quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «… na sua versão do Cântico dos Cânticos, traduz claramente: anossa irmã é pequena e mamas não tem. Que será da nossa irmã quando se começar a falar dela?»

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«(…) O padre Villaescusa, que falava do seu assento, levantou-se solenemente. Esta reunião em que nos encontramos é mais do que um indício. O diabo provocou-a, o Diabo mantém-na, o Diabo suscita muitas das palavras que aqui se pronunciaram e se pronunciarão. E o padre Rivadesella, quase sem se mexer, mas em tom claramente irónico, interveio. Pela razão que todos sabemos, a noite passada Lúcifer voou pelos nossos céus na figura de um belíssimo mancebo cujo voo deixava nos ares um sulco de prata. Há testemunhas. Se assim é, falou o padre Villaescusa, sem perder a solenidade, proponho que se exorcize esta sala imediatamente. Refere-se Vossa Paternidade ao espaço em que nos encontramos, ou aos que compõem a reunião? Aquela inesperada e a todos os títulos impertinente pergunta do Inquisidor-mor surpreendeu quase todos os presentes, e, mais do que ninguém, o padre Villaescusa. Não me referia a ninguém em concreto, Excelência. Nesse caso, é de pensar que a presença do Diabo não constitui nenhuma novidade. O Senhor está em toda a parte, mas o Diabo anda sempre atrás dele... Mas, às vezes, o Senhor distrai-se. O que vem a ser mais ou menos o que eu disse antes. Que o Senhor se inibe, mas a mim custa-me muito acreditar nisso. Tornou a ouvir-se a voz eminente do Inquisidor-mor.
Permito-me recordar a Vossas Paternidades que estamos a afastar-nos do assunto que aqui nos trouxe. Tínhamos ficado em se o Rei tem ou não o direito de ver a Rainha nua, e se isto é ou não pecado. Rogo a Vossas Paternidades que se pronunciem claramente sobre este ponto. Afirmo que tem esse direito e que não é pecado, respondeu com voz segura o padre Almeida, afirmo não só isso, mas a conveniência de que isso aconteça para que no casamento dos Reis, não como tais mas sim como cristãos, se realize a Graça do Senhor. O padre Villaescusa saltou como picado por uma vespa. Diz Vossa Mercê a Graça do Senhor? Acha que a Graça do Senhor se manifesta no coito? Ou na contemplação desses horríveis penduricalhos das fêmeas que se chamam peitos? Ou prefere que a contemplação se verifique pelas costas, evidentemente contra natura? Refiro-me, como é óbvio, à contemplação das nádegas. O padre Enríquez, O S D., tinha adormecido uma ou duas vezes; outras, tinha arrebitado a orelha, e, muitas, sorrido. Nesta altura levantou a mão cortesmente. Visto que este debate se desenrola em língua romance, permito-me rogar ao sábio e virtuoso padre Villaescusa que chame as coisas pelos seus nomes. Quero dizer, mamas em vez de peitos, cu em lugar de nádegas. Se bem me lembro, o ilustre poeta padre Léon, na sua versão do Cântico dos Cânticos, traduz claramente: anossa irmã é pequena e mamas não tem. Que será da nossa irmã quando se começar a falar dela?
Recitara-o com evidente complacência, e todos pareciam tê-lo escutado com prazer, menos o padre Villaescusa, que troou: e Vossa Paternidade atreve-se a fazer essa citação, sendo dominicano como é? Embora convenha recordar que em mãos de dominicanos esteve a vida e a morte desse repugnante marrano, e que foram dominicanos os que furtaram ao Senhor o cheiro da sua carne chamuscada. Pois nós, os agostinhos, estamos muito orgulhosos dele [(o frade agostinho Luis León (1527-1591) foi um importante escritor renascentista espanhol, poeta notável. Provavelmente judeu converso, viu-se acusado de heresia pelos dominicanos, o que, juntamente com a sua tradução do Cântico dos Cânticos, o levou a trocar a sua cela pelas da Inquisição (maldita) durante cinco anos], respondeu-lhe, com voz segura, o representante da mais antiga das ordens presentes. Coisa que não me espanta, acrescentou o padre Villaescusa, porque todos vós sois suspeitos. Produziu-se uma série de murmúrios nos diversos escalões do Supremo, ante a ousadia daquele capuchinho febril e colérico. O Inquisidor-mor cortou a barafunda que se avizinhava. Deixemos em paz os mortos. Insisto em que o debate não se afaste do seu tema» In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, 1989, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da Caminho/JDACT