida (desilusão), da aceitação e da atitude inconformista, do crer e do duvidar. É talvez especificamente melodínico o recurso à expressividade de um humorismo transcendente para significar a problemática da dor pelo próprio sujeito experimentada. A vocação do moralista ergue-o na passagem do concreto para a reflexão sentenciosa, mas sem um divórcio temático do aforístico em relação ao vivencial ou ao religioso». In José Pina Martins, A Obra Poética, Dom Francisco Manuel de Melo, Excerto, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVII, nº 31, FCG, HALP, 2004, ISSN 1645-5169.

Cortesia da FCG/JDACT